João Piza: “Venderam as jóias, impedimos que vendessem a Coroa”

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O tucano Geraldo Alckmin em 2006, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial

Eu vejo esse campo hoje com a luz bem vermelha na área bancária. O Brasil tem três bancos públicos gigantes em atuação — BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica –que nós sabemos da nossa historia, mas da história universal dos bancos públicos que esse é um modelo que não é favoravel ao crescimento e ao desenvolvimento com D maiúsculo. Ele tende a ser capturado por interesses públicos e privados, ele tende a alocar mal o capital e com frequência acumular prejuízos enormes também. Eu acho que essa área precisa de uma correção de rumo. Não tô advogando aqui fechar o BNDES ou coisa do gênero, mas penso que os bancos públicos precisam ser administrados com padrões muito mais rigidos. Provavelmente vai chegar um ponto que vai ficar claro até que eles talvez não tenham tantas funções. Não sei o que vai sobrar no final da linha, talvez não muito. Armínio Fraga, ministro da Fazenda num eventual governo Aécio Neves, em entrevista em 2014.

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Condena a globalização? Sou contra ver nossas teles sendo compradas por teles estatais de países estrangeiros. A privatização do antigo sistema Telebrás só serviu para aumentar tarifas e criar a dependência tecnológica.

Para quem participou das três privatizações mais polêmicas do país, qual foi a mais grave na sua opinião? Estamos quase empatados. A privatização da Vale do Rio Doce hipoteca nossas reservas mineiras. A venda da Telebrás é uma rendição porque permitimos que as futuras gerações de brasileiros não irão controlar a sexta player de teles do mundo. Abrimos mão da soberania nacional na área mais sensível para o século 21.

Nesta linha de raciocínio, o que representa a privatização do Banespa? Vamos abdicar da nossa soberania do sistema financeiro. Vamos perder instrumentos que podem nos proteger de uma eventual crise externa. Estamos ingressando no processo de globalização de forma subserviente e colonizada. João Piza, advogado, em entrevista à Folha em 2000.

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“Choque do Lehman [Brothers] e da [seguradora] AIG golpeia os mercados mundiais”, diz manchete do Wall Street Journal em 2008, quando estourou a crise financeira internacional que perdura até os dias de hoje

por Luiz Carlos Azenha

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Olhando em retrospectiva, as palavras ditas pelo advogado João Piza catorze anos atrás parecem proféticas: “Vamos perder instrumentos que podem nos proteger de uma eventual crise externa”, disse ele na entrevista do ano 2000, ao criticar a privatização do Banespa, vendido ao banco espanhol Santander.

Pois em 2008 foi justamente isso o que aconteceu. Desde então, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal tem desempenhado um papel fundamental na economia brasileira, apesar das críticas de que teriam beneficiado determinados grupos econômicos em detrimento de outros ou de que teriam sido “aparelhados” pelo governo de plantão.

Antes de prosseguir, dados que refutam factualmente trecho da entrevista de Armínio Fraga, que será ministro da Fazenda em um governo de Aécio Neves.

O lucro do BNDES no primeiro semestre de 2014, “o maior da história do banco”, foi de R$ 5,4 bilhões.

No primeiro semestre deste ano, o Banco do Brasil teve lucro de R$ 5,506 bilhões.

A Caixa Econômica Federal teve lucro de R$ 3,4 bilhões no primeiro semestre.

Voltando a João Piza, o escritório de advocacia que ele comanda em São Paulo moveu dezenas de ações para tentar impedir as privatizações durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Piza atuou representando sindicatos em ações civis públicas. Houve também dezenas de ações populares. Do esforço participaram juristas importantes, como Celso Bandeira de Mello e Fábio Konder Comparato.

Piza atuou especificamente nas privatizações — ou tentativas — de vender a Companhia Vale do Rio Doce, Telebrás, Banestes — banco estadual do Espírito Santo  –, Caixa Econômica do Estado de São Paulo (que foi incorporada à Federal), Banespa e CELG, a companhia energética do estado de Goiás.

Ao contrário do que pensam muitos brasileiros, ele diz que a luta foi vitoriosa. Compara a estratégia montada pelos opositores à resistência contra o cerco alemão de Stalingrado. “Montamos barricadas jurídicas”, afirma.

Isso impediu a privatização da Petrobrás e dos bancos públicos, que estava nos planos do PSDB — além de Furnas, que foi salva especialmente pela atuação do então governador de Minas Gerais, Itamar Franco.

Na entrevista, perguntei a João Piza se ele concordava que o Estado brasileiro tinha dado um tiro contra o próprio pé, ao se desfazer de patrimônio essencial para a soberania, além de ferramenta para levar adiante políticas públicas.

