Direitos constitucionais dos povos indígenas: Cláusula pétrea e inamovível, avaliam advogados do Cimi

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Em 24 de junho de 2021, povos indígenas defenderam os seus direitos originários em manifestação na frente ao STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Direito indígena: cláusula pétrea

Direitos constitucionais dos povos indígenas formam um conjunto cosmológico, contínuo e universal; o artigo foi elaborado pela Assessoria Jurídica do Cimi

Por Paloma Gomes, Rafael Modesto e Nicolas Nascimento, da Assessoria Jurídica do Cimi*

Em razão da aprovação do Projeto de Lei 490/2007 na Câmara dos Deputados, no dia 30 de maio de 2023, retornou à discussão pública a questão sobre a viabilidade, ou não, de modificação do artigo 231 da Constituição Federal, que trata dos direitos indígenas.

Não é a primeira vez que tratamos do tema, mas, em razão da relevância da matéria e com intenção de contribuir com a reflexão, entendemos por bem atualizar o artigo publicado no site de notícias jurídicas JOTAinfo no dia 7 de junho de 2021.

À época da publicação do referido artigo, o Supremo Tribunal Federal (STF) estava em vias de iniciar o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.017.365, por meio do plenário virtual, que fixará o entendimento da Corte sobre ocupação tradicional indígena e a sua abrangência.

De lá para cá, o julgamento saiu do plenário virtual para o físico, foi iniciado e conta com voto proferido pelo relator, ministro Edson Fachin, e voto divergente, do ministro Nunes Marques.

Atualmente, o processo se encontra pautado para a sessão do dia 7 de junho, quando deve ser retomado o julgamento.

Em seu voto, proferido no dia 9 de setembro de 2021, o ministro Edson Fachin atendeu ao pedido do povo Xokleng e firmou a imutabilidade do artigo 231 da Constituição Federal. O relator afirma:

(…) “Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador, que resta impedido de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar o exercício dos direitos individuais e coletivos emanados do comando constitucional do artigo citado.

(…)

Em segundo lugar, os direitos emanados do artigo 231 da CF/88, enquanto direitos fundamentais, estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o exercício desses direitos (…).

Em terceiro lugar, por se tratar de direito fundamental, aplica-se aos direitos indígenas a vedação ao retrocesso e a proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que atrelados à própria condição de existência e sobrevivência das comunidades e de seu modo de viver.

(…)

Finalmente, em consonância com o entendimento acima manifestado, entendo que, por se tratar de direito fundamental, a interpretação adequada à aplicação do artigo 231 deve levar em consideração o princípio da máxima eficácia das normas constitucionais, pois se nos termos do artigo 5º, §2º do texto constitucional, ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’, faz-se necessário manter coerência com uma hermenêutica que cumpra os objetivos da Constituição.

Manifestação Pataxó e Tupinambá em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Sobre a matéria, também já havia se posicionado publicamente o ministro Roberto Barroso, em entrevista concedida ao Jornal O Globo, em abril de 2021, na qual afirma: “O direito dos povos indígenas à terra é cláusula pétrea”.

Embora o julgamento em questão não tenha por objeto o PL 490, ele certamente lançará luzes acerca da flagrante inconstitucionalidade formal e material da proposta legislava levada a cabo pela Câmara dos Deputados.

Vale rememorarmos os fundamentos que levaram o povo Xokleng a suscitar o pronunciamento da Suprema Corte sobre a matéria.

O RE 1.017.365 diz respeito à demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ, do povo Xokleng.

O processo é originário da Justiça Federal de Santa Catarina e chegou ao STF por meio de um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai), que defende o direito territorial do povo.

Ao aplicar o instituto da repercussão geral no caso, por unanimidade, no início de 2019, o STF indica que pretende julgar o processo e fixar ali uma tese, a qual servirá a todos os povos indígenas do Brasil, numa perspectiva de resolução definitiva para a matéria.

O povo Xokleng é parte nesse processo, direito que adquiriu tão somente quando o caso já havia chegado ao Supremo.

Embora possa causar certo estranhamento para os profissionais de direito essa constatação, fato é que o direito de acesso à justiça para os povos indígenas no Brasil, apesar de garantido pela Constituição Federal, ainda enfrenta um grande desafio para a sua plena realização, uma vez que é recorrente a tramitação de processos judiciais sem a citação das comunidades diretamente afetadas.

Contudo, o elemento mais importante para o caso é que o povo Xokleng, por meio dos seus advogados, defendeu nos autos o direito constitucional dos povos indígenas como cláusula pétrea, inamovível e inflexível.

Assim concluiu o povo, no item 12 de suas alegações finais, entregues ao Supremo no ano de 2020:

“os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 consistem em cláusulas pétreas, inatingíveis pelo poder constituinte reformador, sendo vedado, ainda, o retrocesso hermenêutico”.

Por tais motivos, entendemos que, além do direito à terra, são também cláusulas pétreas o direito dos povos indígenas à organização social, à crença, ritos, línguas, usos e costumes, tradições e o direito de acesso à justiça.

