Como a mídia ajudou a ditadura na Guerra das Malvinas

Tempo de leitura: 4 min

“Hoje é um dia glorioso para a pátria” ou “As Malvinas em mãos argentinas”, foram algumas das manchetes da imprensa daqueles dias de guerra, dias em que o ex-capitão de Fragata Alfredo Astiz – condenado à prisão perpétua por crimes de lesa humanidade – içava a bandeira argentina nas ilhas em disputa. Os meios de comunicação cumpriram um papel decisivo na construção do relato da guerra, exacerbando e construindo o discurso dominante durante os dias do conflito. O artigo é de Francisco Luque.

por Francisco Luque , de Buenos Aires, em Carta Maior

Buenos Aires – Independente da justa reivindicação, legitimada por títulos e direitos inalienáveis com respeito à soberania argentina das ilhas Malvinas, hoje, depois de 30 anos do desembarque nas ilhas, há um fato impossível de negar: como a ditadura inventou uma operação bélica para lavar a cara do processo que a Argentina vivia desde 1976 e como os meios de comunicação da época, unânimes e submissos, por medo ou censura, contribuíram na construção deste relato.

Se a ditadura tinha uma forma de se perpetuar era essa: atiçar o sentimento nacional sobre a soberania das ilhas. E fez isso porque estava com problemas. Em 1982, a inflação era de 90% anual, havia recessão, os salários estavam arrochados e a pobreza crescia. Por outro lado, começavam a ser desvelados a repressão política e os crimes de lesa humanidade que a ditadura tentava ocultar sob seu midiático slogan: “nós, argentinos, somos direitos e humanos”.

O primeiro sintoma de mal estar geral contra a ditadura foi no dia 30 de março de 1982, quando uma mobilização massiva chegou à Praça de Maio convocada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT). Ainda que a repressão policial tenha sido brutal nessa manifestação, os canais de televisão públicos – em mãos dos três ramos das forças armadas – não transmitiram imagens em seus noticiários noturnos.

Houve sim imagens quatro dias depois, quando o ditador Leopoldo Galtieri saudou de um balcão da Casa Rosada milhares de pessoas que o aclamavam após anunciar o desembarque das tropas argentinas nas Malvinas. “Estamos dispostos a aniquilar quem se atreva a tocar meio metro quadrado de território argentino”, rugiu o militar.

As rádios e os canais de televisão fizeram eco ao sentimento popular. Todo o país parava para seguir os comunicados oficiais ou ver as cenas de guerra pelo que seria o porta-voz da guerra: a televisão. Ela era a encarregada de emitir os comunicados que dia-a-dia a junta militar transmitia à população. E foi nela também onde a censura de imprensa ficou mais exposta e à disposição da memória social, anunciado, inclusive, oficialmente:

“Todos os boletins e notícias do exterior, seja qual for sua procedência e meio utilizado e toda informação relacionada com aspectos que dizem respeito ao desenvolvimento das operações militares e de segurança nacional, ficam sujeitos ao controle do Estado Maior Conjunto, prévio a sua difusão pelos meios informativos, sejam estes orais, escritos ou televisivos”, dispôs a junta militar (Boletim Oficial, 30 de abril de 1982).

Os canais de televisão da capital tinham como única fonte de informação o Estado Maior Conjunto e daí vinham as noticias oficiais. Os canais do interior apenas podiam “reproduzir o informativo do canal de Buenos Aires com o qual tinha convênio e encher espaço com noticias de rádio ou de teletipo”

A cadeia oficial ATC – hoje Televisão Pública – era a origem de transmissão de todos os comunicados da junta militar. Emblemática era a figura do jornalista José Gómez Fuentes que em seu programa “60 minutos” emitia a frase: “Vamos ganhando”. Inclusive foi nesse programa que se informou que havia sido avariado o porta-aviões britânico Invencible – notícia que posteriormente se confirmou que era falsa. “Argentinos a vencer”, era o slogan mais repetido nos intervalos comerciais.

