Próximo passo: culpar Lula pela intervenção na Líbia

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Pode com todo o mundo. Menos com o Lula!

por Luiz Carlos Azenha

A montagem acima, do NavalBrasil.com, mostra o ditador líbio Muammar Kadafi cumprimentando Barack Obama (Estados Unidos), Nicolas Sarkozy (França), Silvio Berlusconi (Itália), José Maria Aznar (Espanha) e o poodle do ex-presidente George Bush, Tony Blair (Reino Unido).

São simbólicas da hipocrisia do Ocidente em relação a ditadores.

Se ainda assim restam dúvidas, basta relembrar o relacionamento da britânica Margaret Thatcher com o chileno Augusto Pinochet ou, mais recentemente, a proximidade entre Barack Obama e o falecido rei Abdullah, da Arábia Saudita.

Quanto aos ditadores africanos, basta traçar um paralelo entre a cobertura dada pela mídia internacional a Paul Biya, dos Camarões, e a Robert Mugabe, do Zimbábue:

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Notaram, nas reproduções acima (original aqui e aqui), que a Folha chama Biya — que está no cargo desde 1982 e que foi reeleito sob suspeita de fraude — de “presidente”, enquanto Mugabe é “ditador”? Qual é o critério?

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Pura macaquice da Barão de Limeira, que reproduz no Brasil a política externa dos britânicos: foram eles que “distinguiram” Mugabe com o título de ditador, mas só quando ele avançou sobre os interesses de fazendeiros, muitos deles descendentes de britânicos, na primeira e única reforma agrária feita na África que tomou propriedades de brancos, majoritamente racistas da ex-Rodésia.

[Para saber mais, clique aqui para ver um capítulo do programa Nova África sobre a disputa por terras no Zimbábue]

Folha e apartheid, tudo a ver?

Já que falamos nisso, não se pode esquecer aqui do impressionante apoio do Ocidente ao regime do apartheid na África do Sul, quando interessava.

Não foi por acaso que Raul Castro foi um dos escolhidos para discursar nos funerais de Nelson Mandela, subitamente elevado ao status de santo pela revista Veja e congêneres.

Cuba derrotou a África do Sul e a expulsou da Namíbia, o que ajudou a acelerar o fim do regime racista.

Importante lembrar, também, que a Editora Abril, que controla a Veja, é sócia do grupo Naspers, da África do Sul. O grupo Naspers (Nasionale Pers, de Partido Nacional) foi criado pelo mesmo homem que fundou o partido que deu sustentação ao apartheid, JBM Hertzog.

O jornal De Burguer (1914) e a revista  Die Huisgenoot (1916) foram essenciais para fazer a cabeça dos que mais tarde viriam a assumir o controle da África do Sul.

Por tudo isso, tem razão o comentarista do Viomundo que fala numa “elite africâner” do Brasil. Há, por assim dizer, relações financeiramente incestuosas entre os dois lados do Atlântico.

Mas meu ponto aqui é dizer que razões de Estado movem as relações internacionais, muito mais que as preferências deste ou daquele governante.

Isso deveria ser óbvio.

Porém, quando o ex-presidente Lula visitou a Líbia, em 2009, para participar da cúpula da União Africana, foi execrado por colunistas da mídia brasileira.

Augusto Nunes, da Veja+Naspers, relembrou, depois do assassinato de Kadafi, mas sem incluir em sua galeria as fotos reproduzidas acima:

Lula estava lá para reafirmar a solidariedade do governo brasileiro a estadistas incompreendidos. Elogiou abjeções mundialmente desprezadas, louvou celebrou a generosidade de assassinos, louvou o fervor democrático de liberticidas, festejou o patriotismo de corruptos de carteirinha e reiterou a admiração pela biografia infame do ditador da Líbia.

Mais de sete anos depois de Tripoli, menos de dois depois de Sirte, o companheiro, amigo, irmão e liderado de Kadafi resolveu proclamar inexistentes o acasalamento promíscuo e as cenas de cumplicidade explícita. É tarde. E é impossível. Espertalhões bem mais sagazes que Lula também tentaram substituir fatos amplamente documentados por mentiras convenientes. Nenhum dos farsantes foi muito longe. Todos acabaram vencidos pela verdade. Todos jazem na vala comum reservada aos falsificadores da História.

Ao discursar no evento, Lula disse aos presentes, segundo o Estadão: “As instituições e pessoas que sempre foram pródigas em nos dar conselhos hoje estão contabilizando a falência de suas políticas”.

