Grupo condena proposta de homenagear a Rota: Ditadura continuada

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Brasão da PM do Estado de São Paulo ostenta uma estrela em homenagem à “Revolução de Março de 1964”, segundo o site da instituição

À violência de Estado, uma Salva de Prata

do grupo Margens Clínicas

Pode soar contraditório, para alguns, que a concessão da homenagem “Salva de Prata” à Rota, proposta pelo ex-chefe do batalhão e hoje vereador Coronel Telhada (PSDB), seja condenada por aqueles que lutam pela garantia dos direitos humanos e pela efetivação de uma sociedade democrática. Afinal, o aparato policial deveria zelar pela integridade dos cidadãos e pelo cumprimento de leis democraticamente acordadas, ou seja, pelo bom funcionamento da sociedade. Nada mais justo, portanto, do que homenagear aqueles cidadãos que colocam suas vidas em risco em nome do bem-estar comum.

No entanto, a indignação que este PDL (Projeto de Decreto Legislativo) causou tem sua razão de ser. A justificativa original, que foi alterada no dia 2 de abril, enaltecia as ações da Rota no período da ditadura, ações direcionadas a guerrilheiros que lutavam contra um Estado autoritário, ou, como quer o texto, ações realizadas contra “remanescentes e seguidores, desde 1969, de ‘Lamarca’ e ‘Marighella’”.

Ora, o atual formato do batalhão tem sua origem, justamente, em 1970, durante nosso período de arbítrio, quando recebeu sua atual denominação e se voltou para a repressão ostensiva da população. Trata-se, pois, de um corpo policial criado por um Estado ditatorial, cujos meios e fins, bem sabemos, diferem radicalmente daqueles que interessam a uma sociedade democrática.

A Rota e a Polícia Militar de São Paulo servem-nos como exemplo vivo e lembrança permanente de que um dos pilares da justiça de transição – conjunto de ações, internacionalmente acordadas, a serem tomadas após o fim de um regime de arbítrio – consiste na reforma das instituições do Estado.

Foi também nos anos 70, lembremos, que nasceu em São Paulo o “Esquadrão da Morte”, grupo de extermínio composto por policiais, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Em setembro do ano passado, um policial civil afirmou à jornalista Tatiana Merlino que a situação, hoje, seria ainda pior: em cada batalhão da PM há, segundo ele, um grupo de extermínio.

Eis que chegamos ao cerne de nosso debate: a homenagem proposta por Telhada, tal como toda e qualquer ação política, só pode ter seu sentido desvendado se contraposta ao momento histórico do qual se origina e em que se desenrola. Em 2012, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, 547 mortes ocorreram em supostos confrontos policiais, número que representa um aumento de 25% em relação ao ano anterior. Neste contexto, a PM de São Paulo, da qual a Rota faz parte, tem sido sistematicamente objeto de denúncias de assassinato, abuso de autoridade e descaracterização da cena do crime, dentre outras violações.

Apenas em imagens televisionadas em rede nacional já podemos contar duas execuções sumárias: uma delas, realizada por PMs fardados; outra, levada a cabo na presença suspeita de uma viatura policial. Em Paraisópolis, a prática corriqueira de lançar bombas de efeito moral como forma de encerrar confraternizações absolutamente pacíficas já deixou cega uma menina de 17 anos.

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Não se trata de generalizar tais condutas criminosas para toda a corporação policial, na qual certamente ainda resistem valiosos profissionais, mas tampouco seria possível, diante de tantas evidências, tentarmos sustentar que estamos diante de abusos eventuais cometidos por alguns maus policiais.

Afastando-nos tanto do radicalismo ingênuo, de um lado, quanto do moralismo cínico, de outro, devemos, essencialmente, questionar o tipo de conduta e as estruturas da segurança pública que sustentam ações policiais orientadas a matar e a violentar.

Nesse contexto, perguntemos: qual é o tipo de policiamento que a Câmara Municipal deve ajudar o governo estadual a construir? Deve esta Casa trabalhar pela legitimação, ainda que simbólica, de uma política de amedrontamento, de abusos e violações de direitos? Ou deve, antes, lutar por um policiamento urbano pautado na proteção dos cidadãos e no respeito às leis democraticamente acordadas? É este o debate que o projeto de Telhada coloca à nossa frente.

Decerto, não se constrói uma democracia por decreto. Do mesmo modo, a promulgação de uma constituição cidadã, ainda que seja passo fundamental, tampouco pode ser vista como condição suficiente. Quando não reformado à luz de valores democráticos, o aparato repressivo estatal inevitavelmente carrega em sua estrutura organizacional e em sua metodologia de trabalho – se não em seu próprio quadro de funcionários – o peso do autoritarismo.

Longe de zelar pela segurança pública, longe de garantir os direitos da população, a lógica autoritária faz de seus cidadãos inimigos internos, dispondo o aparato repressivo do Estado contra os supostos perturbadores da ordem.

O que o autoritarismo insiste em negar é, em suma, a temporalidade da sociedade, entendendo por manutenção da ordem a conservação de uma estrutura social desigual, assegurada à custa da opressão aos que lutam por sua transformação. Se, ontem, os inimigos eram todos os que se insurgiam contra um poder arbitrário e ilegítimo, passados os anos de chumbo, a repressão recai sobre aqueles que ainda não viram efetivados os seus direitos mais fundamentais: a população preta, pobre e periférica. Os crimes de assassinato, tortura e ocultação de cadáveres, ao serem praticados por instituições do Estado, representam, em si mesmos, a ditadura continuada.

Ao analisarem a pertinência do PDL de Telhada, nossos representantes não devem, portanto, esquecer a menção à ditadura constante na primeira justificativa do projeto – e que continua presente no site da PM –, como não devem se esquecer de que a Polícia Militar de nosso Estado ostenta no peito – ainda conforme o site da própria instituição – uma estrela em homenagem à “Revolução de Março de 1964”.

À Câmara Municipal, bem como à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, deixamos, então, a seguinte sugestão: se se trata de, por meio de ações simbólicas, contribuirmos para que nossa polícia encontre seu lugar dentro de uma sociedade democrática, a retirada da vergonhosa 18ª estrela de seu escudo constituiria atitude infinitamente mais pertinente e eficaz.

Quando chamado a conversar com o então candidato à prefeitura de São Paulo Fernando Haddad, o rapper Mano Brown foi claro: “Eu vim aqui para falar de extermínio”, disse.

Se é cínico, em vez de explícito, se é sorrateiro, em vez de transparente, o projeto de Telhada, não nos enganemos, é igualmente oportuno: ele também veio para falar de extermínio. E mesmo que o vereador tenha, após todas as críticas suscitadas pela justificativa do projeto, alterado o texto suprimindo os trechos que se referiam à ditadura, sua proposta não pode ser vista, diante do presente contexto político, como outra coisa senão uma tentativa mal disfarçada de dar reconhecimento público a um dos piores legados daquele período: as práticas sistemáticas de violação de direitos humanos cometidas pela polícia.

O Margens Clínicas é um grupo que oferece atendimento psicológico a familiares e vítimas de violência policial. Integram-no: Anna Turriani, Catarina Pedroso, Dario de Negreiros, Isabela Mendes de Lemos, Marcio Leitão Bandeira, Mariana Garcez Ribeiro, Olívia Morgado Françozo, Pedro Lagatta, Rafael Alves Lima, Tacianna Bandim Pedrosa, Thaís Fabiana Faria Machado, Victor Barão Freire Vieira.

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