África na encruzilhada: Vamos falar do Brasil
por Jay Naidoo, no Daily Maverick, site de notícias e opinião da África do Sul
Pouco mais de 20 anos atrás, o magnata da mineração e principal futurista sul-africano, Clem Sunter, apresentou seu famoso cenário de possibilidades para o futuro de um país ainda sob as botas do apartheid. Parece que nós, e na verdade a África, não aprendemos muito desde então.
Acabo de retornar do Brasil, onde fui recebido pelo Instituto Lula, e fiquei tocado pelas conversas que tive com pessoas comuns: motoristas de táxi, funcionários de hotéis, jovens nas ruas, militantes que trabalham em favelas, empresários e ministros de governo. Existe uma notável sensação de esperança, apesar dos desafios que eles enfrentam em um país de 190 milhões de pessoas, quase quatro vezes a população da África do Sul. No poder há menos de um ano, a presidenta Dilma Rousseff está jogando duro: demitiu seis ministros por corrupção, mau uso de dinheiro público e tráfico de influência.
No centro do sucesso brasileiro estão sem dúvida as políticas públicas e sociais perseguidas pelo carismático ex-presidente Lula e sua equipe. Construindo sobre a estabilização obtida pelos governos anteriores, ele enfrentou agressivamente os problemas dos pobres brasileiros, argumentando que o objetivo estratégico da política de governo deveria ser o direito de toda família brasileira de fazer pelo menos três refeições por dia.
Ao lançar a campanha do Fome Zero, focou os burocratas governamentais nas necessidades do povo. Sustentadas pelo programa de proteção social Bolsa Família, 13 milhões de famílias receberam ajuda, que foi para as mulheres em 93% dos domicílios. Os programas ajudaram a tirar perto de 30 milhões de pessoas da fome e da pobreza e tiveram um grande impacto no comparecimento das crianças à escola e nos programas de imunização. As merendas escolares ligadas à agricultura familiar fortaleceram o desenvolvimento econômico local.
Ao mesmo tempo implementando políticas econômicas fortes e pragmáticas, frequentemente criticadas pela esquerda, Lula pregou a visão de uma forte parceria entre os setores público e privado, que em seus oito anos de poder resultaram na criação de pelo menos dez milhões de empregos. O papel central do BNDES, o banco de desenvolvimento brasileiro, e de corporações paraestatais foi crítico para assumir riscos e desenvolver uma estratégia industrial e de infraestrutura que abriu novos setores da economia e atraiu capital privado.
A expansão da indústria do etanol levou o Brasil à autossuficiência em energia e abriu novas oportunidades para agricultores em terras impróprias para cultivar alimentos. Agências científicas como a Embrapa desenvolveram novas tecnologias e criaram novas e melhores variedades de sementes, que aumentaram a eficiência agrícola, deram ao Brasil segurança alimentar e tornaram o país o poder global da agricultura.
Em nome do Banco de Desenvolvimento do Sul da África, fui convidado a falar aos líderes dos setores público e privado do Brasil que estão investindo na África.
Argumentei que a filosofia de investimento dessas empresas deveria incluir as políticas sociais que fizeram do Brasil um sucesso. Nosso grande desafio na África é alimentar nosso povo e enfrentar a esmagadora pobreza e desigualdade. A África passou de exportadora de alimentos nos anos 60 a dependente de ajuda alimentar externa — como demonstrado pela recente crise no Chifre da África. Dos famintos do mundo, 250 milhões vivem na África e uma de cada três crianças tem o crescimento retardado ou é desnutrida. Com a população da África atingindo 2,5 bilhões até 2050, mais da metade viverá nas cidades e a vasta maioria terá menos de 25 anos de idade. O desemprego de jovens e o desespero da fome são bombas-relógio esperando para explodir.
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Com 80% da terra utilizável não cultivada e quase dois terços dos países africanos importadores de alimentos, esta é uma imensa oportunidade para o tipo de parceria entre o Brasil e a África que traria benefícios mútuos, com a transferência de conhecimento, tecnologia e o aumento da capacidade de produção dos pequenos agricultores africanos. Uma parceria distinta das notórias “land grabs” [1], frequentemente negócios fechados com líderes corruptos, que servem apenas à segurança alimentar de estrangeiros e levam, no fim, a nações marcadas pelo ressentimento social e pela instabilidade.
