Boletim da USP desqualifica vítimas da ditadura, ex-preso político repele

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Ivan Seixas: Não se pode calar as vozes dissidentes na USP com carteiradas

por Conceição Lemes

Em 3 de outubro de 2011, nós denunciamos aqui: USP homenageia vítimas da “Revolução de 1964″?

Como num verdadeiro abracadabra, essa placa apareceu na Cidade Universitária no final do ano passado. Mais precisamente na Praça do Relógio, em frente ao anfiteatro, ao lado do bloco A do CRUSP. Ela anunciava que ali estava começava a ser feito um Monumento em Homenagem a Mortos e Cassados na Revolução de 1964.

Alunos, professores e funcionários administrativos da USP ficaram sem entender. Nem mesmo professores que trabalham com direitos humanos tinham ciência do que realmente se tratava.  Não se tem ideia do que simbolizará nem como será o seu desenho.

“Se o monumento é para as vítimas da ‘revolução’, então ele não é da esquerda, e sim de eventuais torturadores que morreram, como o Fleury [delegado Sérgio Paranhos Fleury]”, questionou na época, ao Viomundo, o professor Lincoln Secco, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

A cientista social Maria Fernanda Pinto observou: “Como instituições de Direitos Humanos propõem um monumento aos que foram mortos pela ditadura com esse nome de ‘Revolução de 64’? Revolução de 64 é a pauta da direita. Para nós, foi um golpe militar-civil. E por que pontuar 1964? É como se os 20 anos da ditadura não tivessem existido. Só que existiram e muitos tombaram”.

“O que todos nós esperamos é que haja um monumento em memória das vítimas do Golpe de 64 nanossa universidade”, salientou então o professor Lincoln Secco. “Proporcionalmente, a USP foi uma das instituições que mais perderam alunos e professores assassinados.”

A  reportagem do Viomundo foi postada no dia 3 de outubro  às 16h40. Nas horas seguintes a placa foi pichada.

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“Quando eu passei por lá à noite, já estava escrito golpe”, contou Alana Marquesini, 23 anos, estudante de Ciências Políticas da USP. “Aí, escrevi ‘ditadura!’. Voltei hoje  e acrescentei ‘massacre’.”

“Escrevi ditadura e massacre, porque  me agrediu muito como cidadã, brasileira, estudante de Ciências Políticas”, prossegue Alana, que viu a placa pela primeira vez na terça-feira da semana passada. “Fiquei indignada e fui levando outras amigas. Só quando as pessoas viam é que se davam conta do absurdo. Um erro crasso. ”

A ministra Maria do Rosário, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, indignada, detonou:  Essa placa na USP é um absurdo.

Em seguida, a sua assessoria de imprensa nos enviou por e-mail a sua posição: Farei contato com o reitor para mudar imediatamente a inscrição na placa”.

A Petrobras, também por e-mail, informou que o nome do projeto que patrocina era outro.

No dia 4 de outubro à tarde, a Reitoria da USP, por meio da sua assessoria de imprensa, nos enviou por e-mail, o seguinte esclarecimento:

“Houve um erro na inscrição da placa. O nome correto é: Monumento em Homenagem aos Mortos e Cassados no Regime Militar. Trata-se de um projeto do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. A correção da placa será feita o mais breve possível.

Por favor, peço a gentileza de que inclua este esclarecimento em sua matéria, pois o NEV é um grupo de pesquisa reconhecimento nacional e internacionalmente e não pode ser exposto dessa forma por um erro na placa da obra”.

Criado em 1987, o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEVUSP) tem como um dos seus coordenadores o professor Sérgio Adorno. O professor Paulo Sérgio Pinheiro, especialista em direitos humanos, também integra o núcleo, onde atua como pesquisador associado.

