Urariano Mota: Eu também já fui ladrão

Tempo de leitura: 5 min

O meu roubo inesquecível

por Urariano Mota, Boitempo Editorial

Eu também já fui ladrão, confesso.

Eu e um amigo, a quem chamarei de Hermann, trabalhávamos em um banco privado. Começávamos o expediente às 7 da manhã, quando não mais cedo, e terminávamos por volta das 20 horas. Melhor dizendo: fazíamos um breve intervalo para o outro dia. Isso, é claro, quando não demonstrávamos maiores provas de amor ao ofício estendendo a jornada até as 22 horas. Ainda assim, não chegávamos a ganhar o pão com o suor do próprio rosto, porque: a) o que ganhávamos não dava para o pão acompanhado de qualquer proteína; b) não suávamos, porque o trabalho era sob o frescor do ar-condicionado. Mas alguma coisa ganhávamos, como veremos.

Nada direi sobre Hermann, um descendente de empresário sueco, um descendente bastardo já se vê, um sujeito deserdado, que estendia olhos mui nobres para o que os seus dedos finos não alcançavam. A saber, tudo: cervejas, cigarros, e, luxo dos luxos, almoço, janta e ceia. Nada direi. Importa saber que em uma fatídica noite Hermann estendeu sua cobiça para uma direção. Acompanhei-o, não bem por solidariedade, mas por experiência. Os seus olhos sempre se dirigiam para o que eu também ambicionava.  E vejo e vi então o grupo dos quatro gerentes que entrava em nossa última sala, próxima à cozinha (mirem como o diabo nos queria). Ali se encontrava o refrigerador, que de ordinário abrigava somente água, nada mais que água.  De sede, portanto, não morreríamos.

Entram os gerentes. À frente, como sempre, o gerente geral, obeso, bon vivant, cheio de ideias positivas sobre o crescimento material das pessoas. Ele era a tese, antítese, síntese e  realização dos princípios positivos. Atrás, o vice-gerente, fiel discípulo. E depois, em ordem cadenciada de passos e postos, os outros em escala descendente de hierarquia e salários. Como apareciam todos de ternos, com o paletó aberto a mostrar seus ventres redondos, dir-se-ia uma fila de pinguins a caminhar para a neve – o refrigerador ao lado de nós. Mas isso, para aquele instante, não é novo.

O novo, o que os olhos de Hermann identificam com precisão e necessidade, são as caixas que eles portam, objetos oblongos, cujo conteúdo pelo cheiro e forma adivinhamos. Olhamos e baixamos a vista: são caixas de sorvete, preciosos sorvetes de frutas tropicais. Um quilo de sabor infernal em cada uma. Cajá, mangaba, caju… Se um gênio nos perguntasse àquela hora das 21 horas, em 1981:

– Homem, o que desejas? Vida eterna, tesouro, ser amado pela maja de Goya….

Nós responderíamos, sem dúvida e sem vacilar:

– Primeiro o sorvete, gênio. Depois, conversamos com mais calma e firmeza.

Um dos gerentes, o mais afoito e arrogante, passa de volta e assim nos saúda, como sempre nos saudava:

– Meninos… – Com esse tratamento ele apenas nos põe no lugar de subalternos, ainda que sejamos mais velhos que ele. – Meninos…

E passa, com o seu largo traseiro. Deixa atrás de si, além da cauda que parece arrastar, um cheiro de cu, álcool e perfume estragado pelo álcool da noite e banquetes. Saem. Batem a porta. O banco mergulha em silêncio, aquele mesmo silêncio que antecede a madrugada e permite a maior liberdade aos ratos. Eu e Hermann nem nos olhamos mais. Enquanto somamos valores de cheques, enquanto amarramos papéis em lotes, não nos sai da cabeça a tentação dos frutos proibidos. Então eu me levanto e vou olhar, somente olhar e mais nada, a cara, somente ver a cara dos sorvetes. E pelo nome na tampa, percebo que um deles é de cajá. Ora, ver é permitido. Ver não dói. Somente ver, Senhor. Ora. Com artes de arrombador de cofres eu retiro a tampa da caixa. E vejo a cor amarela.

