Quem integrava a “quadrilha” que a polícia do Cabral arranjou

Tempo de leitura: 9 min

Rennan Philippi, 30 anos           Carla Hirt, 28 anos                       Atre Fabres, 21 anos

Ananda Fabres, 27 anos             Paulo Henrique Reis, 18 anos    Gabriel Nuddi, 18 anos

por Conceição Lemes

No dia 14 de junho passado, no auge das manifestações, Renato Rovai denunciou em seu blog: “Os momentos históricos são diferentes, mas o que está acontecendo em São Paulo precisa ser discutido do tamanho que merece. Manifestantes não podem ser presos sob acusação de formação de quadrilha, crime inafiançável. Se isso vier a prevalecer, estaremos entrando num cenário de ditadura contra a luta social. Será um novo AI-5, o instrumento que faltava para a tão sonhada criminalização dos movimentos sociais que vem sendo arquitetada há tanto tempo pelas forças conservadoras do país. E que ganhou hoje o apoio, em editorial, da Folha e do Estado de S. Paulo“.

Os dois jornais, diga-se, deram uma guinada de 180 graus na cobertura depois de pregar a repressão policial (aqui e aqui).

Trinta e três dias após a denúncia de Rovai (apenas um reparo: formação de quadrilha não é crime inafiançável), o mesmo instrumento foi bastante usado no Rio de Janeiro (aqui e aqui).

Na noite de 17 de julho, Carla Hirt, Atre Fabres e a irmã Ananda, Gabriel Haddad Nuddi, Paulo Henrique de Oliveira Reis e Rennan Philippi Santos, entre muitos jovens, participavam pacificamente de manifestação em frente à rua onde mora o governador Sérgio Cabral, no Leblon.

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De repente, bem já no final, as luzes se apagaram e a polícia, que havia bloqueado ruas do bairro, lançou bombas de gás lacrimogêneo no meio do protesto. Foi um deus-nos-acuda.

Os manifestantes correram. A polícia passou a perseguí-los. Para fugir da caçada, muitos escaparam para Ipanema. Mas as viaturas foram atrás, atirando balas de borracha e bombas de efeito moral. Na rua Redentor, vários – inclusive alguns feridos — acabaram encurralados e presos.

Dos seis das fotos acima, à exceção de Ananda, todos foram enquadrados por suposto crime de formação de quadrilha.

Nem o professor de ioga Atre Fabres, 21 anos, se livrou. Recebeu a notícia do seu enquadramento no Hospital Miguel Couto, para onde foi encaminhado, pois sangrava muito. Levou um tiro de bala de borracha na testa e, outro, depois, nas costas. A irmã Ananda tomou duas balas de borracha na perna.

A geógrafa Carla Hirt, atualmente doutoranda no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), também foi atingida por duas balas de borracha: uma na perna direita e outra na altura da cintura.

Nenhum “meliante” da “quadrilha” conhecia os demais “comparsas”.

“Juridicamente não tem cabimento nenhum”, condena o advogado Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Na verdade, trata-se de uma tentativa de usar o poder do Estado de punir e apurar crimes como instrumento inconstitucional de intimidação e restrição indevida ao direito fundamental de manifestação e reunião das pessoas.”

Serrano lembra que a estratégia de tentar caracterizar movimento reivindicatório como quadrilha, por conta da suposta depredação grupal de patrimônio, foi usada na denúncia contra os alunos da USP, que, em 2011, invadiram a reitoria.

“O direito de manifestação e reunião está garantido pelo artigo 5 de nossa Constituição,  portanto a intenção coletiva de realizar manifestação é um desejo lícito”, observa o professor. “Agora, se um ou outro, no uso do direito de manifestação, passou a depredar patrimônio público ou privado, essa evidentemente é uma atitude isolada. Ela não guarda relação com a intenção coletiva e deve ser apurada e punida isoladamente e não como quadrilha.”