Foi ele quem nos endereçou em 6 de outubro, através da assessoria de imprensa do NEV, uma nota de esclarecimento intitulada Memorial aos Membros da Comunidade USPVítimas do Regime da Ditadura Militar – 1964/1985 da qual destacamos dois trechos abaixo ( íntegra pode ser lida aqui):

Em 2010, o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP) teve a iniciativa de propor à Reitoria da Universidade de São Paulo a construção de um Memorial em homenagem aos membros da comunidade USP que foram perseguidos durante o regime autoritário que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. A Reitoria manifestou apoio ao projeto, inclusive comprometendo-se a ceder a área em terreno da Universidade.

……

Para viabilizar esta homenagem o NEV/USP, com apoio da Reitoria, associou-se à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, à FUSP e à Petrobrás. Esse consórcio forneceu os fundos necessários à obra física do Memorial (sic).

……

Como a nota de esclarecimento era insuficiente para colocar certos pingos nos is, solicitamos mais esclarecimentos ao professor Paulo Sérgio Pinheiro e ao NEV. Apesar de vários e-mails (a ambos) e telefonemas (à assessoria de imprensa do Núcleo), eles não responderam as nossas perguntas.

Aliás, num e-mail que o professor Paulo Sérgio enviou disse:

Conceição,
espeto que vs ajudem a salvrbo mmorial depois da controversia  se conta que nunca na Usp e a primeira vez que um reitor faz um homenagem aos cassados,mortos e presos professores,alunos e funcipnaros da Usp 21 anos depois do fim d ditadura…” (sic)

Eu repliquei: “Como ajudar a salvar o memorial, se a Reitoria, o NEV e o senhor me sonegam as informações necessárias para esclarecer definitivamente essa história?”

Quase cinco meses depois, o Memorial às Vítimas da ditadura na USP está de volta ao debate. É um dos pontos abordados no Manifesto pela Democratização da USP:

Nós, perseguidos pelo regime militar, parentes dos companheiros assassinados durante esses anos sombrios e defensores dos princípios por eles almejados assinamos este manifesto como forma de recusa ao monumento que está sendo construído em homenagem às chamadas “vítimas de 64” na Praça do Relógio, Cidade Universitária, São Paulo.

Um monumento na USP já deveria há muito estar erguido. É justo, necessário, e precisa ser feito. Porém, não aceitamos receber essa homenagem de uma reitoria que reatualiza o caráter autoritário e antidemocrático das estruturas de poder da USP, reiterando dispositivos e práticas forjadas durante a ditadura militar, tais como perseguições políticas, intimidações pessoais e recurso ao aparato militar como mediador de conflitos sociais. Ao fazer isso, essa reitoria despreza a memória dos que foram perseguidos e punidos pelo Estado brasileiro e pela Universidade de São Paulo por defenderem a democratização radical de ambos.

Monumento e manifesto constam também do USP Destaques 56. Na matéria  “A Democracia na USP”, o boletim da Assessoria de Imprensa da Reitoria, chama os signatários de autointitulados “perseguidos pelo regime militar, parentes de companheiros assassinados… e defensores os princípios por eles almejados”.

Entre os chamados autointitulados “perseguidos pelo regime militar, parentes de companheiros assassinados…”, estão várias vítimas uspianas e não uspianas da ditadura, como  Criméia Alice Schmidt de Almeida, Edson Teles, Janaína Teles, Maria Amélia de Almeida Teles, Takao Amano, Ivan Seixas, Leonel Itaussu, Benjamin Abdala Junior, Emília Viotti da Costa, José Damião de Lima Trindade, Maurice Politi, Wolfgang Leo Maar.

Há familiares que assinaram em nome de pessoas assassinadas pela ditadura: André Grabois, Bento Prado Jr, Caio Prado Jr, Helenira Resende de Souza Nazareth, Heleny T. F. Guariba, Luiz Eduardo Merlino, Zuzu Angel.

Há vários professores da USP, como Marilena Chauí, João Adolfo Hansen, Fábio Konder Comparato, Luiz Costa Lima, Ismail Xavier, Paulo Eduardo Arantes, Nabil Bonduki.

Ivan Seixas, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – São Paulo (Condepe-SP) e uma das vítimas da ditadura, também assina.  Embora o Manifesto pela Democratização da USP lide com questões específicas da universidade e Ivan não tenha ligação com elas, ele foi um dos primeiros signatários. Daí a nossa entrevista:

Viomundo – Por que você assinou o Manifesto?

