Comissão da Verdade ou da Frustração?
por Pinheiro Salles*
Aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidenta Dilma, a lei que criou a Comissão da Verdade representa uma vitória da democracia. Mas uma vitória tímida, considerando as lutas que atravessaram 21 anos de ditadura e mais 26 após o fim oficial do regime que tão hediondos crimes praticou contra o povo brasileiro. Ainda: além de não ter a autonomia para a punição de quem cometeu violações dos direitos humanos, a comissão não concentra sua atuação no período da ditadura militar (1964-1985).
O projeto encaminhado pelo Poder Executivo ao Legislativo, em 20 de maio de 2010, mais uma vez demonstrou a subserviência do governo às Forças Armadas, arbitrariamente estendendo as averiguações entre 1946 e 1988, para fugir da caracterização de iniciativa contra o fascismo que vigorou no país. E veio o sofisma: “A fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. A presidenta acrescentou: “O Brasil inteiro se encontra consigo mesmo, sem revanchismo, mas sem a cumplicidade do silêncio”.
A verdade é que hoje, passados 32 anos da anistia política e 47 do golpe de Estado que implantou o medo e na vida dos brasileiros, o povo desconhece a real dimensão dos horrores daquela época. E só conhecendo profundamente os porões e suas barbáries, a população saberá erguer instrumentos que impeçam o ressurgimento dos malefícios superados. Se nos mais diversos aspectos a alegria do povo foi golpeada, a repressão política causou o maior dano à dignidade das pessoas. Para tornar infalíveis as ações repressivas, foram instalados organismos diretamente ligados aos ministérios do Exército, da Marinha e Aeronáutica.
Em São Paulo, criou-se a Oban (Operação Bandeirantes), para centralizar o terror, com aplauso dos comandantes militares, que logo decidiram transformá-la em Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), ampliando seu formato para todo o país. Também se destacaram, na prática da repressão, os seguintes órgãos: Dops (Departamento de Ordem Política e Social), delegacias regionais da Polícia Federal, Polícia Militar nos estados, Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Ademais, havia os centros de tortura clandestinos, como a famosa Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro.
E o que faziam os agentes contra quem não se omitia diante da truculência orquestrada pelos generais? Eles seqüestravam, torturavam, matavam, esquartejavam, decapitavam. Afundavam crânio, furavam olhos. Quebravam costelas, braços, pernas. Castravam, estupravam, extirpavam seios. Arrancavam dentes e unhas com alicate. Introduziam cassetetes em vagina de presas. Urinavam em cara de pessoas amarradas e penduradas em paus-de-arara. Afogavam crianças em banheira. Passavam carro sobre corpos enterrados em areia de praias. Aviltavam nossa condição humana. Ultrapassavam os nazistas na prática da violência física.
Se isso acontecia, até de forma mais exacerbada, por que o povo não cobra providências para passar tudo a limpo, apurar responsabilidades, punir os culpados? Por que a mácula da impunidade continua nos envergonhando perante instituições e demais países do mundo? Por que as crianças, os jovens e até idosos ignoram esses fatos ou têm uma visão distorcida sobre eles?
Por que apenas no Brasil, ao contrário da Alemanha, Espanha, do Chile, Argentina ou Uruguai, que também conheceram regimes autoritários, esse assunto não é tratado às claras, sem subterfúgios, de forma a forjar uma consciência sobre a nossa realidade, levando cada brasileiro a desempenhar seu papel na história, nunca permitindo a omissão e condescendência em tentativa da repetição desses acontecimentos? Finalmente, por que a Comissão da Verdade corre o risco de ser convertida numa enorme frustração, como se a montanha parisse um rato?
Houve avanços democráticos, não se pode negar, porque inabalável é a perseverança de ex-presos políticos e familiares dos 479 mortos e desparecidos, além de entidades, lideranças populares e autoridades ligadas à área de direitos humanos, a exemplo de Nilmário Miranda, Paulo Vannuchi e Maria do Rosário. Houve conquistas relevantes, sobressaindo-se a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei nº 9.140/95), que busca solução para os casos desses desafetos da ditadura, envidando esforços para a localização dos corpos.
