Eric Nepomuceno: Executivo do Clarín torturou e ameaçou viúva e filha de ex-dono de Papel Prensa

Tempo de leitura: 4 min

Argentina: o que há por trás de um jornal chamado Clarín (II)

“Até hoje lembro os rostos de meus torturadores. Porém, nenhum desses rostos, nenhum desses olhares, me persegue e amedronta mais em meus pesadelos que o olhar de Héctor Magnetto me dizendo que ou assinava a venda de Papel Prensa, ou eu e minha filha seríamos mortas”, relatou Lidia Papaleo, viúva de David Graiver, ex-proprietário de Papel Prensa, diante de um tribunal. Héctor Magnetto era e continua sendo o principal executivo do grupo Clarín. O artigo é de Eric Nepomuceno.

Eric Nepomuceno, de Buenos Aires, em Carta Maior

Na América Latina, não é nada incomum – aliás, muito pelo contrário – que, durante regimes de exceção, que é como os delicados de vocabulário e os débeis de caráter chamam as ditaduras, grandes conglomerados de comunicações tenham surgido, se consolidado e se transformado em impérios.

É curioso reparar como a forma em que esses grupos e organizações foram criados corresponde a uma clara divisão do mercado, cuidando sempre de reservar espaço para que atuem, na prática, como monopólios. Assim, passam a impor suas vontades e suas visões do mundo, que no fundo são o eco exato do que dita a voz do poder econômico. Dizem não depender do governo, o que, a propósito, é mentira. Nada dizem de sua dependência vital, direta, do poder econômico, sua verdadeira verdade.

Observar essa espécie de fenômeno comum às nossas comarcas mostra a clara existência de um modelo, implantado aqui e acolá com leves variações, mas sempre ao redor do mesmo mecanismo.

Por trás da furiosa oposição que o grupo Clarín faz ao governo de Cristina Fernández de Kirchner existe uma história linear, típica desse mecanismo.

O grupo apoiou sem pejos uma ditadura espúria, com todos os ingredientes comuns às nossas comarcas (favorecimento do poder econômico à custa do atropelo dos direitos civis mais elementares, sedução e cumplicidade de parcelas das classes médias, omissão diante da atuação brutal dos agentes encarregados de impor o terrorismo de Estado, através de prisões ilegais, torturas, assassinatos e desaparecimentos de opositores). Nesse período, se fortaleceu enormemente.

Assim, o retorno da democracia encontrou o grupo consolidado, e oscilando levemente ao sabor dos novos ares. Soube ser crítico na medida exata – medida limite – durante todos os governos seguintes, observando sempre que não fossem tocados de forma direta seus interesses (ou seja, os do poder econômico preponderante, o interno e o externo) e que as manchas do passado não fossem trazidas à luz do sol.

Até que tropeçou com um governo de outra tintura, que resolveu correr o risco de enfrentar os tais interesses e atiçar o passado. A crescente polarização que a Argentina vive nos últimos anos não faz mais que fortalecer esse embate.

O espaço para a crítica clara e frontal – e o governo de Cristina Kirchner merece e deve ser criticado em copiosos aspectos – perdeu lugar para a confrontação aberta, sem regras e princípios. A manipulação e a distorção de fatos e informações passaram a ser o pão de cada dia.

Acontece que, muitas vezes, não basta com ocultar ou sabotar informação. A vida tem seus próprios caminhos, e esses caminhos frequentemente escapam do controle dos que se acreditam capazes de controlar a própria realidade.

Agora mesmo tornou a saltar ao sol uma das fontes de tamanha fúria, um dos grandes nós desta questão: o passado do Clarín. Trata-se de uma série de revelações que o jornal já não consegue mais tapar.

Dia desses, e uma vez mais, Lidia Papaleo, viúva de David Graiver, falou. Agora, diante de um tribunal. E tornou a repetir, com mais detalhes que antes, o que viveu depois da misteriosa morte do marido no México, em agosto de 1976 (a ditadura de Videla tinha escassos cinco meses de vida), num desastre de avião jamais explicado.