Andrew Graham-Yooll, jornalista argentino-britânico e ex-diretor do jornal Buenos Aires Herald, conta que nos dias de abril de 1982 a imprensa argentina era “estridente, histérica e gritona”. Suas manchetes exultantes só demonstravam que não sabiam realmente o que estava sucedendo.

“Com os breves comunicados que a Junta emitia se construía o discurso. Naquele momento a Argentina era uma sociedade que havia passado do silêncio à estridência, onde o rumor era a informação. Toda a mídia estava agindo da mesma forma. Por isso, viver na Argentina hoje é viver em liberdade de imprensa, nunca antes havia vivido em um estado de liberdade de imprensa. Sem estridências nem evasões”.

A imprensa ocultou também – por ação ou omissão – as graves violações aos direitos humanos cometidas pelos oficiais contra os soldados. A jornalista Natasha Niebieskikwiat, autora do livro “Lágrimas de hielo” (Lágrimas de gelo), sustenta que durante a guerra das Malvinas, se produziram torturas, abusos e mortes de soldados por fome, e que se estudam processos para 70 oficiais do exército argentino, por este motivo.

“Os meios de comunicação prestaram muito pouca atenção àqueles jovens que chegaram destroçados, ocultos em caminhões de gado. Muitos oficiais e suboficiais impuseram falsos códigos de justiça militar para justificar estes crimes. Alguns jovens soldados foram estaqueados, golpeados brutalmente e enterrados vivos e o pior, muitas vezes os oficiais não repartiam a comida. Em geral, a imprensa calou e houve pequenos espaços como a revista 7 dias que mostrou os soldados famintos refletindo o estado em que chegavam ao continente”.

“Hoje é um dia glorioso para a pátria” ou “As Malvinas em mãos argentinas”, foram algumas das manchetes da imprensa daqueles dias de guerra, dias em que o ex-capitão de Fragata Alfredo Astiz – condenado à prisão perpétua por crimes de lesa humanidade – içava a bandeira argentina nas ilhas em disputa.

Os meios de comunicação cumpriram um papel decisivo na construção do relato da guerra, exacerbando e construindo certos tópicos dominantes durante os dias do conflito com maior eficácia do que a ditadura era capaz de imaginar. A propaganda triunfalista, a construção da imagem de um povo unido e unanimemente convencido da causa no dia 3 de abril, a difusão de informação inexata e a construção de um inimigo, são alguns dos tópicos mais recorrentes na imprensa daqueles dias.

Ainda que existissem vozes dissidentes, como a revista Humor, os meios hegemônicos aderiram às exigências da ditadura e cumpriram sua missão com um zelo muito pronunciado. Como em outros momentos da ditadura, foram mais longe inclusive do que os próprios militares demandavam.

Entretanto, apesar das tentativas dos militares e da imprensa de ocultar a derrota e de construir outra realidade, os ingleses triunfaram e as tropas argentinas tiveram que render-se. Na guerra morreram 649 soldados argentinos e 285 britânicos, mais de 350 ex-combatentes argentinos se suicidaram desde o início da guerra até hoje. A crise política se aprofundou, a ditadura caiu e se criaram as condições para a volta da democracia.

Tradução: Libório Júnior

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Comentários

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Cleverton_Silva

Quando o colapso iminente bateu às portas dos golpistas, eles tentaram abstrair as atenções da população provocando guerras santas. Deus é justo! Eles falharam! Na Argentina, as Malvinas; no Brasil, o atentado ao Rio Centro. Os golpes morreram de inanição e o acerto de contas está chegando.

pperez

Olha o resultado de uma ditadura militar arcaica,criminosa,fascista,intolerante e incompetente.
Na tentativa de se fortalecer, os generais ditadores pensaram que a Inglaterra não reagiria a invasão e posse das Malvinas.
Deram com os burros nágua e ainda fortaleceram a dama de ferro que além de arrasar a vida e a auto estima Argentina, de quebra aniquilou a estrutura economica e social de dezenas de paises inclusive a nossa com seu capataz FHC!
E ainda idolatram essa peça!