“Especificamente, no caso do Rio de Janeiro, além de os jovens não se conhecerem, os fatos de o motivo da reunião não ter sido o cometimento de crime e não haver permanência da atividade supostamente delituosa  descaracterizam a quadrilha”, afirma Serrano. “Portanto, foi atitude de Estado de exceção no interior do Estado democrático, que atenta contra os direitos fundamentais da pessoa e que espero seja invalidada pelo Judiciário.”

 O QUE CADA “QUADRILHEIRO” FAZIA NO MOMENTO DA PRISÃO

Os seis garantem: não participaram de nenhuma ação violenta nem da destruição de patrimônio público ou privado.

Os cinco enquadrados por formação de quadrilha não se conformam: “Não cometemos nenhum crime”.

Carla não é filiada nem é militante de partido político. “Mas costumo votar nos candidatos do Psol”, conta.

Paulo Henrique Reis, 18 anos, cursa ensino médio em um colégio público estadual e é operador de telemarketing, diz: “Não sou de nenhum partido, mas admiro os que pregam o regime comunista”.

Rennan Philippi Santos, 30 anos, cursa Direito na Faculdade Cândido Mendes, expõe: “Apesar de uma inclinação à esquerda, não sou filiado nem milito em nenhum partido”.

Os demais, como os manifestantes de junho, não têm partido político.

Confira o que cada um fazia na hora na prisão.

Carla Hirt, 28 anos, geógrafa, atualmente faz doutorado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ)

“Eu estava participando pacificamente da manifestação em frente à rua do Cabral.  Quando as luzes se apagaram e a polícia começou a jogar bombas de gás no meio dos manifestantes, eu corri pelas ruas do bairro, tentando escapar do cerco policial.

Por causa do gás lacrimogêneo, desencontrei-me de meu companheiro, consegui ficar somente com uma amiga.

Quando eu já estava em Ipanema, decidindo se iria sozinha para casa ou ficaria na de uma amiga moradora no bairro, três viaturas avançaram em alta velocidade na contramão.

Corri mais. De dentro das viaturas, policiais atiravam indiscriminadamente. Tive de parar depois que fui atingida por duas balas de borracha: uma na perna direita e outra na altura da cintura, que alcançou minha bolsa e quebrou minha máquina fotográfica.

As pessoas que se abrigaram dos disparos em frente a um prédio de vidro à rua  Redentor foram cercadas pela polícia.

Neste momento, liguei para o meu companheiro e para alguns amigos, avisando o que estava acontecendo.

Quando perguntei a um policial o número do prédio, ele se negou a responder. Insisti. Ele me agrediu. Meu companheiro escutou tudo por  telefone — a agressão do policial e os gritos dos demais manifestantes, pedindo para que ele parasse. Em nenhum momento, nos informaram o motivo da prisão. Isso só aconteceu depois de algum tempo, quando já estávamos na delegacia.

O mesmo policial que me agrediu derrubou um menino [Atre Fabres] que havia levado um tiro de bala de borracha na testa e  pisou na cabeça dele”.

Atre Fabres, 21 anos, professor de ioga, trabalha como ator numa peça e acabou de entrar para uma agência de modelos

“Eu cheguei na manifestação por volta de 18 h, mas tive que sair mais cedo para dar aula de ioga numa academia na Ataulfo de Paiva. Após a aula, quando saí da academia, vi uma confusão e fui me informar sobre o que estava acontecendo. Resolvi me afastar. Fiquei junto das pessoas mais à frente, que não estavam quebrando nada.

Aí, encontrei a Ananda, minha irmã, que estava me procurando. Foi quando nos informaram que os policiais haviam cercado as ruas do Leblon. Resolvemos seguir juntos com um grupo que se manifestava pacificamente até Ipanema e de lá procurar uma outra saída, para ir pra casa.

Ao chegar em Ipanema, os policiais nos perseguiram. Entramos em uma das ruas transversais à Visconde de Pirajá. Um pouco mais à frente, entramos na rua Redentor. Lá, eu, minha irmã e outras duas pessoas nos escondemos atrás de um canteiro de obras, na esperança de que os policias seguissem em frente.