Ivan Seixas – Assinei, porque acho justa e legítima a preocupação da comunidade uspiana com a transparência e o resgate histórico. Não acho correto o uso da expressão “autointitulados perseguidos…” que está na nota da administração da USP. Creio que devem ter a palavra não apenas os autointitulados democratas, mas todos os preocupados com temas relevantes para a vida do país. Afinal, a vida acadêmica é muito relevante para o Brasil.

A ideia da existência de autointitulados democratas leva à autoritária e arrogante premissa de que os adversários não têm o direito de falar. Nunca é demais lembrar que autointitulados democratas se calaram (ou aplaudiram, mesmo!), em 1964, quando houve o assalto ao poder e foi implantada a ditadura que infelicitou o país por 21 longos anos. Nesses anos terríveis, as universidades perderam sua autonomia, a PM e as outras polícias da ditadura invadiram a USP e outras universidades, foram implantadas as DSIs (Divisão de Segurança e Informação), estudantes foram perseguidos e proibidos de estudar, professores foram demitidos e proibidos de trabalhar.

Os autointitulados democratas venderam a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, as Diretas Já! e a exigência por punição aos torturadores.

Neste momento delicado da vida nacional, não podemos dar a ninguém o direito de tentar calar as vozes dissidentes com carteiradas, poderes burocráticos ou autoproclamações autoritárias.

Assinei, portanto, o manifesto não apenas por causa da construção do monumento às vítimas da ditadura na USP.

Viomundo — O que acha de o boletim da Reitoria da USP ter desqualificado os que assinaram o manifesto?

Ivan Seixas – Aos 16 anos de idade, fui capturado com meu pai, o operário mecânico Joaquim Alencar de Seixas. Fomos torturados juntos, e ele foi assassinado sob torturas no DOI/CODI- II Exército. Fiquei em poder dos torturadores por quase seis anos seguidos.

Minha mãe e duas irmãs também foram capturadas e permaneceram em poder da ditadura, autointitulada democrática, por um ano e meio, sem qualquer acusação. Uma de minhas irmãs sofreu violências sexuais. Minha casa foi saqueada pelo militares.

Há, portanto, entre os que assinam o manifesto gente que foi perseguida pela ditadura e é parente de assassinados pela ditadura. Desqualificar os signatários é tentar calar a voz de adversário não é coisa de verdadeiros democratas.

Viomundo – Considerando o clima de perseguição existente na USP nos últimos tempos, você acha que os uspianos vítimas da ditadura gostariam de ter seus nomes ligados à atual administração?

Ivan Seixas – Assim como a história não pertence a quem quer que seja, os memoriais em homenagem às vítimas da ditadura também não pertencem às administrações. Esse memorial é da comunidade uspiana e assim deve ser encarado. O alunado, o professorado e os funcionários devem se apropriar dele como pertencente à comunidade uspiana.

Viomundo — Por sugestão do professor Fábio Konder Comparato, os organizadores do Manifesto junto a outras entidades e grupos irão propor a instalação de uma Comissão da Verdade na USP. Ela terá o papel de apurar os excessos, delações e perseguições ocorridos durante o regime militar, com a conivência ou participação direta de membros da comunidade universitária da época.  O que acha de uma Comissão da Verdade para a USP, já que foi uma das universidades mais atingidas pela ditadura?

Ivan Seixas – A rigor, todas as universidades devem instalar Comissões da Verdade, pois as arbitrariedades cometidas dentro delas nunca foram apuradas. Do mesmo modo, sindicatos e associações de classe também devem fazê-lo, pois os olhos e braços da ditadura estiveram presentes em todos os lugares e seus reflexos e herdeiros ainda estão entre nós.

A USP teve um grande número de pessoas atingidas pelo decreto 477, muita gente foi presa dentro do campus e os registros de mortes de uspianos, alunos (as) e professores (as) nos obriga a exigir a instalação de uma Comissão da Verdade.

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