Agora, e de novo, ela contou, com todas as letras, como foi coagida a vender ao Clarín as ações com que Graiver, um financistas astuto e brilhante, controlava a Papel Prensa, única fornecedora e distribuidora de papel-jornal no país.

Contou como foi presa depois – depois – de ter fechado o negócio. Os compradores foram o desaparecido jornal ‘La Razón’, o ‘La Nación’, e, levando a maior parte, o ‘Clarín’.

A certa altura de seu depoimento, Lidia Papaleo contou das sevícias que padeceu. Muitas vezes, depois de vexada, era largada estendida no chão da cela ou da sala de tormento. ‘E então eles vinham e cuspiam e ejaculavam em cima de mim’, contou ela.

Antes que o juiz interrompesse a sessão para que o público abandonasse o recinto e ela pudesse continuar com seu rosário de horrores, Lidia disse:

– Até hoje lembro os rostos de meus torturadores. Porém, nenhum desses rostos, nenhum desses olhares, me persegue e amedronta mais em meus pesadelos que o olhar de Héctor Magnetto me dizendo que ou assinava a venda de Papel Prensa, ou eu e minha filha seríamos mortas.

Pois bem: Héctor Magnetto era e continua sendo o principal executivo do grupo Clarín. Foi quem, naquele distante 1976, e antes do sequestro e das torturas de Lidia Papaleo, se reuniu com ela, e foi diante dele que ela capitulou.

Meses depois, assim que a transação foi sacramentada, Lidia acabou sendo levada para os calabouços do horror. Por que não a prenderam antes? Por uma questão legal: havia uma lei que passava diretamente às mãos do Estado as propriedades dos subversivos presos. E a ditadura não queria se apoderar da fábrica Papel Prensa: queria compensar os bons serviços prestados ao regime pelos três jornais contemplados.

Por que a prenderam? Por achar que havia mais patrimônio a ser espoliado. E porque era mulher, tinha sido casada com um financista acusado de cuidar do dinheiro dos Montoneros e, enfim, porque prender, violar e vexar era parte da rotina do sistema que compensou o silêncio cúmplice e interessado dos Magnettos da vida.

Assim começou a fortaleza e o império do grupo Clarín. Depois vieram as concessões de rádio e televisão em cascata, depois veio todo o resto.

Essa a história que há por trás da história. Os mesmos métodos aplicados contra Lidia Papaleo continuam sendo aplicados no dia-a-dia do grupo.

Nisso, pelo menos, há que se reconhecer uma consistente coerência: os que controlam o grupo Clarín jamais deixaram de ser o que foram. Continuam agindo como agiram, e cuidando, sempre, de jamais se aproximar da perigosa linha que marca o início de um território que desconhecem, chamado dignidade.

Leia também:

Juan Gasparini: Assassinato por papel-jornal

Fernando Brito: As barbas do vizinho

 


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Ex-ditador argentino condenado a 50 anos de prisão pelo rapto de bebês durante a ditadura militar « Viomundo – O que você não vê na mídia

[…] Eric Nepomuceno: Executivo do Clarín torturou e ameaçou viúva e filha de ex-dono de Papel Prensa […]

Julio Silveira

Quer dizer que o Clarim teve o seu Pimenta Neves?

PT com Honra

A mídia brasileira é dominada por quatro famílias: Genovese, Gambino, Bonanno e Lucchese.

Sérgio Ruiz

Espero que esse Héctor Magnetto seja punido com severidade, já os nossos Héctors Magnettos vão continuar a rir da justiça e junto com eles membros da nossa justiça.

Maria Paula

Terrível. Penso que falta aparecer muita história.