O ex-presidente estava se referindo, obviamente, ao impacto da crise financeira internacional, detonada em 2008. Indiretamente, ao fato de que as agências de classificação de risco, até a véspera da crise, davam nota máxima a instituições que acabaram no ou perto do buraco. Ao fato de que as políticas do Fundo Monetário Internacional, de caráter neoliberal, tinha roubado dos Estados a capacidade de reagir, ao promover a privataria desenfreada e o enfraquecimento do aparato estatal (por sorte, o Brasil preservou o BNDES, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e a Petrobras).

Lula, certamente, encontrou uma plateia ávida por ouví-lo: a África foi um dos “laboratórios” do Banco Mundial e do FMI.

Não é por acaso o sucesso da diplomacia chinesa em território africano: a China oferece às elites locais financiamento de obras de infraestrutura sem as condicionalidades do FMI.

Não é por acaso o sucesso da diplomacia de Kadafi entre os vizinhos: ele direcionava parte dos lucros do petróleo para aumentar a influência da Líbia na região e vislumbrava os Estados Unidos da África. Para além dos sonhos de grandeza do próprio, Kadafi impulsionava uma política externa que era inerentemente contrária aos interesses do Ocidente.

Era “a África para os africanos” justamente no momento em que os Estados Unidos colocavam em funcionamento o Africom, seu comando militar para o continente.

Era o “África para os africanos” justamente quando o Golfo da Guiné começava a rivalizar com o Golfo Pérsico como fonte mundial de petróleo.

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Era o “África para os africanos” justamente quando a França sonhava novamente projetar seu poder para muito além das margens do Mediterrâneo, na África francófona que inclui os valiosíssimos minerais do Congo (para saber mais, veja este episódio do Nova África que trata da disputa pelo coltan, o mineral que está nos componentes do seu celular e de outros eletroeletrônicos).

Neste contexto, não é de estranhar que a França tenha tomado a iniciativa de bombadear Kadafi antes mesmo que os Estados Unidos, em 2011.

Aliás, em retrospectiva, pode se dizer que a guerra de propaganda movida contra Kadafi foi tão ou mais bem sucedida do que aquela que falava em “armas de destruição em massa” no Iraque. Nunca foram obtidas provas de que o ditador líbio autorizou estupro em massa como tática de guerra, de que tenha empregado milhares de mercenários vindos de fora ou de que tenha usado caças ou helicópteros de ataque contra a população local. No entanto, foi a propagação destes boatos como “verdades” que culminaram com a intenvenção da OTAN.

O fato é que África ainda tem muitos recursos minerais a oferecer ao Ocidente e enfraquecer a soberania local é pressuposto para competir com a enorme influência chinesa.

[Para saber mais sobre a presença da China, assista ao segundo bloco deste episódio do Nova África]

Kadafi não caiu por ser um ditador cruel, nem por se servir de escravas sexuais: ele foi derrubado por uma rebelião interna que não teria sido bem sucedida não tivesse contado com apoio financeiro, material e diplomático do Ocidente, cujo objetivo era o de sempre, dividir para conquistar.

“Estados Unidos, França e Reino Unido relutantemente intervieram para derrubar Kadafi, de forma a prevenir que ele massacrasse outros líbios”, se defende envergonhadamente a revista britânica Economist, em edição recente, ao constatar que a Líbia de hoje — não a de Kadafi — faliu.

“A Líbia tem dois governos, dois parlamentos, dois grupos que se dizem no controle do banco central e da companhia nacional de petróleo, não tem polícia ou exército em funcionamento, tem um sem número de milícias que aterrorizam os 6 milhões de habitantes, saqueiam o que restou da riqueza nacional, arruinam o que sobrou da infraestrutura, torturam e matam quando quer que estejam no controle”, resume a revista em editorial.

Comparem isso com os índices sociais do país sob o ditador Kadafi.

Que a mídia brasileira seja perdoada pelas besteiras que publicou sobre a Líbia: além de provinciana, ignorante, preconceituosa e pouco viajada, ela muitas vezes fica lost in translation, mera reprodutora de noticiário gerado por terceiros, como escrevi em Obrigado, Cecilia Malan, que brevemente mostrou ao público a verdade.

Afinal, os mesmos editores que tiraram sarro da cerimônia de posse de Evo Morales provavelmente nunca ouviram falar em Tiwanaku.

Mas a Economist, esta deve a seus leitores um pedido formal de desculpas por ter embarcado na aventura líbia, vendendo a ilusão de que qualquer governo com o selo de “aprovado” pelo Ocidente seria melhor que o de Kadafi.

Recuperando o que disse Lula em seu discurso à União Africana, em 2009, dia em que abraçou Kadafi: “As instituições e pessoas que sempre foram pródigas em nos dar conselhos hoje estão contabilizando a falência de suas políticas”.

Premonitório…

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