Leonardo Sakamoto: PL do marco temporal vai muito além da demarcação de terras indígenas

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O genocídio dos Yanomami. Fotos: Sumaúma Jornalismo

PL do marco temporal vai muito além da demarcação de terras indígenas

Por Leonardo Sakamoto*, no UOL

A Câmara dos Deputados aprovou, na noite desta terça (30), por 283 votos a 155, o PL 490/2007 – projeto que não se resume ao marco temporal para a demarcação de terras, mas coloca em risco a vida e a existência de povos indígenas.

A parte mais conhecida do que vem sendo chamado de PL do Genocídio, menina dos olhos da bancada ruralista, é a que afirma que somente terras ocupadas por indígenas na promulgação da Constituição Federal, ou seja, em 5 de outubro de 1988, podem ser reivindicadas para a demarcação.

Uma brincadeira de mau gosto, uma vez que muitos povos estavam expulsos de seus locais de origem naquele momento.

Mas se o PL parasse por aí seria apenas péssimo, mas ele vai muito mais fundo em medidas para desagregar comunidades e colocar vidas em risco.

O projeto:

— Permite contato com indígenas isolados, ou seja, que não têm interação sistemática com o restante da sociedade, para “intermediar ação estatal de utilidade pública”. O que cabe nisso?

Muita coisa, dado que o termo é amplo. E o contato pode ser feito por “entidades particulares, nacionais ou internacionais”. Por exemplo, missões religiosas.

Para além da imoralidade disso, há o risco de doenças para as quais o seu sistema imunológico não está preparado como o nosso.

— Proíbe a ampliação de terras já demarcadas, evitando corrigir erros ou sacanagens do passado cometidos por pressão do poder econômico. E aponta que os processos em andamento terão que se adequar à nova lei, o que deve impedir demarcações em curso.

— Prevê a retomada de territórios indígenas caso ocorra “alteração dos traços culturais da comunidade”.

Se o governante de plantão achar que uma comunidade indígena deixou de parecer suficientemente indígena, ele pode pedir a terra de volta.

Isso vai ao encontro do preconceito de que povos tradicionais têm que seguir um estereótipo, criando o “sommelier de indígena”.

— Permite que, no caso de terras indígenas superpostas a unidades de conservação ambiental, a gestão fique com o órgão federal gestor da área protegida.

Considerando que as áreas indígenas ostentam taxas mais altas de preservação pois os próprios moradores combatem a ação criminosa de madeireiros e garimpeiros, imagine o que vai acontecer…

— Prevê dispensa de consulta prévia dos indígenas para instalar bases militares, implementar rodovias, ferrovias e hidrovias, construir hidrelétricas, “proteger” riquezas consideradas estratégicas.

Isso bate de frente com os tratados internacionais que o Brasil assinou, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

— Facilita a contestação da demarcação de novos territórios indígenas – o que, na prática, pode colocar o processo sob uma avalanche de recursos, impedindo a sua finalização.

— Permite a celebração de contratos para a cooperação de indígenas e não-indígenas para agricultura e pecuária em suas terras.

Os povos tradicionais já podem hoje produzir em suas terras, mas o PL vai permitir, na prática, o controle da atividade econômica por terceiros.

Autoriza também o cultivo de transgênicos em territórios indígenas, o que hoje é proibido. Isso pode levar à contaminação de sementes e espécies nativas usadas pelos povos tradicionais, matando a biodiversidade e o patrimônio genético dos indígenas.

— Facilita que o poder público instale rodovias, ferrovias, redes de comunicação, linhas de transmissão de energia elétrica em terras indígenas mesmo sem a concordância dos povos que vivem lá.

Vale lembrar que grandes atrocidades foram cometidas durante a ditadura militar em obras, como a abertura da rodovia BR-174, que liga Manaus a Boa Vista.

Aqui vale se debruçar um pouco e falar do passado.

LegRelatos colhidos de sobreviventes em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal contam que helicópteros sobrevoaram as aldeias Waimiri-Atroari, derramando veneno e detonando explosivos sobre centenas de indígenas reunidos.

Depois, ataques a tiros, esfaqueamentos e degolas violentas praticadas por homens brancos fardados contra adultos e crianças sobreviventes. Tratores passaram, na sequência, destruindo tudo.

As obras da BR-174 também levaram doenças para a população. Muitos morreram sem apoio e a rodovia se tornou vetor de ocupação do estado de Roraima e orgulho da ditadura.

O relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma, com base em dados oficiais, que houve uma redução de 3 mil, nos anos 1970, para 332 indígenas nos 1980.

O PL 490/2007 só não permitiu o garimpo e a mineração nos territórios indígenas por não indígenas graças a uma emenda da deputada Duda Salabert (PDT-MG).

Se esse item fosse aprovado seria, aliás, uma piada sombria, uma vez que estamos vivendo uma tragédia yanomami, com 570 crianças com menos de cinco anos de idade mortas durante o governo Bolsonaro devido às doenças, fome e violência causadas pela presença do garimpo no local.

“A proposta, se aprovada, ressoará como uma ‘pá de cal’ aos acordos internacionais e investimentos que o Brasil pretende obter. Além disso, poderá aumentar o desmatamento, as invasões de terras, ante a expectativa de anulação dos processos de demarcação e incitar mais violência contra os povos indígenas”, aponta nota técnica divulgada após a aprovação do PL pelo Instituto Socioambiental (ISA)

Se não for derrubado pelo Senado Federal ou declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, vamos legalizar o genocídio.

*Leonardo Sakamoto é colunista no UOL.

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