Só que quando me levantei, levei um tiro de bala de borracha na testa. Voltei a correr. Fui baleado novamente nas costas e minha irmã baleada duas vezes na perna.

Mais à frente procuramos ajuda em um prédio, mas o porteiro nos ignorou e os policiais nos cercaram e ordenaram que a gente deitasse no chão.

A princípio, não obedeci. Pedi socorro, pois estava com medo de perder mais sangue e desmaiar. Mas o policial não ajudou. Me mandou deitar no chão mais uma vez. Eu obedeci. E quando pedi ajuda mais uma vez, ele xingou, me mandou calar a boca e pisou no meu rosto.

Logo depois, uma mulher [Carla Hirt] pedia apenas o número da rua em que ela se encontrava. O policial não quis dizer. Ela insistiu, ele a derrubou no chão e passou a agredi-la.

Foi, então, que apareceu um policial não fardado. Depois de me avaliar, me mandou para o Hospital Miguel Couto. Foi lá no hospital que, através de uma amiga da minha irmã, eu fiquei sabendo que estava detido”.

Paulo Henrique Oliveira Reis, 18 anos, cursa o ensino médio e trabalha como operador de telemarketing

“Participava da manifestação pacificamente, como venho fazendo, quando, de repente, me senti no meio de um jogo de tiro ao alvo. Eu havia me perdido dos meus dois amigos, estava sozinho. As viaturas com policiais atirando saíram atrás dos manifestantes que vinham logo depois de nós.

Eu, claro, corri. Mas acabei preso. Foi uma prisão sem motivos. Na verdade, só entrei na viatura, com medo de apanhar dos policiais. Um deles já tinha pisado na cabeça de um dos manifestantes [Atre Fabres]  e  agredido fisicamente uma outra manifestante [Carla Hirt]. Eu não queria pagar pra ver”.

Rennan Philippi Santos, 30 anos, cursa Direito na Faculdade Cândido Mendes

“Eu estava na manifestação, fazendo fotos e filmando. Mas como muitos tiros de balas de borracha começaram a ser disparados, comecei a correr.

Assim que entrei numa esquina, várias viaturas da polícia chegaram disparando na direção de todos que estavam na rua.

Para tentar me proteger dos tiros, atravessei a rua. Quando olhei para trás, fui jogado no chão e imobilizado por uma pessoa com roupas normais.

Perguntei porque ele fez aquilo. Não obtive resposta. Quando eu disse que estava ali filmando, ele cobriu o rosto com a camisa e segurou minha mão que estava com a câmera.

Só saiu de cima de mim, quando a PM chegou. Os PMs começaram a me revistar. Um perguntou porque eu estava correndo. Respondi que era por causa dos tiros de borracha. Ele disse que eu o estava acusando, por isso eu ia para a delegacia”.

Gabriel Haddad Nuddi, 18 anos, estudante de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)

“Eu e mais dois amigos participamos da manifestação em frente à rua do governador Sérgio Cabral. Depois, fomos para Ipanema. Só que, de repente, começou mais um conflito de alguns manifestantes com a polícia que nos fez correr em direção à Lagoa.

Em meio a bombas de gás e balas de borracha, nós nos perdemos. Eu corri para a rua Redentor, onde outros manifestantes, assim como eu, tentavam se abrigar em um prédio. Os policiais chegaram e fomos detidos.  Uma menina [Ananda] e um rapaz [Atre] detidos junto comigo foram agredidos; ela tinha sido baleada na perna por balas de borracha, ele na testa”.

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*****

Em português claro: a estratégia da Polícia carioca é, obviamente,  criminalizar os manifestantes, para intimidar.

Por tudo isso, vale a pena repetir o que o professor Pedro Serrano disse logo no início: “Foi atitude de Estado de exceção no interior do Estado democrático, que atenta contra os direitos fundamentais da pessoa”.

A “quadrilha” se reuniu no Rio de Janeiro a pedido do Viomundo, para as fotos de Felipe Varanda, do Estúdio Liquido: queríamos dar concretude à “quadrilha” de papel forjada pela polícia do governador Sergio Cabral em uma delegacia.

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