Kasrils:”O que Israel faz com os palestinos é pior que o apartheid”

Tempo de leitura: 7 min

Ronnie Kasrils: ““Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid”. Foto: Carlos Carvalho/CartaMaior

Para Ronnie Kasrils, Israel só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. “Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu.

por Katarina Peixoto, em Carta Maior

Ele tem 73 anos e nasceu numa comunidade judaica de Joanesburgo, formada por fugitivos do extermínio em Vilna e em Riga, na Lituânia, no início do século XX. Aos 9 anos, numa sessão de cine-notícias entre filmes, viu as imagens que começavam a circular, no mundo, dos campos de concentração nazistas. Voltou para casa e perguntou à sua mãe, a quem diz dever a sua consciência frente à opressão e à intolerância, se o que acontecia na sua vizinhança e no seu país, com a população negra, era a mesma coisa. Se a pobreza, a humilhação e a segregação a que estavam condenados pelos brancos era a mesma coisa que, no cine-notícia que acabara de ver, chamaram de antissemitismo.

“A minha mãe, que não era uma intelectual, cuja família tinha uma delicatessen, mas que frequentou a escola até os 16 anos, disse que não, que não era a mesma coisa. Mas que aquilo que eu tinha visto e que tinha acabado de acontecer com o nosso povo na Europa tinha começado dessa mesma maneira que eu descrevera, ali (na África do Sul)”.

Esse é o tipo de coisa que Ronnie Kasrils começa a contar, assim que senta na mesa e pede que nos apresentemos, para uma conversa com alguns dos mais proeminentes participantes do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que começa nesta quinta (29) e vai até domingo, em Porto Alegre.

Ronnie, ou “Ronaldo”, como ele gosta de se chamar, aqui, é um homem extraordinário e um sujeito adorável. Parece muito mais jovem, talvez pela exuberância, talvez pela natureza de seu compromisso moral com o mundo. É muito raro, quando se trata da questão palestina, que algum militante abra sorrisos tão largos e demonstre tamanho otimismo, como o faz Kasrils, um escritor, ativista, ex-ministro de estado da África do Sul pós-apartheid e membro do Tribunal Russell para a Palestina.

Ele começou a falar de sua vida, de suas trajetórias e de suas escolhas. É difícil de acreditar, mas Kasrils, aos dez anos, fez parte do Betar, o movimento da juventude sionista criado por Ze’ev Jabotinsky, o pai do revisionismo sionista, um movimento de extrema direita, que defende o que chamam de Israel bíblica, algo que hoje implicaria a incorporação da Síria, do Líbano, da Jordânia e do norte do Egito. Ronnie contou esse fato pitoresco rindo, para em seguida deixar claro:

“Éramos muito influenciados por um professor, que estimulava um sentimento de violência e de conflito, inclusive entre nós, e mesmo físico, como se isso nos fortalecesse, como um projeto pedagógico. Éramos meninos, tínhamos pouco mais de dez anos, mas entendemos que ele era doente. Era um louco”.

O seu engajamento no Betar se desfez com essa descoberta e também com a entrada no ensino médio, num colégio da elite branca, onde conheceu um professor história, Teddy Gordon, também judeu, que lhe ensinou sobre a Revolução Francesa.

É difícil descrever à altura o brilho nos olhos do sul-africano, quando falou de seu professor, a quem atribui a mudança mais definitiva na sua vida. Ronnie Kasrils é um homem poderoso e mundialmente conhecido, pegou em armas com Mandela, foi ministro de estado, mas quem mudou a sua vida, em termos políticos, foi o professor de história que lhe deu aula sobre um acontecimento chamado Revolução Francesa.

“Eu era, até então, um péssimo aluno, eu era um atleta, não era da ala dos intelectuais, como Richard Goldstone, que era meu colega. Mas quando esse professor começou a dar aula eu me tornei o melhor aluno, e saí do colégio de maneira promissora”, disse, sorrindo, convincente.