Ver dói. Dá um sabor, um aroma, um travo de recordação na língua. O dicionário Aurélio informa que o cajá é fruto da cajazeira, que por sua vez é árvore de produzir uma drupa elipsóide amarela, aromática, muito sucosa e fortemente azeda, própria para refrescos e sorvetes. O que o dicionário não ensina é que o sorvete de cajá na altura das nove da noite, em dois bancários com fome, é qualquer coisa mais que irresistível. E com aquela raiva que nos possuía, com aquele ódio de classe acumulado pelo “meninos”, eu lhes digo, o cajá tem uma força maior que a do sexo para marujos perdidos. E por isso, eu, o almirante sem esquadra, comando um rápido assalto e abordagem.

– Hermann – eu oriento o deserdado – Hermann, se a gente fizer assim, eles não vão notar.

E com isso dou o exemplo. Com uma colher faço raspagens, retiro lâminas da superfície do cajá, rebaixo o tamanho delicadamente (tão delicado quanto um homem com fome assalta uma presa), de forma e de formas a deixar o volume do sorvete bem distribuído, em uma mesma altura.

Olhem, mirem e escutem, eu não quero incriminar outra pessoa. Mas eu acredito até hoje que Hermann foi o culpado. Ele acabou com o sorvete! Ele, sem seguir a minha orientação, fodeu todo o cajá! O animal esvaziou todo o conteúdo suculento próprio para refrescos e sorvetes. Disse-me ele depois que não poderia seguir as minhas instruções de calma, “vá com calma, Hermann, atenção, cuidado”, enquanto aquela drupa amarela, melhor que as majas de Goya, era devorada em profundas horizontais por este orientador. O certo é que restou a caixa vazia, que tampamos atenciosos, e com recomendações de estima fizemos retornar ao mesmo lugar e temperatura. Amada, dorme em paz, queríamos dizer.

Chega o outro dia. Mais uma vez entra a fila dos pinguins, em ordem.

– Buon giorno – saúda-nos o gerente geral. Os demais pinguins tentam repetir o italiano do chefe:

– Bom giorno, bom giorno…

Eles se dirigem, como um dia antes, à neve do refrigerador. Eu e Hermann de cabeças baixas, extremamente concentrados em nossas somas e subtrações de valores. Temos que bater o balanço, ora, por favor, não nos distraiam do nosso ofício. Em torno de nós, melhor dizendo, em nossas costas ouvimos o silêncio, aquele silêncio do cinema dos filmes western, o mesmo silêncio que vem antes do ataque dos índios. Súbito, um grito. É agora. Eu não posso nem olhar Hermann. Ele também não me vê. Mergulhamos a cara nos relatórios de conta corrente.

– Quem foi que roubou o meu sorvete? Quem foi?!

Se no mundo explodisse a bomba fundamental, não a ouviríamos. O ventre que entrevemos, por baixo dos olhos, pelo cheiro com que arrasta a cauda, adivinhamos. É do yuppie, que nos trata por meninos. O cajá era dele. Os inimigos se percebem sem palavras, porque ele se dirige a mim, com toda assistência dos pinguins em torno. Juro por Deus que tive então a minha última hora de coragem. Fitei-o com a cara mais cínica e despudorada e repleta de surpresa que um ator pode ter. O meu ser, a minha expressão, pelo menos eu me esforcei para isso, quis dizer:

– A quê o jovem se refere? Na verdade, eu não sei nem se existe no mundo algo parecido com cajá.

As evidências nos apontavam como autores do crime. Eu e Hermann éramos os últimos a sair. Talvez também os de pior condição social e financeira. Em vez do cherchez la femme, e a fêmea era aquela maravilhosa polpa amarela, os sinais anunciavam: busquem os fodidos. E por isso o pinguim mais jovem nos recrimina, olhando ora para mim, ora para Hermann:

– Quem rouba sorvete é ladrão. Quem rouba sorvete, assalta um banco!

Isso foi o mais duro de ouvir. Se houvesse uma catilinária de classe a nosso favor, e se essa catilinária não nos empurrasse para o olho da rua…. baixamos a cabeça e engolimos.

