Gilson Caroni Filho: África, não basta cantar “We are the world”

Tempo de leitura: 3 min

por Gilson Caroni Filho

Os  números são tão astronômicos quanto aterrorizantes. Cerca de 150 milhões de habitantes africanos não têm acesso à quantidade mínima de calorias diárias, sendo que, deste total, 23 milhões deverão morrer de fome. No nordeste do continente, segundo levantamento da ONU, 10 mil crianças morrem mensalmente em decorrência da seca. Ou seja, o número de vítimas supera, e em muito, o número de mortos nos 14 anos de guerra  no Vietnã.

Segundo o diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos da ONU, James Morris, “a escassez de alimento na África provoca a instabilidade política, desse modo, a fome é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência da pobreza. Além disso, é causa e conseqüência dos conflitos”. Segundo estudos do Instituto Internacional de Pesquisa em Alimentação nos próximos 20 anos o continente africano terá uma redução na produção de alimentos em cerca de 20%, fato desencadeado pelos conflitos internos.

A magnitude do drama costuma vir acompanhada de explicações que vão do crescimento demográfico desordenado à desertificação e conflitos étnicos. O que se busca ocultar é a responsabilidade de europeus e norte-americanos que, ao longo do tempo, mudaram radicalmente a estrutura de produção e consumo no continente africano, deixando como resultado a escassez, subnutrição e fome, com altos lucros para as grandes corporações.

Em verdade, estamos assistindo ao preço pago pela herança colonial e pela desorganização da produção agrícola provocada pelos complexos agroindustriais dos países ricos ocidentais. Em vários países, o cultivo intensivo de áreas com uma débil fertilidade acabou destruindo a camada de húmus. Com isso, regiões imensas se tornaram estéreis, não tanto pela falta de chuvas, que sempre foi escassa e irregular, mas pelo manejo totalmente predatório do solo.

Uma experiência promovida pelo colonialismo europeu não pode ser esquecida. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, os franceses resolveram investir no Mali, num momento em que o algodão e o amendoim entraram em crise no mercado mundial. O pequeno rebanho malinês foi rapidamente multiplicado. Após quatro ou cinco anos de bons resultados veio a seca. Os bois tiveram que se concentrar em áreas muito pequenas. O resultado foi que as milhares de cabeças aglomeradas em poucos poços de água acabaram com todo o pasto, comendo, inclusive, as raízes. Quando as chuvas voltaram, o solo era areia pura, o rebanho ficou reduzido a  um sexto e o pasto nunca mais se recompôs. A política de terra arrasada sempre foi uma vantagem comparativa para europeus e estadunidenses.

A fome africana não pode ser reduzida a uma formulação malthusiana. Se o acelerado crescimento demográfico em algumas regiões influi no equilíbrio alimentar, não é a taxa de natalidade que produz o elevado número de subnutridos. As razões para a fome endêmica devem ser buscadas em estruturas agrárias moldadas no período colonial e “aperfeiçoadas” posteriormente para atender aos centros consumidores do Ocidente.  Mas a danação do continente envolveu outros fatos.

Ainda há o legado da Guerra Fria. Na área político-econômica, as “guerras por procuração”,  promovidas pelas superpotências na África, devastaram a economia, destruíram as já precárias redes de saúde pública e causaram grandes fluxos migratórios e fomes epidêmicas que contribuíram para a disseminação de moléstias infecto-contagiosas. Sarampo, cólera e malária, doenças que matam as crianças africanas, não serão erradicadas  sem que se promova uma profunda mudança nas condições ambientais que favorecem sua instalação, aí incluída a ecologia social.

Redefinir a inserção da África exige uma reformulação completa da estrutura produtiva vigente no mundo capitalista.  O problema da fome deixou de ser uma questão assistencialista para se tornar um ponto de inflexão em estruturas multisseculares. Não basta cantar “We are the world”. É preciso construir um mundo alternativo ao que aí está.

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Comentários

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Alcir

Existe uma obra editada pela UNESCO chamada A história geral da África em 8 volumes e quase 10.000 páginas disponível em PDF na internet, que deveria ser lida por todas as pessoas interessadas nessa história contada por mestres africanos. Era um continente altivo e avançado e que foi destruido pela Europa.

josé nascimento

O Brasil têm muito tecnologia na produção de alimentos para assessorar os paises africanos.
Temos a Embrapa a Esalq e muitas outras Brasil afora.
Quando o ex presidente Lula passou a dar mais atenção aos povos esquecidos da África,foi duramente criticado por alguns setores da imprensa e da política nacional;os de sempre.
Ofereçam terras e condições seguras de trabalho aos Brasiguaios e Gaúchos.Tenho certeza que em apenas meia década estaremos lendo e contando histórias mais felizes; a música tocada também será outra;que tal querência amada?

Marat

A canção é muito bonita e os cantores são muito talentosos… Dito isso, creio que a música “We are the world” – USA for África – foi muito mais utilizada como propaganda estadunidense, para angariar corações e mentes dos incautos e dos inocentes úteis, e com isso tentar encobrir (bem malandramente) os massacres perpetrados pelo Império do IV Reich!

Francisco

O que é bom? Qual é a solução? Quem delegar essas respostas ao outro esta perdido.

Se seguissemos os ditames do FMI teriamos o desemprego pifio que temos hoje?

Precisamos adquirir cada vez mais auto-confiança para forjar as próprias soluções.

O problema central entre países de terceiro mundo é a existência de uma quinta-coluna (elites, mídia, intelectualidade pequeno-burguesa) que evita obstinadamente o protagonismo.

O protagonismo de pensar pela própria cabeça – e ainda assim com humildade.

Bley

Felicito a análise de Gilson Caroni Filho e o comentário de Jair de Souza pela luz que lançam sobre a atual conjuntura da fome na África e o papel e desafio das forças de esquerda da América Latina no atual contexto político mundial, respectivamente.

Janice Freitas

A avaliação do Gilson Caroni Filho é muito especial. Meus cumprimentos

Jair de Souza

Além da qualidade de sua análise, o artigo nos deixa um alerta importante: precisamos evitar seguir a reboque de movimentos ou grupos políticos europeus (incluídos nesta categoria os estadunidenses). Até o presente, todos os movimentos hegemonizados por grupos europeus (inclusive os de esquerda) conduziram os povos dos países periféricos a derrotas contundentes. O exemplo recente da agressão assassina ao povo líbio serve para ilustrar como até a esquerda anticapitalista da Europa ainda não se livrou de seu sentimento eurocentrista. Não foi à toa que boa parte dessa esquerda acabou por aceitar e até apoiar as ações militares do "imperialismo humanitário" da OTAN, justificando os bombardeios sobre a população civil líbia e a matança de milhares de pessoas sob o pretexto de impedir o "massacre" que a mídia imperialista dizia que o governo daquele país planejava efetuar. É com grande satisfação que constato que os governos e movimentos de esquerda da América Latina não se atrelaram a nenhuma força política da Europa nesta questão. A força da esquerda latinoamericana atual está em boa medida em sua independência dos ex-centros de hegemonia intelectual. Também erramos muitas vezes, é lógico, mas agora, erros e acertos saírão de nossas próprias cabeças e experiências concretas, e não mais do seguimento acrítico das análises e decisões de gente supostamente superior a nós, mas que, na verdade, deveriam ter humildade suficiente para reconhecer que, no momento, os modelos inspiradores para a construção de um mundo mais justo estão centrados muito mais ao sul do que na Europa.

Graciete

Uma análise muito boa e é também um alerta

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