Luiz Moreira: Ação Penal 470, sem provas nem teoria

Tempo de leitura: 3 min

por Luiz Moreira, na Folha de S. Paulo

Em 11 de novembro, a Folha publicou entrevista com o jurista Claus Roxin  (reproduzimos AQUI) em que são estabelecidas duas premissas para a atuação do Judiciário em matéria penal. Uma é a comprovação da autoria para designar o dolo. A outra é e que o Judiciário, nas democracias, é garantista.

Roxin consubstancia essas premissas nas seguintes afirmações:

1) “A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção [“dever de saber”] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados.”

2) “É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito”.

Na seara penal, portanto, o Judiciário age como a instância que garante as liberdades dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de forma inequívoca o que alega.

Assim, atribui-se ao Judiciário o desempenho de um papel previamente estabelecido, pelo qual “fazer justiça” significa o cumprimento correto dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

Com Roxin, sustento que cabe ao Judiciário se circunscrever ao cumprimento de seu papel constitucional, de se distanciar da tentativa de se submeter ao clamor popular e de aplicar aos jurisdicionados os direitos e as garantias fundamentais.

Nesse sentido, penso que, durante o julgamento da ação penal 470, o STF se distanciou do papel que lhe foi confiado pela Constituição de 1988, optando em adotar uma posição não garantista, contornando uma tradição liberal que remonta à Revolução Francesa.

Esses equívocos conceituais transformaram, no meu entender, a ação penal 470 num processo altamente sujeito a contestações várias, pois o STF não adotou corretamente nem sequer o domínio do fato como fundamento teórico apropriado. Tais vícios, conceitual e metodológico, se efetivaram do seguinte modo:

Apoie o VIOMUNDO

1) O relator criou um paralelo entre seu voto e um silogismo, utilizando-se do mesmo método da acusação. O relator vinculou o consequente ao antecedente, presumindo-se assim a culpabilidade dos réus.

2) Em muitas ocasiões no julgamento, foi explicitada a ausência de provas. Falou-se até em um genérico “conjunto probatório”, mas nunca se apontou em que prova o dolo foi demonstrado.

Por isso, partiu-se para uma narrativa em que se gerou uma verossimilhança entre a ficção e a realidade. Foi substituída a necessária comprovação das teses da acusação por deduções, em que não se delineia a acusação a cada um dos réus nem as provas, limitando-se a inseri-los numa narrativa para chegar à conclusão de suas condenações em blocos.

3) Por fim, como demonstrado na entrevista de Roxin, como as provas não são suficientes para fundamentar condenações na seara penal, substituíram o dolo penal pela culpa do direito civil.

A inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a criar relações entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que algo realmente acontecera. Ocorre que essas deduções são próprias ao que no direito se chama responsabilidade civil, inaplicável ao direto penal.

Luiz Morreira, 43, doutor em direito e mestre em filosofia pela UFMG, é diretor acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem

Leia também:

Pedro Serrano: Só o Congresso pode cassar o mandato de deputados envolvidos no mensalão

Mauricio Dias: Roberto Gurgel volta a atacar

Santayana: Julgamento da AP 470 corre o risco de ser um dos erros judiciários mais pesados da História

Lewandowski, um desagravo ao Direito brasileiro

PT: STF não garantiu amplo direito de defesa, fez julgamento político e desrespeitou a Constituição

Nassif: Por que o ministro Ayres Britto se calou?

Marcos Coimbra: A pretexto de ‘sanear instituições’, o que a mídia e o STF desejam é atingir adversários

Leandro Fortes:Trâmite do mensalão tucano desafia a noção de que o Brasil mudou

Lewandowski: “A teoria do domínio do fato, nem mesmo se chamássemos Roxin, poderia ser aplicada”

Jurista alemão adverte sobre o mau uso de sua “Teoria do Domínio do Fato”Patrick Mariano: Decisão do ministro Joaquim Barbosa viola a Constituição e as leis vigentes

José Dirceu acusa Joaquim Barbosa de “populismo jurídico” e diz que “não estamos no absolutismo real”

Bernardo Kucinski: Macartismo à brasileira

Ramatis Jacino, do Inspir: O sonho do ministro Joaquim Barbosa pode virar pesadelo

Comparato: Pretos, pobres, prostitutas e petistas

Dalmo Dallari critica vazamento de votos e diz que mídia cobre STF “como se fosse um comício”

Rubens Casara: “Risco da tentação populista é produzir decisões casuísticas”

Luiz Flávio Gomes: “Um mesmo ministro do Supremo investigar e julgar é do tempo da Inquisição”

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Leia também