Kasrils tem aquela capacidade rara de nos ensinar a mirar a história com ganas de atribuir-lhe sentido e com a confiança em tal coisa. A escolha por nos contar essa história, essa pequena parte dela, era uma operação deliberada e ao mesmo tempo refinada. Era como se ele estivesse nos dizendo: olha aqui, gurizada, eu passei a levar a sério um ponto de vista universalista e é deste ponto de vista que eu estou aqui.

A ligação com a esquerda judaica e a luta contra o apartheid sul-africano

“Mas eu também saí do Betar por uma outra razão”, conta, rindo. “As meninas do Habonim Dror eram muito mais bonitas” e, na época, Kasrils não era exatamente um militante da esquerda judaica socialista, que buscava criar um lar nacional judaico a partir da cultura e da educação e da vida kibutziana.

“O que me tornou de esquerda foi o massacre de Shaperville, de março de 1961, em que 69 militantes pacifistas negros foram mortos e centenas ficaram feridos. Ali eu tomei a decisão de que iria fazer alguma coisa. A minha família nunca foi militante, de esquerda, mas eu tinha um tio na Cidade do Cabo que era advogado e comunista. Eu peguei um ônibus e fui para a casa dele. Cheguei lá e disse: eu quero me juntar a vocês”.

Ele nos olha bem sério, encosta-se na cadeira, abre um sorriso e completa:

“Então foi assim que eu comecei. Eu tinha de pôr em contato os núcleos da resistência ao apartheid, os membros dos partidos comunistas, da esquerda. E o meu tio estava isolado, noutra cidade. Eu disse que iria fazer isso. E fiz”.

Quando Mandela convocou à luta armada, após os acontecimentos de Shaperville, Kasrils se juntou a ele. Treinou na União Soviética, recebeu formação militar e esteve em vários países africanos, quando se tornou chefe de inteligência militar do movimento Lança de Uma Nação, o braço armado do Congresso Nacional Africano, liderado por Nelson Mandela. Passou cinco anos na cadeia, perdeu o emprego como executivo de uma empresa de telefonia, foi perseguido e banido da comunidade branca sul-africana. E se tornou ministro de estado da África do Sul pós-apartheid. Foi então que se voltou para a questão palestina.

A luta contra o apartheid israelense

Com o fim do apartheid e a primeira eleição democrática da África do Sul, Kasrils se tornou ministro de estado. E, depois do ministério da defesa, foi nomeado ministro para assuntos de água e florestas, de 1999-2004. Nesse período, ocorreu a segunda intifada e o muro de anexação de territórios palestinos, pelo então governo de Ariel Sharon, começou a ser erguido, anexando territórios palestinos para construir assentamentos, esmagando casas e vilas palestinas, segregando bairros, vilas e famílias, dividindo a região e instaurando um sistema identificado pelo sul-africano como muito mais hostil que o apartheid sul-africano.

Em 2001 ele redigiu a “Declaração de Consciência de Sul-Africanos Judeus”, contra as políticas israelenses nos territórios palestinos ocupados. Passou a ser acusado de antissemita, pela direita judaica local, e viajou para a Cisjordânia, como ministro para assuntos de água e florestas. Lá conheceu Jamal Juma, que dava início ao movimento de resistência não violenta Stop the Wall.

O que você defende como solução, os dois estados, as fronteiras da linha verde, um só estado para dois povos? Eu perguntei e isso parece não ter ecoado como uma questão a ser respondida. Kasrils olha para mim e diz que Israel só vai mudar, só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. Mas é preciso constranger economicamente, não apenas politicamente. O programa de Desinvestimento e de Boicote significou o começo do fim do apartheid e nós terminamos vencendo. Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrangê-los materialmente, economicamente”, defendeu.

Para Kasrils, o fato de que em Israel os cidadãos palestinos são cidadãos de segunda classe, com direitos limitados e sem o grau de liberdade civil dos israelenses configura apartheid. “No regime do apartheid, diante de um mestiço que não se sabia ao certo se era negro ou não, passavam um pente para ver se iria ou não deslizar sobre o cabelo. Caso o pente parasse, a pessoa iria para os setores dos negros”.

