Marcelo Zelic: O eterno retorno do mesmo

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Jornal  Última Hora — 13/03/1998  

por Marcelo Zelic

O estado brasileiro ao lidar com o indígena no Brasil teve sua evolução institucional através da criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que entre o período de 1946 a 1988 (corte temporal da Comissão Nacional da Verdade) foi em parte deste período subordinado diretamente ao Ministério da Agricultura.

A situação perdurou até que na imprensa, tornaram-se públicas denúncias que expuseram as consequências desta vinculação contraditória em interesses e fins, denunciando corrupção desenfreada, precarização do serviço e atendimento aos índios, massacres, conflitos, torturas, escravidão, chegando até a falar-se em genocídio ou etnocídio, além da tomada e exploração ilegal de suas terras.

O SPI foi então transferido para o Ministério do Interior, que em uma de suas primeiras medidas criou a Comissão de Investigação do Ministério do Interior que documentou períodos de tristes lembranças para os povos indígenas brasileiros.

Em 1967 é extinto o SPI e cria-se a FUNAI, que continuou subordinada ao Ministério do Interior, passando durante a presidência de Fernando Collor de Mello ao Ministério da Justiça, onde mantém seu vínculo institucional até hoje.

O Ministério da Agricultura, como já mostrou-nos a experiência histórica, possui interesses conflitantes com uma política pública de respeito à cultura, recuperação de áreas subtraídas, demarcação e preservação destas áreas de existência das populações indígenas do Brasil. O mesmo podemos dizer sobre os demais órgãos que a Ministra Gleisi Hoffmann propõe que sejam “consultados”.

Retornar a questão da demarcação de terras indígenas e as políticas públicas voltadas aos índios à esfera de influência do Ministério da Agricultura, em cuja gestão no SPI foram cometidos as barbaridades contidas no Relatório Figueiredo, é um enorme retrocesso civilizatório.

O estudo do conteúdo do Relatório Figueiredo possibilita à sociedade uma reflexão no sentido de se evitar o retrocesso proposto pela Ministra da Casa Civil e evoluirmos sim, inclusive como forma de reparação às violências sofridas pelos povos indígenas que vivem no Brasil, para a criação pela Presidência da República de uma Secretaria Especial dos Povos Originários, com status de Ministério e vínculo direto à presidenta Dilma, como o é, por exemplo, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, inserindo-se assim a questão indígena também na perspetiva da justiça de transição.

Será este um caminho de reparação e não do eterno retorno do mesmo, pois aí podemos obter uma evolução real da situação dos povos indígenas brasileiros, visando uma adequação da política de desenvolvimento de nosso país, baseando-a também no respeito à pessoa e à cidadania, para não continuarmos a repetir as violações de direitos contra indígenas que começam a aparecer nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.

Apesar de ser um avanço frente às situações dos vínculos institucionais anteriores, a subordinação ao Ministério da Justiça é também vulnerável e sujeita a “vacilos, chuvas e trovoadas”, tendo este órgão de estado importante atuação no começo da década de 1970, no sentido de abafar as denúncias contidas no Relatório Figueiredo e deixar impunes servidores e autoridades citadas, ação que se estendeu também no âmbito das relações exteriores, visando cuidar da imagem do país.

No passado, fechou-se o SPI e houve durante muitos anos somente uma mudança de nome, mantendo-se as práticas retratadas no Relatório Figueiredo e cuja continuidade estão registradas, por exemplo, na CPI do Índio de 1977, que se debruçou sobre a situação do índio como consequência de 10 anos de gestão da FUNAI, contendo inúmeros depoimentos tomados na Câmara do Deputados, como o ao lado.

A dinâmica do eterno retorno do mesmo enraizada no Ministério da Justiça, se expressa na postura equivocada e na ausência de defesa, por parte do Ministro José Eduardo Cardoso, da plena autonomia e fortalecimento, em vez do desmonte, de um órgão como a Fundação Nacional do Índio, vinculado à sua pasta.

Em tempos de Comissão Nacional da Verdade cabe ao governo federal dar exemplo, diferenciando suas atitudes das praticas pouco democráticas de nosso passado recente, priorizando medidas que fortaleçam mecanismos de não-repetição em vez daquelas que garantam a primazia do eterno retorno do mesmo.

A solução aos olhos dos direitos humanos, do direito interno e internacional, bem como do necessário processo de justiça de transição, incluída claro, a situação vivida pelos indígenas, longe de ser o desmonte, a extinção ou mudança de nome da FUNAI, consiste sim, em tornar público este passado sombrio manchado de sangue e mudar condutas, para termos um Brasil melhor, plural e democrático.

Proporcionar respeito, investindo recursos na instituição, através de um “PAC” indígena, voltado para a construção de mecanismos eficazes de mediação de conflitos, demarcação e desintrusão das terras indígenas, de mecanismos de não-repetição, tais como uma vara própria de assuntos ligados aos povos indígenas, dinamizando o tramite processual e critérios de efetiva participação indígena nos cargos de direção da FUNAI e não só em assessorias.

