Artur Scavone: Para que serve “A hora mais escura”?

Tempo de leitura: 5 min

por Artur Scavone, especial para o Viomundo

A tortura só tem três fins possíveis, não excludentes: 1) o prazer do torturador e/ou 2) forçar alguém a fazer o que não quer e/ou 3)disseminar uma política de Estado intimidatória.

Será que a tortura consegue tudo isso?

Para o primeiro objetivo, pode ou não cumprir seu fim, a depender dos desejos do psicopata e das reações do torturado. Se o desejo do torturador for o sofrimento do torturado e este for um masoquista doentio, o efeito será inócuo, o prazer não se realizará.

Para o segundo objetivo, a tortura pode ou não cumprir seu fim, a depender da subjetividade do torturado. São inúmeros os casos de torturados que desafiaram os torturadores até a morte. Sejam políticos, sejam marginais. E maior ainda o número de torturados que buscaram caminhos de diversificação para não fazer aquilo que o torturador queria. E há, é claro, um grande número que cedeu à vontade do torturador e fez o que era esperado.

Uma possível estatística, difícil de ser conseguida porque são sempre práticas inconfessáveis, comprovaria essa assertiva. Mas é possível estimar um resultado: as periferias das grandes cidades brasileiras são dominadas por delegacias onde se praticam indiscriminadamente a tortura e, apesar dessa prática, não há crimes esclarecidos na quantidade minimamente proporcional à tortura praticada.

Há, portanto, uma constatação desagradável: a tortura aparentemente não funciona. Então porque ela é praticada? Pela terceira razão: disseminar uma política de Estado intimidatória.

Nos EUA alguns se indignaram, com razão, pela estréia do filme “A hora mais escura”, acusando-o de fazer apologia da tortura. O filme constrói um falso dilema: a tortura é eficaz, então é preciso aceitá-la como prática de Estado quando esse estado está defendendo seus cidadãos de ameaças invisíveis. Porém, na realidade, não só o filme esconde a verdade sobre a prática da tortura – ela não é eficaz como pretende – para que ela seja aceita com o terceiro objetivo em vista: intimidar os que se contrapõe a esse Estado. Não fosse assim, Osama Bin Laden teria sido capturado há muitos anos atrás, tamanha a quantidade de árabes, palestinos, e tantos outros, que foram sequestrados e torturados em cárceres clandestinos providos por diferentes países aliados dos EUA.

Há, no entanto, que se ter uma grande preocupação com aqueles que se deixam iludir com as construções psicológicas hollywoodianas, em reforço à política do governo estadunidense. Exemplos tais como imaginar uma criança sequestrada e encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado, você teria preso o sequestrador, que não diz onde está a criança sequestrada: você tortura o sequestrador? Essas hipóteses são tentativas de – a partir de situações absolutamente particulares – construir uma universalização da defesa da tortura desde que seu objetivo seja “legítimo”.

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Assim como o pai tem o direito de torturar o sequestrador em defesa da sua criança, o Estado tem o direito de torturar quem ele considerar uma ameça aos seus cidadãos. O Estado se torna o pai pleno de justiça que defende seus filhos dos sequestradores invisíveis. E a política intimidatória se legitima na cabeça de quem aceita esses falsos dilemas.

PS do Viomundo:  O artigo de Artur Scavone é um contraponto à coluna de Contardo Calligaris, publicada na Folha de S. Paulo. Abaixo, na íntegra, o texto de Calligaris.

Artur Scavone é ex-preso político, jornalista e estudante de Filosofia da USP.

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21/02/2013 – 07h12

Para que serve a tortura?

Contardo Calligaris, na Folha de S. Paulo

A tortura tem, no mínimo, três fins não excludentes: 1) tortura-se pelo prazer enjoativo de quem tortura ou de quem assiste à tortura; 2) tortura-se para que um acusado confesse seu crime; 3) tortura-se para que um acusado revele a existência de um complô, os nomes de seus cúmplices etc. Será que a tortura consegue tudo isso?

1) Para satisfazer o desejo doentio do torturador, a tortura funciona, sempre.

2) A Igreja Católica, por séculos, torturou pecadores para que admitissem seus pecados e, sobretudo, torturou heréticos para que confessassem suas teologias desviantes.

Essa tortura era tão violenta quanto a que fora praticada contra cristãos na época das perseguições, mas o desfecho era diferente. Os mártires cristãos eram torturados para eles renunciarem à religião, e, às vezes, se abjurassem, o suplício era suspenso. Os heréticos eram torturados pela Inquisição para confessarem sua heresia, mas, em geral, a “confissão” não evitava uma morte excruciante.

Será, então, que a tortura funciona para arrancar confissões?

Se você for pai, faça a experiência. Seu filho (ou filha) fez uma besteira comprovada, sem sombra de dúvida, mas você não se contenta em aplicar uma punição e quer que a criança confesse. Se ela reconhecer sua culpa, aliás, a confissão valerá como uma atenuante, enquanto que, se ela insistir em negar o que fez, a mentira será infinitamente mais repreensível do que a besteira inicial.

Sugestão diferente: se você soube que seu filho ou sua filha fez algo que não devia, diga no que foi que errou, deixe pouco espaço de discussão e dê a punição adequada. Depois disso, amigos como antes.

Quase sempre, quando uma confissão é exigida, as crianças mentem com obstinação diretamente proporcional à de seu acusador. Elas fogem assim de uma humilhação radical, em que renunciariam à sua própria subjetividade: desistiriam de ter segredos e aceitariam que a versão do acusador substituísse a versão que elas gostariam de contar como sendo a história delas.

Claro, se você insistir, ameaçando a criança com punições cada vez mais requintadas, a criança talvez “confesse”, mas a confissão será apenas um ato de desistência, em que mesmo o inocente se dirá culpado do jeito que o acusador pede. Em suma, a tortura para obter confissões é um desastre.

Há uma certa beleza moral nesse fracasso: a tortura seria inútil, não ajudaria a chegar à verdade. Ou seja, existe um justificativa prática, “racional”, para aboli-la, além do horror que ela inspira em qualquer um (salvo, obviamente, em torturadores, inquisidores ou deuses vingativos).

3) Infelizmente, esse argumento “racional” só se aplica à tortura que tenta extirpar a confissão do acusado. Quanto ao uso da tortura para obter informações sobre cúmplices, paradeiros escondidos, complôs etc., vamos ter que encontrar razões puramente morais para bani-la, pois, constatação desagradável, ela funciona.

O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os “interrogatórios” brutais do agente Jack Bauer, na série “24 Horas”, funcionam. E, de fato, como lembra “A Hora Mais Escura”, de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.

Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa –se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade.

Para se declarar contra o uso da tortura no caso deste filme, alguém talvez invoque a moral kantiana e o dever de tratar os homens como fins e não como meios. A esse alguém, proponho um exemplo politicamente mais neutro, parecido com aqueles dilemas morais cuja prática (como descobriu um grande psicólogo, Lawrence Kohlberg) talvez seja a melhor forma de educação moral.

Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o que?

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