Em Israel não é assim, mas não precisa ser, lembrou. Há um muro que consegue separar as sociedades, anexando territórios dos palestinos, mas que afasta completamente os dois povos, promovendo limpeza étnica e criando “coisas como rodovias em que só judeus podem trafegar. Isso é uma violência que nem o apartheid sul-africano cometeu. O que o estado de Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que aquilo que acontecia no apartheid sul-africano”, concluiu.

O Fórum vai de 29 de novembro a 01 de dezembro e tomará conta da Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre. Confira programação aqui: www.wsfpalestine.net

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Milton conti

Imagino o quanto não deve ter de agente da CIA e do MOSSAD em Porto Alegre acompanhando este movimento.

Thomas Nok

Gostaria de ter informações sobre empresas israelenses que atuam por aqui.
Para nunca comprar nada delas.

Jair de Souza

Ronnie Kasrils é um exemplo que nos recorda a importância da participação de gente vinculada às comunidades judaicas na linha de frente das lutas em prol de causas humanistas por todo o mundo até pouco tempo atrás.

Ainda da África do Sul, é impossível não mencionar o papel fundamental exercido por Joe Slovo, o verdadeiro arquiteto da gloriosa luta do povo sul-africano contra as forças do apartheid (lembremo-nos que Mandela permaneceu preso sem comunicação com o resto do mundo por várias décadas, até as vésperas de sua libertação).

Esses são exemplos que se repetiam em grande escala por todo lado. Onde havia injustiça contra os mais humildes, lá estavam, em grande número, intelectuais de ascendência judaica para lutar ao lado do povo contra as forças opressoras.

No entanto, com o crescimento da influência do sionismo entre as comunidades judaicas, atualmente esta participação de elementos de ascendência judaica nos movimentos pelas causas populares reduziu-se drasticamente.

Claro que ainda há vários deles que desempenham papeis de suma relevância (Ilan Pappe, Noam Chomsky, Naomi Klein, Jeff Halper, etc), mas é inegável que eles hoje são muito menos do que eram antes da ascensão do sionismo.

Estou fazendo este exercício de recordação tão somente para deixar claro que entendo que a abominável ideologia do sionismo não é algo que venha das entranhas do judaísmo. Ela se impôs sobre a maioria dos judeus em circunstâncias históricas especiais, mas essa atual hegemonia de nenhuma maneira deve ser considerada como garantia de sua eternidade.

O desmascaramento dos crimes de Israel servirá para ajudar a muitas das pessoas bem intencionadas dessas comunidades a compreender o que está realmente por trás do sionismo.

Um dos entraves que dificulta o trabalho de esclarecimento dos judeus bem intencionados (mas ainda enganados pelo sionismo) é a confusão entre judaísmo e sionismo. Os ideólogos do sionismo necessitam imperiosamente que os não judeus, de modo geral, considerem que o sionismo e o judaísmo são uma única coisa. Com essa associação é que eles conseguem meter medo entre os judeus (Condenar Israel é condenar o judaísmo) e, assim, ganhar o apoio da maioria deles. Sem esse apoio, Israel não conseguiria se manter.

Portanto, eles propagam a ideia de que os que lutamos contra o sionismo, lutamos, na verdade, contra o judaísmo. Lamentavelmente, há alguns que facilitam a tarefa dos sionistas ao embarcar nesta mesma canoa.

    EDU MOISÉS

    Jair,durante um tempo não muito remoto quando não havia internet e as informações nos chegavam através de midias-empresas de TV e jornais comprometidas com o sionismo está estratégia de vitimização até q funcionou bem diante da opinião pública.A minha percepção hoje é de que a comunidade judaica fora de Israel olha de forma silenciosa(ou não)com muito mais desconfiança essa política sionista,além de uma opinião pública mundial cada vêz mais consciente da verdade dos fatos demostrado pela aprovação maciça na ONU da Palestina como estado não membro.
    Por outro lado a balança de forças entre o apoio político,financeiro e bélico q Israel possui e o ativismo e a maior conscientização ainda é bem desproporcional a favor de Israel.O caminho será arduo mas a justiça ainda será feita.

ejedelmal

O que Israel (NÃO OS JUDEUS, QUE FIQUE CLARO) é pior que o NAZISMO, aliás é uma cópia do nazismo terrivelmente piorada pelo Ianquistão.

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