Que bom seria se a exemplo do Ministério Público Federal e outras tantas instituições públicas, onde o conjunto de seus membros indicam os nomes para as instâncias de gestão, Brasília recebesse os representantes dos vários povos do Brasil para que num grande encontro indígena, pudessem eles indicar os nomes daqueles que desejam ser as pessoas a dirigir a FUNAI e suas vidas.

Se isso ocorresse, cenas como as narradas por Ruy Sposati, onde numa operação contra a extração de ouro ilegal em terras do povo Munduruku, um de seus membros foi assassinado por agentes da Força Nacional e tantos outros foram feridos ou aterrorizados com armas não-letais.

Em matéria publicada no jornal Brasil de Fato em 27/11/2012, Ruy Sposati registra relatos do eterno retorno do mesmo em ação em pleno século 21:

Viu as dragas e as balsas pegando fogo, enquanto sobrevoava o rio Teles Pires. Uma bomba passa ao lado do avião, à direita. No campo de visão de V. M., não havia indígenas.

O bimotor desce – a pista de pouso não fora destruída. Havia rastros de sangue no chão, marcas de bala nos telhados e nas paredes. Espalhados pelo caminho, restos de cartuchos, munições e carcaças de bombas. Todas as casas estavam com as portas arrombadas.

E então a comunidade começa a sair e ir ao encontro de V. Estavam todos escondidos nas casas, assustados com a chegada do avião. Reúnem-se no barracão e explicam à liderança Munduruku do que tinham medo.

V. ouve, então, os relatos de uma série de pessoas baleadas, machucadas, queimadas, ainda afetadas pelo spray de pimenta. Uma mãe chorava desesperadamente: sua filha de cinco anos estava desaparecida. Achava que poderia estar morta, pois havia se perdido dela na mata. Havia uma mulher com o rosto inchado por causa de um soco que o policial lhe deu. Os professores não-índios que trabalham na comunidade também foram agredidos. Todas as embarcações foram explodidas ou fuziladas e afundadas. Os barcos de pesca foram danificados ou destruídos. As armas de caça, quebradas ou levadas.

Dinheiro e ouro foram roubados. Computadores – entre eles, os da saúde e das escolas – foram inutilizados. A escola foi alvejada por tiros e bombas nas paredes e telhado. Celulares e câmeras foram tomados, esmigalhados, jogados no rio ou tiveram seus cartões de memória apreendidos. Os motores de popa da saúde foram lançados ao rio. Fiações do telefone comunitário foram cortadas e o rádio da aldeia confiscado, impedindo qualquer contato de indígenas com outras aldeias. O carro da aldeia foi carbonizado.”

Reparar os atingidos, proceder à justiça, cível, penal e territorial, garantir direitos, bem como gerar processos educacionais nas cidades e no campo, para que a verdade que se manifesta pela memória e documentação que hoje vem a tona, possa proporcionar às gerações de brasileiros, a compreensão do sentido de palavras como respeito à diversidade e direitos iguais.

Proporcionando assim, um pensar e agir diferentes da lógica do desenvolvimento sem respeito, que leva povos originários do Brasil a viverem em beiras de estradas no Mato Grosso do Sul, situação fruto do esbulho de terras indígenas, como por exemplo a denunciada no mapa contido nos autos do Relatório Figueiredo de 1968, que registra a invasão das terras da Colônia Indígena Teresa Cristina naquele estado, documento desaparecido há mais de 40 anos.

Como aceitar o argumento da Ministra da Casa Civil de que milhões de reais serão perdidos se a FUNAI continuar a demarcação de terras no Paraná, se processo similar ao de Mato Grosso do Sul aconteceu em terras paranaenses? Mediante as evidências acima o governo Dilma, cuja Presidenta viveu no corpo as dores da tortura e a opressão destes tempos, decidirá pelo lado do eterno retorno do mesmo? Permitirá que questões eleitorais se sobreponham a questões de estado?

Em Belo Monte os excessos praticados, ou seja, desqualificar a liderança Munduruku e não negociar, negar o acesso da imprensa ao canteiro de obras, cercear o direito de acesso aos advogados, bem como revistar a comida a ser consumida, numa operação psicológica, como se os manifestantes estivessem em uma cadeia, visando a retirada dos indígenas do canteiro de obras pela força e medo, são manifestações do eterno retorno do mesmo em nosso presente.

O desenvolvimento sem respeito é um entrave para que haja “um país de todos”, por isso a necessidade da criação de uma secretaria especial específica à qual a FUNAI seja subordinada e que se dedique exclusivamente às questões indígenas, tendo igualdade institucional e autonomia para sanar e resolver os graves problemas que vivem os índios e índias em nosso país, é a evolução saudável a ser feita, que proporcionará o respeito devido aos povos indígenas, para sermos um país rico e sem pobreza, mas eliminando também a pobreza ética e moral, que é tão nocivo e prejudicial como a miséria extrema combatida pelo governo Dilma.

