Jornal Nacional, Ato 3: O silêncio sobre Lula e o tiro na água com Huck

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No dia 6 de agosto de 2018, início oficial do processo eleitoral, JN dedica quase três minutos a mostrar reservatório cheio de água em SP

por Ângela Carrato e Eliara Santana*, especial para o Viomundo

ATO 3:  ELEIÇÕES 1 – JN, do anti-Lula ao fascismo tupiniquim de Bolsonaro

CONTEXTO

O JN, como de resto quase toda a mídia brasileira, sempre se  autoproclamou “isento”.

Vale dizer: aquele que não tem lado e que noticia o que “acontece”.

Razão pela qual seria descabido, aos olhos da família Marinho, deixar transparecer, no principal noticiário de sua emissora,  qualquer preferência por este ou aquele candidato.

Apesar disso, é possível identificar, a partir de estratégias discursivas adotadas pelo JN, elementos que mostram como possíveis candidaturas à presidência da República foram infladas, silenciadas ou abandonadas ao longo dos últimos nove meses.

A CONSTRUÇÃO DE CENAS

Uma rápida ida ao passado

Em 1988, o núcleo de teledramaturgia da TV Globo, providencialmente, colocou no ar, em maio, a novela Vale Tudo.

No início do ano seguinte, ela foi sucedida por O Salvador da Pátria, que atravessou todo o período de campanha eleitoral. Ambas  retratavam um país em  que a corrupção e os expedientes diversos davam o tom.

Coincidentemente, um  pouco conhecido  governador do  Estado de Alagoas, Fernando Collor de Mello, começava a aparecer no JN, e  suas declarações contra a corrupção e os marajás logo ganharam destaque.

Graças a essas telenovelas, a candidatura de Collor, junto com a edição manipulada de cenas do debate no segundo turno entre ele e Lula, no JN, são apontadas por inúmeras pesquisas acadêmicas como tendo prestado inegável contribuição para a derrota do candidato petista.

De volta ao presente

Nas eleições de 2018, a Globo não queria terceirizar. Tentou emplacar o apresentador Luciano Huck como “alternativa”, nova, às candidaturas tradicionais.

Em 15 de fevereiro, o apresentador surpreendeu anunciando que desistia definitivamente de ser candidato, mesmo elogiado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e contando com 8% de preferência em pesquisa do Datafolha.

Huck justificou que atendia a “pedidos da família e de amigos”.

Mas a desistência tem a ver com o fato de sua mãe, Marta Grostein, ser casada com o economista Andrea Calabri, acusado pelo Ministério Público Federal de conceder, irregularmente, empréstimos para a privatização da Eletropaulo em 1998, além de ter respondido por crimes de colarinho branco.

Huck, ao que tudo indica, preferiu não dar margem para o caso ser remexido. Nada disso foi mostrado pelo JN.

Em seguida, o JN, além de não noticiar denúncias ou processos contra políticos tucanos,  passou a dar destaque à gestão do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB),  sobretudo no que se refere à segurança pública.

O Estado de São Paulo começou a ser apresentado, em uma série de matérias especiais do JN, como uma espécie de modelo de gestão para o resto do país, com ênfase para o manejo dos recursos hídricos.

Detalhe: em 2015 o JN noticiou a crise hídrica em São Paulo sem fazer qualquer referência ao governo Alckmin.

Antes de terminada a Copa do Mundo de Futebol na Rússia, em julho, Alckmin já ocupava o lugar de candidato dos sonhos da família Marinho, mesmo que enfrentasse problemas dentro do seu próprio partido.

Problemas agravados com o surgimento de outras candidaturas no centro-direita: Álvaro Dias, João Amoêdo e Henrique Meirelles.

Até então, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, não era cogitado, pelo JN, como uma  efetiva alternativa. Era ainda o outro polo a ser combatido.

O papel que lhe cabia era o de anti-Lula, uma maneira de polarizar a eleição e garantir espaço para um nome “de centro”, bem ao gosto do mercado.

É importante destacar que, ao mesmo tempo, no JN, toda a movimentação envolvendo a luta pela candidatura de Lula era silenciada ou apresentada somente pelo lado das tecnicalidades jurídicas.

Detalhe: as referências ao ex-presidente eram sempre acompanhadas pelo que se tornou um mantra no JN: “O ex-presidente Lula está preso na superintendência da Polícia Federal, em Curitiba, onde cumpre pena de 12 anos e um mês por corrupção passiva e lavagem de dinheiro”.

Nenhuma das dezenas de visitas ilustres, brasileiras ou estrangeiras, que Lula recebeu em sua cela foi mostrada pelo JN.

Da mesma forma, o telejornal silenciou sobre a estratégia do PT de manter a candidatura de Lula e indicar dois vices (Haddad e Manuela D’Ávila), a chamada chapa Triplex, alusão irônica ao imóvel pelo qual o ex-presidente foi condenado, sem provas, por Moro.

Dito de outra forma, o JN retardou o quanto pode a informação de que Fernando Haddad seria o substituto de Lula, caso a Justiça Eleitoral decidisse não aceitar sua candidatura.

Igualmente foi silenciado, pelo JN, que o Comitê de Direitos Humanos da ONU se pronunciou a favor do direito de o ex-presidente disputar as eleições.

SEM O FINAL ESPERADO

Com Lula fora do páreo, as pesquisas de intenção de voto passaram a apontar que Bolsonaro assumia a liderança da disputa.

Político profissional há décadas, ele, ancorado pela descontração da política  em curso há muito tempo, com auxílio da mídia corporativa como um todo, tendo o JN à frente, conseguiu vender para amplos setores da população a ideia de que não é político.

Mais ainda: a mídia foi fundamental para transformá-lo em um misto de “herói” e “justiceiro”, alguém capaz de “livrar o Brasil da corrupção” e colocar “ordem na casa”.

O dedo em riste, como um revólver, se tornou o símbolo da campanha da dupla Bolsonaro-Mourão, com seus seguidores fazendo apologia da violência.

Em vez de divulgar os graves problemas que esse ódio passou a gerar (intolerâncias de todo tipo e atitudes fascistas por parte de seguidores de Bolsonaro), o JN optou por não discutir as propostas dos candidatos e dar espaço apenas para cenas diárias de suas campanhas.

Em outras palavras: o JN despolitizou ao máximo a campanha eleitoral, transformando-a em cenas de candidatos viajando pelo país, conversando com eleitores, recebendo tapinhas nas costas e abraços.

Desde que começou oficialmente em agosto, o que se via no JN era uma espécie de campanha política apresentada da forma mais apolítica possível.

Nesse contexto, o que é passado para os telespectdores é que os candidatos devem se enquadrar às regras ditadas pela Justiça.

Vale dizer: aqueles que foram condenados por improbidade ou corrupção não podem concorrer.

As decisões judiciais são apresentadas como soberanas e isentas de erros, distantes de qualquer contaminação pela política.

Falas dos ministros do STF são uma constante nas edições do JN. Nem parecia que a população brasileira iria às urnas em outubro para uma escolha crucial para o seu futuro e o futuro do próprio país.

A eleição passou a vigorar como mais um detalhe na grade do JN. Um detalhe incômodo e irrelevante.

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

*Eliara Santana, também jornalista, doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.

Leia também:

Jornal Nacional, Ato 1: A cena do avião e o sumiço de Lula

Jornal Nacional, Ato 2: A Globo e o candidato “de centro”

Jornal Nacional, Ato 4: A “humanização” de Bolsonaro


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