“O Estado atirou contra seu próprio povo”, disse.

Ele gosta de comparar o Brasil à Argentina, que diante de profunda crise econômica foi levada à bancarrota pela falta de instrumentos de Estado. “O Menem privatizou tudo, deixou apenas o Banco de La Nación falido na mão do sucessor”, lembra Piza, citando Carlos Menem, o ex-presidente argentino contemporâneo de Fernando Henrique Cardoso.

Da batalha travada no Brasil, o advogado guarda importantes recordações, que um dia quem sabe colocará em livro, “depois que os processos terminarem”.

É que os processos ainda estão em andamento na Justiça, tocados pelo Ministério Público Federal. No caso da Vale, segundo Piza, houve determinação para que seja feita uma perícia para avaliar se os ativos vendidos correspondem aos valores apurados no leilão.

O caso da Vale foi o mais grotesco, “um crime de lesa Pátria”, segundo definiu o jurista Fábio Konder Comparato em entrevista ao Viomundo.

[Para a entrevista completa de Comparato, clique aqui. Todo nosso conteúdo exclusivo é bancado pelos assinantes. Torne-se um deles clicando aqui]

Criada em 1942, no governo Getúlio Vargas, a Vale foi privatizada em maio de 1997, no primeiro mandato de FHC. À época a venda das ações estatais rendeu U$ 3,3 bilhões, uma fração dos lucros obtidos atualmente pela empresa, que se tornou a terceira maior mineradora do mundo. Foi a venda da Vale que deu origem ao termo “privataria”, cunhado pelo jornalista Elio Gaspari. A controvérsia central foi que o preço de venda considerou apenas a infraestrutura da empresa, não o potencial das reservas minerais sob controle da companhia — patrimônio pertencente ao povo brasileiro.

Citado em artigo do economista Adriano Benayon, o jurista Fábio Konder Comparato definiu as bases jurídicas de sua oposição à privatização da Vale:

Ao abandonar em 1997 o controle da Companhia Vale do Rio Doce ao capital privado por um preço quase 30 vezes abaixo do valor patrimonial da empresa e sem apresentar nenhuma justificativa de interesse público, o governo federal cometeu uma grossa ilegalidade e um clamoroso desmando político.

Em direito privado, são anuláveis por lesão os contratos em que uma das partes, sob premente necessidade ou por inexperiência, obriga-se a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta (Código Civil, art. 157). A hipótese pode até configurar o crime de usura real, quando essa desproporção de valores dá a um dos contratantes lucro patrimonial “que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida” (lei nº 1.521, de 1951, art. 4º, b). A lei penal acrescenta que são coautores do crime “os procuradores, mandatários ou mediadores”.

Piza se lembra de que, quando cuidava das ações para impedir o leilão, ouviu a opinião de engenheiros da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia, a Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, segundo os quais formações como as de Carajás, de onde a Vale retira minério de ferro, em geral escondem também reservas de ouro.

O argumento de que a privatização da Telebrás, em 1998, abriu caminho para competição e acabou com as longas filas de espera da telefonia, não convence João Piza. Na privatização do sistema de telefonia, Piza representou os engenheiros do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa em Campinas, o CpQD. Para o advogado, o Brasil deveria ter preservado a Telebrás pelo menos para competir com as empresas estrangeiras que hoje operam no País. “Hoje temos telefonia celular que está entre as mais caras e ruins do mundo”, argumenta.

Do ponto-de-vista jurídico, as maiores aberrações que viu foram na privatização do Banespa. Derrotado, o governo FHC recorreu a pareceres do então advogado geral da União, Gilmar Mendes, que formulou medidas provisórias assinadas por FHC para permitir que a União recorresse — primeiro ao Superior Tribunal de Justiça, onde foi novamente derrotado, depois ao Supremo Tribunal Federal.

No STF, Piza chegou a sentir o sabor de uma grande vitória, que se desfez da noite para o dia. “Fui dormir com uma vitória de 6 a 5 e acordei com uma derrota por 5 a 6”, relembra. Ele não sabe dizer quais foram os motivos que levaram dois integrantes do STF a mudar de lado.

De qualquer forma, João Piza se diz satisfeito com o resultado do trabalho político e jurídico daqueles que se opuseram às privatizações.  “Venderam as jóias da Coroa, mas não conseguiram vender a Coroa”, sentencia.

Se Armínio Fraga se tornar ministro da Fazenda, pelo visto, a Coroa estará mais uma vez em jogo.

Clique abaixo para ouvir a entrevista:

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