O Relatório Figueiredo é uma documentação que ficou escondida da sociedade há tantos anos e que só pôde vir a público devido ao ambiente gerado pela existência da Comissão Nacional da Verdade, é também uma oportunidade para que a sociedade e os Três Poderes da República reflitam seriamente antes de promover mudanças como as propostas pela Ministra da da Casa Civil Gleisi Hoffmann, que evidentemente só trará o eterno retorno do mesmo.

É preciso que o governo federal mude de conduta, não reproduza e não estimule comportamentos e praticas que foram os responsáveis pelas inúmeras barbaridades contra a pessoa, a renda e a propriedade do índio, apontadas pelo procurador Jader de Figueiredo Correa em 1968 em seu relatório, com documentação probatória espalhada nos autos do processo e não resolvida.

O desmonte das perrogativas da FUNAI contidas nas atuais propostas da Ministra da Casa Civil, na Portaria 303 da AGU e em vários projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional, não colaboram para que mudemos comportamentos e formas de relação, ainda impregnadas de posturas e condutas resultante de um longo período de ditadura vivido em nossa sociedade e cujas praticas não foram combatidas devidamente no período democrático.

É preciso conhecer e estudar a fundo o Relatório Figueiredo, para que a sociedade evolua em seus conceitos frente à diversidade de nossa origem e o direito de plena existência dessas pessoas diferentes, em hábitos, crenças e cultura, que vivem em nosso país.

Integrar o índio, diferente do que foi pregado e perseguido pelas gestões de vários presidentes, legítimos ou não, pode ser entendido como reconhecer a existência dos povos indígenas, desenvolvendo a noção de pertencimento, de que estas pessoas diferentes são parte da nação brasileira e que como tal, respeitemos sua terras, como civilizadamente respeitamos os limites da lei e jurisdição nas relações entre municípios e estados, que seja aplicada esta civilidade também às Terras Indígenas.

Cenas como as descritas acima, retratadas em 1968, 1977 e 2012, atentam aos direitos humanos e são praticas do eterno retorno do mesmo, que têm causado muita dor a estes povos, se perpetuando em nossa sociedade.

Quiça possamos ver brotar no governo Dilma, atitudes como a do governador Miguel Arraes, que antes de ser deposto em 1964, enfrentou com atitudes as praticas do eterno retorno do mesmo, fazendo latifundiários e camponeses sentarem-se à mesa do Palácio do Governo na perspectiva de se resolver os problemas e disputas em rodas de negociação. É esta outra importante experiência esquecida de nossa história.

Em nossa sociedade há um preocupante retrocesso em direitos humanos, cujas luzes amarelas ascendem em vários setores de nossa sociedade e nos alertam para os perigos da repetição a cada nova tragédia, seja pela não existência de regulamentação federal que atinja todo o país e discipline o emprego e uso de armamentos não-letais, diga-se, cada vez mais usados contra o povo brasileiro, seja no pouco caso da articulação do governo na Câmara dos Deputados que rifou a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, permitindo que forças que atuam pelo eterno retorno do mesmo se tornassem hegemônicas, controlando este importante espaço de resistência nesta legislatura, ou ainda nas ações de grupos de extermínio, ligados às forças de segurança estaduais, que agem nas periferias de cidades como São Paulo, Goiania e outras localidades Brasil afora, afrontando a constituição e a democracia.

A forma como lidarmos enquanto parte não-índia da sociedade brasileira, com as questões postas acima no trato com os povos indígenas, mostrará o rumo que terá os direitos humanos e o processo civilizatório que desenvolveremos no Brasil nas próximas décadas. Basta um país de consumidores ou necessitamos de um país formado por cidadãos e cidadãs?

Faz-se urgente e necessário que a sociedade se posicione e se reúna em torno da construção de um estudo sério, para escrevermos juntos o Brasil Nunca Mais Indígena, que subsidiando a Comissão Nacional da Verdade poderá apontar novos rumos na nossa relação com os índios desta terra, bem como fortalecer a cidadania e a pratica dos direitos humanos no Brasil.

* Marcelo Zelic é Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do projeto Armazém Memória.

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Mardones

É preciso mais e mais mobilização para impedir que o Ministério da Agricultura – ocupado SEMPRE por apoiadores do agronegócio – seja responsável por qualquer etapa de processo que envolva a causa indígena.

Se preciso, faremos denúncias a órgãos internacionais. A Gleisi Hoffmann e sua falta de informação e respeito a respeito da causa indígena não é digna de seguir comandando esse assunto.

A equipe de Direitos Humanos do governo federal não pode deixar esse absurdo acontecer. O PT já se curvou em demasia aos interesses do agronegócio.

Basta!

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