ZePovinho

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20272

Ex-governador admite que “suicídio” de Herzog foi maquiado

Em entrevista à Globonews. Paulo Egydio Martins, governador de São Paulo entre 1975 e 1979 afirma que suicídio do jornalista Vladmir Herzog foi maquiado e que, de fato, ele foi assassinado dentro das dependências do II Exército, na rua Tutóia, em São Paulo. Paulo Egydio Martins também afirmou que está disposto a depor à Comissão da Verdade. “Não temos de temer nada. É hora de botar para fora tudo o que for para botar para fora”.

Jotace

A Azenha e demais integrantes da equipe do Viomundo,

Parabéns a vocês todos por transcreverem no ‘nosso’ blog a matéria tão importante escrita por Eric Nepomuceno. Ainda bem que o povo e governo argentinos se irmanam na luta pela punição dos criminosos dos terríveis tempos da ditadura. Decerto que a leitura de tão impressionante depoimento por parte dos leitores do blog, servirá para manter e avivar a chama pela necessidade que a Comissão da Verdade atue como deve, e permita que se chegue à punição no caso brasileiro. Mesmo que os criminosos sejam grandes empresários na área da comunicação e tenham se situado por isso até hoje acima da Lei. Cada vez mais me convenço de quão importante é o trabalho dos blogs honestos,como o Viomundo, para maior conscientização do povo brasileiro. Um cordial abraço do. Jotace

grilo

Bem, mas por que esse executivo/torturador do Clarin ainda está solto? A Argentina não passou a limpo os crimes da ditadura? É certo que o processo judicial parece estar correndo contra esse crápula, mas depois de tanto tempo! Desculpem, esqueci que por aqui ainda nem começamos…

Alberto Santos Neto

As organizações Globo, do Roberto Marinho, deixada de herança para seus filhos talvez tenha uma história tão ou mais escabrosa do que esta do Clarin na Argentina e nada acontece. Na Argentina os torturadores estão sendo condenados à prisão e as empresas e pessoas que colaboraram com o regime de terror estão sendo denunciadas. No Brasil, ocorre exatamente o contrário, os que colaboraram e se enriqueceram com a ditadura em virtude de uma colaboração explicita, continuam cada vez mais poderosos. Basta olharmos para o poder que detém ainda hoje, empresas como as Organizações Globo e o Grupo da Folha de São Paulo. Eles, apesar de terem colaborado com a ditadura militar, chegando a emprestar veículos para transporte de presos políticos, ainda causam tanto medo aos nossos políticos e juízes que chega a ser tabu qualquer menção a alguma Lei que mexa com a imprensa ou que venha a condenar os torturadores brasileiros.

Bernardino

AZENHA e equipe por que nao consigo ler as opinioes dos internautas que aparecem em branco somente com o nome data e horario da postagem
gostaria que me respondesse por email.

Leider Lincoln

Repararam que, desde que o Viomundo passou a permitir _na prática)_ a identificação dos comentaristas, os trolls sumiram? A luz realmente espanta os ratos!

    EUNAOSABIA

    Então você deve usar óculos de proteção solar.

    abolicionista

    Ele não precisa.

Francisco

Ou os jornalistas não têm orgãos de representação coletiva da classe, ou ou os jornalistas são um bando de bananas ou não são bananas, têm orgão representativo da classe, mas… não têm acesso à mídia (!).

Não sei qual desses cenários é mais estarecedor…

ZePovinho

E aquele incêndio na Tupi,nos anos sessenta??????Não foi a Tupi que ficou contra a ditadura????
Com a palavra,a Comissão da Verdade.

Márcio Oliveira

O povo argentino não tem medo da verdade. Nós, brasileiros, precisamos perder esse medo e olhar no olho do PIG nessa CPMI.