A garantia de inflexão e inamovibilidade do direito à terra e da exclusividade do seu usufruto se estende e sustenta todos os demais direitos, pois derivados que são, todos eles, do território ancestral, originário.

Delegações de 21 povos – do Acre, Goiás, Tocantins e Santa Catarina -, são recebidas pela ministra do STF Cármen Lúcia. Foto: Adi Spezia/Cimi

Podemos afirmar, sem risco de erro, que estamos falando de cláusulas pétreas ao analisar os artigos 231 e 232 da nossa Carta Política de 1988, porque ali está o complexo e bem definido estatuto jurídico-constitucional da causa indígena.

Daí que, nos termos do artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, são direitos conquistados que não se submetem ao poder reformador, pois são garantias individuais.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as Cláusulas Pétreas traduzem “a vontade da Assembleia Constituinte de retirar do poder constituinte reformador (…) a possibilidade de alterar determinado conteúdo da Constituição em razão de sua importância. Para alterar conteúdo disposto em cláusulas pétreas, é preciso promulgar uma nova Constituição”.

O debate sobre a inamovibilidade do direito constitucional indígena foi levado ao Supremo pela comunidade indígena Xokleng com o fito de obliterar retrocessos, seja no campo do Judiciário, seja na esfera dos demais poderes da República, e garantir a manutenção da higidez do texto constitucional.

Nesse sentido, o fato de o direito indígena estar fora do Título II da Constituição não implica em dizer, por esse fator, que não estaria assegurado pela barreira de imutabilidade.

Diz o professor Daniel Sarmento sobre o assunto: o “STF já afirmou que a localização de um direito constitucional fora do Título II da Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais, não basta para descaracterizá-lo como cláusula pétrea”.

Para o professor, pode-se “invocar ainda outra razão adicional para considerar o direito as terras indígenas como cláusula pétrea. É que a interpretação constitucional deve dialogar com o Direito Internacional, especialmente no campo dos Direitos Humanos”.

Nessa linha de raciocínio, para reforçar a garantia da inamovibilidade do direito indígena, a Corte Constitucional, no ano de 2011, ao julgar o ARE 639.337, de relatoria do Ministro Celso de Mello, firmou que “o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los”.

Todos os elementos do direito indígena que conformam o Capítulo VIII do Título VIII da Carta de 1988 são direitos individuais indígenas, em certo plano; mas vão muito além, diante da cosmovisão indígena, por serem direitos indisponíveis manejados no plano da coletividade, considerando a relação multicultural e pluriétnica das gentes indígenas, e por isso são cláusulas pétreas, inamovíveis, e contam com a proibição do retrocesso.

Então, justamente pelo fato de a nossa Constituição reconhecer a organização social dos índios, com todos os seus sistemas, inclusive o sistema jurídico, garante que ali estão justapostos direitos individuais e coletivos, protegidos pela imutabilidade do artigo 60, §4º.

Lideranças indígenas do lado de fora do STF, logo após entregar a carta para o assessor especial do presidente da Corte, Luiz Fux. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Tanto o direito cultural como o direito territorial – portanto, direito material e imaterial dos índios – que perfazem para as etnias brasileiras um conjunto cosmológico, contínuo e universal, estão sistematizados em direito escrito, presente na Carta Magna; mas estão edificados também na mundividência e cosmovisão indígena (direito não escrito).

Esse direito à diferença, fundamentado no Capítulo Dos Índios, garante também a existência de direitos costumeiros, sustentados na oralidade e que, justamente por isso, são cláusulas pétreas.

Restringir esse direito sistêmico não escrito dos índios, previsto e albergado no artigo 231 da Constituição Federal, por interpretação judicial ou por Emenda Constitucional, seria reduzir a vontade do constituinte originário e incorrer em vício de inconstitucionalidade.

O mesmo ocorre com a proposta de limitar os direitos territoriais indígenas com base em um marco temporal, como propõe a teoria, flagrantemente inconstitucional, do chamado “fato indígena”.

Portanto, qualquer medida judicial, administrativa ou legislativa, como o PL 490/2007, que vise alterar o texto constitucional, na parte que regula os direitos indígenas, é inconstitucional, pois estes são protegidos pela barreira da imutabilidade do artigo 60, § 4º da Carta de 1988, o que se soma à força do princípio da proibição do retrocesso em matéria de direitos humanos.

Por isso mesmo defende o povo Xokleng na Suprema Corte a inteireza da tese do indigenato e do direito originário, edificados por vontade do Constituinte Originário nos artigos 231 e 232 da Constituição, tornando esse direito plural dos índios em verdadeiras cláusulas pétreas.

____

[1] Embora se aplique aos índios os direitos fundamentais previstos na Constituição, o estatuto jurídico da causa indígena, contidos nos artigos 231 e 232, carrega em si mesmos todos os direitos previstos na Magna Carta. Isso em função do reconhecimento da organização social, que abrange o direito oral, consuetudinário dos povos originários, bem como seus sistemas de justiça.

*Adaptação de texto publicado originalmente no portal Jota em 7 de junho de 2021″. o link da original é: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/direito-indigena-clausula-petrea-e-inamovivel-07062021

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