Julio

Bom, pelo que mostra o artigo acima, a imprensa argentina de então não agiu de forma diferente da imprensa norte-americana logo após os atentados as torres gêmeas em Nova Iorque!

    Valdeci Elias

    O governo paulista tambem, não é tão diferente do argentino, em relação ao controle da imprensa. Como exemplo vejam o caso Pinheirinho, em pleno sec 21 a PM invade uma comunidade, e nenhuma imprensa fica presente registrando o fato.

Julio

Hoje, a vida dos Malvinos é extremamente cara e tediosa. Todas as mercadorias são importadas da Inglaterra, que as vende por preços absurdos (seja devido a distância, seja devido ao monopólio), As ilhas se resumem as atividades militares e de extração de petróleo. Por conta disto, a proporção de homens para cada mulher é absurda! Não há qualquer tipo de investimento significativo nas ilhas. A Inglaterra trata seus moradores da mesma forma como sempre tratou suas colônias. Se a Argentina forçasse a barra e pudesse fazer a propaganda certa junto ao Malvinos, certamente teria boas possibilidades de retomar suas ilhas Malvinas!

    renato

    Mas e o orgulho ingles, onde fica?

PAP

Fatos:

No meu ponto de vista, geograficamente as malvinas são argentinas. Todavia, a população, o cotidiano e a força
de ocupação são britânicos.Talvez o jeito fosse uma negociação onde a argentina ficasse com as malvinas, mas
a "indenização" , se comprovado que realmente tem pétroleo, poderia ser um percentual da produção. Os habi-
tantes poderiam ser indenizados e realocados no norte da grã-bretanha.E por fim, penso eu, os britânicos agra-
deceriam por não ter que manter base e equipamento militar, podendo investir o dinheiro economizado na sua
combalida economia.

grilo

A Guiana Francesa pertencerá à França até que o povo de lá resolva promover sua independência. E claro, os vizinhos ajudarão. Sobre os exocet francês usado pelos argentinos, com códigos desvendados aos ingleses, que sirva de lição aos paises lacaios que costumam ir às compras de armamentos no primeiro mundo.

    RicardãoCarioca

    Mesma coisa para o povo das ilhas Malvinas, que aliás, não são bobos, querem ser britânicos, nascer falando inglês, com instituições civilizadas, moeda secular, etc. Infelizmente, a Christina está usando esse assunto para mascarar o momento econômico assimétrico da Argentina (crescimento, mas inflação altíssima, protecionismo até com o Mercosul, etc.).

    Jotace

    Excelente, Grilo! Abs,

    Jotace

Horridus Bendegó

Esse ex-Cap Alfredo Astiz, torturador e assassino de ativistas políticos da Argentina, se rendeu às tropas britânicas sem dar um único tiro.

Da leva dos que falam grosso com a Bolívia e fino com a Grã-Bretanha.

Nacimento

As Malvinas não umas ilhas perdidas no meio do nada. Estáo em cima de uma mar de petróleo e outros mineais na cadeia do Atlântico (Pré-Sal)

Qual a lição que fica para nós brasileiros?

1 – Fortalecer o MERCOSUL e a UNASUL.

2 – Investir em técnologia bélica inclusive a nuclear

3 – Fazer pressão diplomática como um todo para reaver o território.

4 – Não funcionando reaver na marra.