Muitos anos depois, um belo dia soubemos: aquele gerente, aquele pinguim mais jovem se transformou em um criminoso procurado pela polícia federal, porque tomou conta, com excessivo zelo, de valores de clientes. Ou seja, aplicações em papéis, em bolsa de valores, que investidores lhe confiavam, deixaram de ser feitas nos dias e períodos solicitados. Pior: assim como a fome sobre a caixa do sorvete de cajá, que começou pela superfície e foi até o fundo, o nosso Catão havia comido toda a aplicação, e por isso fugiu para lugares menos perigosos.

Não sei se existe moral nesta breve história, mas se houver, passa por esta recomendação: se não for seu, não comece jamais a comer um sorvete de cajá. É irresistível.

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Comentários

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Glória

Eu também, quando criança, onde eu visse uma moeda eu pegava para comprar picolé e sorvete. Era o ápice do meu prazer. Um dia minha tia deu falta e me disse na lata: quem pega dinheiro dos outros é ladra. Mas não me encaminhou para a delegacia nem para o Conselho Tutelar (ainda não existia). Se fosse nos dias de hoje, teria virado ladra, é assim que fazem com as crianças pobres.

Cleber

Meu irmão, esse texto me deixou nervoso. Quase deu para ver as imagens.

José Roque Neto

Maravilhoso, lendo já dei enormes gargalhadas. O sorvete e o suco de cajá são os meus preferidos e confesso que entraria nesse jogo! Pelo cajá tudo!!

Caracol

Urariano, não houve crime, não houve furto. Tranquilize sua consciência, aquiete sua alma. Não precisa nem se refugiar no adágio "ladrão que rouba ladrão…", pois o cajá é uma criação da Natureza que escapa aos mesquinhos valores e critérios terrenos, o cajá se sobrepõe à insignificante moral humana.
O cajá é a fruta mais deliciosa, mais perfumada e misteriosa da Natureza, eu não tenho dúvida de que era a fruta da árvore proibida do Éden, pois seu sabor e buquê sem par só é digno de deuses. Deuses e banqueiros ladrões, o que dá no mesmo (principalmente aqui na nossa terra, eh, eh, eh!), e eu o congratulo por ter roubado cajá de um desses crápulas. Adão e Eva perderam o paraíso por causa de um cajá e eu passei minha infância roubando cajá do quintal de "Seu" Albino. Nunca me senti culpado por isso.
Sossegue.

Gerson Carneiro

Quem mandou eu ler esse texto?
Agora tenho a obrigação moral de confessar um pecado: eu também já fui ladrão.

Era meados dos anos 90. Em São Paulo.
Baiano inocente e assustado no meio daquela multidão. Trabalhava no CEAGESP. Acordava às 04h30 e às 06h00, com frio, com garoa ou não, lá estava eu sentado numa baia de 1,00 x 1,00 metros quadrados cadastrando pedidos e tirando nota fiscal. O que perdurava até por volta das 19h00.

Sem CTPS assinada, trabalhando de segunda à sábado, incluindo os feriados.

No dia 24 de dezembro lá estava eu emitindo nota fiscal para algum burguês, das uvas que a respectiva madame comprava.

Nas mesmas condições de trabalho que a iniciativa privada nos “fazia o favor de nos ter como empregados”, conheci um colega que logo tornou-se amigo. Era um chileno, filho de militar das forças armadas daquele país, que tinha o sonho de se tornar ator e que saíra de Santiago com destino à França com esse objetivo. Aquele sonho de adolescente que não mede conseqüências.

Era um jovem inteligente e bem humorado. Conhecia muito de música.

Mas ao passar pelo Brasil, especificamente ao passar por São Paulo, se distraiu. Em determinada tarde de domingo, depois de algumas cervejas, resolveu se diverti, inventou de roubar um carro. Como resultado passou quatro anos engaiolado.

Quando o conheci, trabalhando no CEAGESP, segundo ele, já tinha cumprido sua pena.

Naquelas mesmas condições de trabalho, repito, que a iniciativa privada nos “fazia o favor de nos ter como empregados”, sem registro em CTPS, com salário que mal dava para bancar o aluguel e nos alimentar, tornamos cúmplices de um pecado que proporcionava a nossa diversão na tarde de sábado: pegávamos alguns trocados no caixa e enfiávamos na bota.