Fabiano Araujo

É estarrecedor! E o “Clarin” ainda protesta contra o governo da sra. Cristina Kirchner, acusando-o de atentar contra liberdade de imprensa! Será que liberdade de imprensa para esse grupo é ter liberdade para torturar e matar? E onde está a tal SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa? Esta entidade sempre pronta para denunciar qualquer ato contra os magnatas da mídia, mas, muda quando esta mesma mídia comete crimes.

    Jotace

    Caro Fabiano,

    A SIP é um organismo de classe dos empresários da grande mídia. Alguns jornalistas que a integram, são quase sempre simples serviçais ali de prontidão para atendê-los. Ganham medalhas e outros prêmios para atentarem contra os direitos dos povos, manipulando a informação. Fazem parte da falida OEA, dois organismos criados aparentemente para servir a povos americanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso tenha tempo para melhor entender o que fazem as duas últimas acesse a TELESUR e veja o que está se passando na Conferência dos Chanceleres e que está se desenvolvendo hoje em Cochabamba, Bolívia. Abraços, Jotace

Nelson

Em excelente texto, Nepomuceno conta uma história que explica o porquê da verdadeira ojeriza que têm à Comissão da Verdade muitos dos nossos pretensos democratas. “Democratas”, RBS, Globo Folha e outros, que, sem pudor algum, se fartaram nas benesses oferecidas pela ditadura.
Por isso, basta de nominarmos como diatadura militar os anos de chumbo (1964-1985). Vamos usar a nomenclatura correta: ditadura civil-militar.

Remindo Sauim

São estes torturadores que a Zero Hora, Veja, Folha de São Paulo e Rede Globo defendem

reinaldo bordon carletti

a cpmi vai chegar e acabar com a prepotência global…..disso eu não tenho duvidas.
reinaldo carletti

Maurício Caleiro

O artigo do sempre lúcido Nepomuceno deixa claro que, enquanto engatinhamos com uma Comissão da Verdade a duras penas instalada e sem poder punitivo, a Argentina, após ter punido os torturadores – inclusive os grandões, como Videla -, avança mais um estágio, indo atrás das ligações civis com o regime. E, de quebra, reformula a estrutura da comunicação no país.

É certo que se trata de duas realidades nacionais diferentes, e que comparações nos mesmos termos tendem a ser inadequadas. Como apontou Franklin Martins no último encontro nacional de blogueiros, falando sobre o mesmo tema, o Brasil é um país-continente – em suas palavras, “um elefante” -, o que faria que nos movêssemos mais devagar que nossos vizinhos de continente.

Ainda assim, é inevitável a sensação de letargia e impotência – e, sobretudo, de revolta – ao constatar que brutalidades similares à relatada por Nepomuceno, cometidas em território nacional, permanecem, quatro décadas depois, impunes e fora do alcance da lei.

    Jotace

    Caro Maurício,

    Com o devido respeito tenho que discordar do Franklin Martins citado no seu comentário, e que situou a lerdeza e até a impotência do Brasil em punir os criminosos da ditadura como conseqüências do gigantismo da nação se comparada esta com a irmandade dos outros países latino-americanos. Nações maiores que o Brasil, quer de esquerda ou não, foram mais rápidas em suas atitudes nas suas histórias. E quanto à sensação de lerdeza à qual você se refere, que se esconderia na ‘revolta’ de que você fala, eu diria que o problema é da ordem da ciência médica, mais especificamente no campo da hematologia. Pois uma análise bem acurada do assunto por um especialista da área concluiria, sem dúvida, que a questão é a a grande diferença entre ‘o sangue’ e ‘la sangre’… Cordial abraço, Jotace

    abolicionista

    Linda, a carta. Começa com um “ad hominem” (chamando a presidenta de “patética”, belo trabalho de jornalismo informativo, não?) e vai descendo a ladeira. O PIG de lá é igualzinho ao daqui, né?

Giorgio

Nossa, esse relato em partes, lembra muita coisa aqui do Brasil, e algumas empresas de comunicaçao.

Deixe seu comentário

Leia também