Em segundo lugar, disse que a África está se mexendo em direção a maior transparência no enfrentamento da nossa “maldição dos recursos” [2]. Há um impulso por maior transparência nos negócios da mineração. O Natural Resource Charter definiu os princípios para exploração de riquezas que traga benefícios em impostos para promover a defesa do meio ambiente e o desenvolvimento social. Isso implica em benefícios que atinjam a maioria dos cidadãos e não apenas as elites políticas predadoras.
A Extractive Industries Transparency Initiative define as regras globais de transparência para a exploração de petróleo, gás e minérios e foi adotada pelo G20. A sociedade civil e uma parceria entre governos e empresas está construindo uma campanha global em defesa de informação pública sobre todos os contratos, para que as empresas publiquem quanto pagam aos governos e os governos digam quanto recebem das empresas. Como disse uma senhora do Quênia, “se estamos andando sobre ouro, por que somos tão pobres?”. Centenas de milhões de africanos querem a resposta. Estamos fartos da corrupção de poucos, que deixou a maioria vivendo em condições de guerra civil, conflito, fome e pobreza.
Em terceiro lugar, fiz um apelo pela transferência da tecnologia que tornou o Brasil autossuficiente em energia. Mais de dois bilhões de pessoas não têm acesso a eletricidade e a maioria delas vive na África. O Brasil não foi bem sucedido apenas em quebrar barreiras científicas para a produção de etanol, mas também melhorou sua capacidade em plataformas como a solar, de vento, biomassa, hidrelétrica, de purificação de água e de saneamento. A África seria capaz de aproveitar essas tecnologias — como fizemos com os telefones móveis [3] — e saltar direto para o século 21.
Eu acredito que nossas maiores fraquezas, em pleno boom global de commodities, foram a incerteza política, a corrupção e a falta de transparência, sem as quais poderíamos melhorar a posição de barganha africana, rendendo benefícios máximos ao povo da África, em vez de ajudar elites avaras que hoje governam muitos países. Construir uma sociedade civil robusta e dinâmica, que influencia com vozes progressistas os governos e negócios, globalmente, é uma prioridade de ontem. Na África, deveríamos começar por exigir nosso direito de ter governos responsáveis, que coloquem os interesses de nosso povo no centro do palco.
Mais que qualquer coisa, a África do Sul — de fato, toda a África — precisa de esperança. Esperança e crença de que amanhã será melhor que hoje. Se o povo da África continuar acordando em um mundo que é pior que ontem, a “Primavera Árabe” vai se tornar o “Verão Africano”, que vai varrer do poder os corruptos que mantiveram nosso continente acorrentado muito depois de nós termos vencido a luta pela liberdade. Não será um cenário bonito.
PS do Viomundo: É engraçada esta sensação descrita pelo autor. Depois de minha mais recente viagem ao México e aos Estados Unidos, voltei ao Brasil com a mesma sensação que ele teve, apesar dos imensos problemas que ainda enfrentamos por aqui.
Notas
[1] Land grab, literalmente, “agarrar terra”, ou apropriação de terras, é um processo em andamento em várias regiões da África, potencialmente explosivo especialmente em áreas com tradição de uso comunitário das terras. Na Etiópia, por exemplo, o próprio governo fez acordo com investidores da Península Arábica, para desenvolver a agricultura de exportação. Reportagem do diário britânico Guardian a respeito.
[2] “Resource curse”, ou maldição dos recursos, é usado para definir riquezas que, em vez de melhorar a vida das populações locais, acabam piorando, por gerar conflitos. Podemos dizer, por exemplo, que existe maldição de recursos no Congo, riquíssimo em um mineral muito usado para fazer componentes de aparelhos celulares, o coltan; ou no delta do rio Níger, na Nigéria, onde grupos locais combatem a produção de petróleo que só enriquece as elites que fazem parceria com estrangeiros.
[3] Em vários paises africanos, o desenvolvimento da telefonia celular matou no berço o desenvolvimento da telefonia fixa. No Quênia, as empresas de telefonia substituiram os bancos, com a transferência de dinheiro “eletrônico” feita por créditos em celulares. Em Nairobi, até passagem de matatu [a lotação local] dá para pagar usando mensagem de texto.
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