Saíamos do trabalho aos sábados por volta das 13h00 e nos dirigíamos a um boteco no centro da cidade, aonde rolava um rock and roll até por volta das 19h00, e aonde torrávamos tudo que levávamos no nosso, literalmente, “pé de meia”, em cervejas e uma carne que apelidamos de “churrasco de chinelo” por ser dura e ao mesmo tempo elástica como um chinelo havaiana.

Lá para tantas das tardes de sábados, no boteco chamado Cipó, nos dirigíamos até o meio fio da calçada, cada um com uma garrafa de cerveja na mão, aonde perfilados lado a lado, enchíamos a boca de cerveja e ficávamos brincando de quem cospe cerveja mais longe, aguardando é claro o semáforo soltar os carros que eram nossos alvos, afinal, cuspir cerveja em carro parado era para amadores e não tinha graça.

E isso foi por cerca de um ano. Até que em determinado sábado emprestei algumas fitas cassetes para esse meu amigo, dentre elas a do filme Escarface. Combinado para que ele me devolvesse na segunda-feira.

Pois chegou a segunda-feira e não encontrei no trabalho o meu amigo. E assim foi durante aquela semana, e durante a próxima, e durante a próxima. Comecei a pensar: bem, se não está preso, deve estar enterrado, ou conservado em alguma gaveta refrigerada aguardando identificação.

Quase próximo de completar um mês do sumiço do meu amigo, em uma tarde de sábado, o telefone tocou em casa:

– Gerson, seu viado, como é que você está?

– Seu fí duma égua! Cadê minhas fitas? Você não ficou de devolvê-las na segunda-feira? Aonde você está?

– Estou em Santiago, naquele fim de tarde de sábado os policiais foram à minha casa e me levaram para o aeroporto.

– Porra, e por que não devolveu minhas fitas?

– Os policiais federais chegaram de repente em casa e disseram “pegue suas roupas que você está indo para o aeroporto para ser deportado”. Tu acha que eu tive tempo de dizer “Peraí que vou devolver as fitas do Gerson”? Tu acha que eles iam permitir?

– E de onde eram esse policiais.

– Da Polícia Federal.

– Porra, por que não deu meu endereço para eles virem aqui e me deportar? Era a minha chance de ganhar uma passagem de avião para a Bahia!

E desde o começo do ano de 1997 não tive mais contato com o Marcel. E minha consciência jamais pesou pois meu tempo e minha inteligência que compunha minha força de trabalho valia e vale muito mais que uns trocados para uma tarde de cerveja num boteco sujismundo.

Sentia-me roubado, e o que fiz foi dar o troco.

“Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. Além da prescrição, estou perdoado.

    Gerson Carneiro

    [youtube 55nXGhxlkU8&feature=grec_index http://www.youtube.com/watch?v=55nXGhxlkU8&feature=grec_index youtube]

    Urariano Mota

    Você enriqueceu o texto, Gerson. Grato.

    Gerson Carneiro

    Ao escrever esse relato temi que muitos viessem atirar pedras.

    Respirei fundo, tomei coragem e decidi expor minha carcaça aos abutres.

    Imaginei que muitos, na ânsia de dilacerar uma alma, arrancariam nacos enormes, se lambuzariam em uma disputa frenética entre eles até se fartar.

    Pensei na pouca probabilidade de aparecer alguém que viesse degustar, e com paladar refinado, perceber os sabores e dissabores da vida. Arrisquei.

    Para minha satisfação e surpresa apareceu o próprio autor do texto. Se há alguém grato, esse alguém sou eu.

    O roubo maior foi o da Polícia Federal que sem prévio aviso arrancou de mim a minha única e valiosa amizade, e ainda levou minhas fitas.

    Não voltei mais ao Cipó.

Eugênio

Meu amigo Urariano, dá até pra parar de comer um sorvete de Cajá… quero ver o cabra parar de comer um sorvete de Mangaba.

Polengo

O meu único medo seria o de tomar o sorvete que era de um fdp, pois pode fazer muito mal ao estômago e à alma.

Pedro Luiz Paredes

kkkkk, que ótimo.
Lendo o texto fiquei imaginando se o autor fosse um professor da rede pública.
Digo isso porque a individualização de certas circunstâncias é tão simples e ao mesmo tempo difícil de se fazer com qualidade, que não sei se chegaríamos nessa dramaticidade.

andre sodre

Favor repercutir matéria da Revisto Isto é desta semana – O Governador frileiro

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