Por que mais dia menos dia eles viram atras da Amazônia e do Pré-sal.

beattrice

Usualmente se associa o CLARIN à ditadura argentina, por motivos vários,
mas o LA NACION não fica atrás.
A "portada" de ontem, ou seja, a manchete foi debatida nas redes sociais
e desmascarou de que lado esteve o jornal, na uerra, na ditadura e na história:
do lado dos fascistas. http://tiempo.infonews.com/2012/04/02/editorial-7

    Antonio

    Vergüenza Ajena…
    Para atacar o governo de Cristina o PIG da Argentina chega ao cúmulo de homenagear os inimigos. Só falta o La Nación começar a chamar as Malvinas de Falklands.

    Antonio

    http://letras.terra.com.br/riff/857929/

ratusnatus

Sinceramente, essa reclamação não cola.
Depois de a História contada, fica fácil analisar e condenar. Mais ou menos como analisar uma partida de futebol após uma derrota,… aí fica fácil.

Bruno

Independente de quem tinha razão (embora, claro, eu ache que nunca que a Argentina teria razão em uma disputa tosca por um território que já estava, então, havia 150 anos com os ingleses), a Guerra das Malvinas foi um grave erro do regime. Entraram em uma guerra que não poderiam vencer por um território que definitivamente não valia o esforço nem as vidas perdidas, e pagam até hoje por isso com uma péssima relação diplomática com um potencial parceiro econômico. Tudo em nome do nacionalismo.

Cancão de Fogo

O Alexandre Garcia, porta voz da ditadura que detonou o Brasil por 21 anos, ontem, no Bom dia Brasil da Globo, falou entusiasmado, demonstrando grande satisfação, da condecoração que recebeu de Margaret Thatcher, quando fez cobertura da guerra da Malvinas. Fico imaginando os serviços que deve ter prestado aos ingleses. Tipo o que prestava à ditadura, quando indagava o General de plantão: – General o que devo falar hoje?.

RicardãoCarioca

Após ler sobre essas ilhas na Wikipedia, não consigo dar razão aos argentinos nessa disputa com os ingleses pela soberania daquelas ilhas. Há moradores lá, de várias gerações nascidos naquelas ilhas e eles querem ser britânicos. A não ser que alguém apresente uma forte razão, não mudarei de opinião (não vale o quesito proximidade física, a Guiana Francesa é colada com o Brasil e ninguém argumenta que ela não é da França).

    Renato

    Minha opinião é a mesma. Que a população das Ilhas Falkland decida se quer virar Ilhas Malvinas.
    Creio que vão decidir pela via inglesa.

Silvio I

A prensa não atuo dessa forma, pela censura si não eles faziam parte da ditadura. O Clarim que e uma mídia igual que aqui a Rede Globo se locupletou durante a ditadura.Inclusive por ela e que deve ter saído mais rapidamente, a lei dos médios.Esta lei feita no governo da Presidente Cristina.

marcosomag

Na verdade, a Guerra das Malvinas não foi o "passeio" britânico que a mídia brasileira apregoou na época (e apregoa hoje). A rendição argentina em 75 dias foi causada pelo isolamento dos soldados na ilha dos suprimentos necessários para a sua sobrevivência. A Marinha britânica teve grande êxito neste aspecto. Mas, em combate, os britânicos sofreram bastante. Perderam seu vaso de guerra mais moderno na época, o HMS Sheffield. Tiveram sérias avarias até no porta-aviões HMS Invencible. Quando os argentinos afundaram o Sheffield com um míssil francês Exocet, a então Primeira-Ministra britãnica, Margareth Thatcher, exigiu do então Premiê francês, François Mitterrand, os códigos secretos para que pudessem os britânicos neutralizarem os vários Exocet ainda não disparados pelos argentinos. Desesperada, chegou a chantagear Mitterrand com ameaça de ataque nuclear à cidade argentina de Córdoba. Se os argentinos tivessem cuidado de estocar provisões nas ilhas, o final desta guerra poderia ter sido diferente.

    Sérgio Ruiz

    Marcosomag você está certo em tudo que escreveu, já pesquisei sobre essa guerra e concordo com você.

    renato

    Uma tele aula, parabéns!

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