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De grande importância, do mesmo jeito, é a Comissão Nacional de Anistia (Lei nº 10.559/02), assegurando o direito à reparação econômica das vítimas vivas. A propósito, vejamos uma justificativa consistente: “A anistia representa, nesse caso, o pedido oficial de desculpas do Estado brasileiro por ter perseguido aqueles cidadãos que ele tinha obrigação de proteger”.
Essas e outras conquistas impediram que os sobreviventes, os mortos e os desaparecidos voltassem a ser considerados subversivos, terroristas e bandidos. Mas os torturadores e demais criminosos, a despeito de todas as denúncias, permanecem guardados em uma inviolável e indevassável redoma. Protegidos de tal maneira eles estão que nenhum governo sequer tentou ameaçá-los. Nem mesmo quem sofreu na carne a brutalidade dos algozes, como a presidenta Dilma Rousseff. Por quê?
Grandes empresas, nacionais e estrangeiras, sempre estiveram presentes nesse processo, desde a preparação do golpe militar. Seus proprietários e dirigentes participaram das articulações, forneceram apoio logístico e garantiram parte do suporte financeiro exigido, inclusive para montagem e aperfeiçoamento dos centros de tortura. Com sua notória influência, deram e dão contribuição decisiva na consolidação da aliança entre Executivo, Legislativo e Judiciário, que, especialmente nessa questão, vêm agindo em estreita sintonia.
Confirmando isso, eis exemplos evidentes e atuais. O STF referendou a impunidade dos criminosos, não acatando pleito da OAB e não aceitando excluí-los do benefício da anistia. Governo e parlamentares se sentaram e costuram mais um espúrio acordo: dessa vez, retirando da Comissão da Verdade qualquer perspectiva de punição dos agentes diretos e indiretos que atuaram no curso do regime ditatorial. Assim, nem os novos porta-vozes da ditadura se opuseram ao projeto apresentado.
Tudo está integrado numa rede destinada a evitar a inclusão de determinadas personalidades, sobretudo de empresários e suas respectivas empresas, num escândalo de amplas proporções, com repercussão internacional. Por isso, todos estão relativamente tranqüilos, respaldados pela rigidez dos quartéis. E contam, naturalmente, com a complacência do governo federal, que tem uma inquestionável capacidade de manipulação, adquirida na recente história do Brasil.
Espero nunca ser silenciado, no meu dever de cidadão e de sobrevivente das masmorras, pelos meus inimigos de classe e por aqueles que conciliam com os inimigos da democracia. Pelas provações experimentadas, estou seguro de que jamais vou me calar sobre a injustiça, incluindo as atrocidades que sofri e testemunhei. Não vejo o perigo de conivência com o outro lado, porque, apesar das decepções, não deixarei de acreditar no ser humano, na humanidade, na vitória de um tempo sem violência e sem desigualdade.
Que o funcionamento da Comissão da Verdade não seja utilizado pelo Estado para argumentar que cumpre a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA sobre o caso da guerrilha do Araguaia. O governo tem de elaborar relatório com informações concretas a respeito das medidas efetivadas para punir os autores das execuções e outras barbaridades despejadas naquela região pobre do Brasil.
O fato é que a Comissão da Verdade pode ser salva, desde que o povo decida virar uma página da história, assumindo seu patriotismo e rebeldia. Confesso que estou enojado com as trapaças desse jogo sujo, que não respeita nem a memória dos nossos mortos. Mas meu otimismo persiste, valorizando a vida e a resistência. Se a verdade não se conquista com mentiras, a justiça não se constrói com desânimo.
Pinheiro Salles é jornalista e bacharel em Direito. Passou nove anos (1970-1979) nos cárceres do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Tem quatro livros publicados sobre a ditadura militar, dentre outros.
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