Ion de Andrade: ‘Seleção de tutores e supervisores expõe o Mais Médicos a grave risco de naufrágio’

Tempo de leitura: 6 min
Fotos: Ministério da Saúde

Por Ion de Andrade*, especial para o Viomundo

Desde agosto, o Programa Mais Médicos está normatizando o provimento de supervisores e tutores.

Só que isso vem ocorrendo com viés corporativista que não atende aos interesses do Sistema Único de Saúde (SUS).

As normas para essa seleção, estabelecidas nas resoluções 379 e 385, extirpam a Saúde Coletiva das Tutorias e Supervisões.

Elas atribuem ao médico especialista recém-saído da Residência em Medicina de Família ou com título de especialista nada menos que 50% da pontuação prevista na seleção.

Na prática, inviabilizam a aprovação no processo seletivo de médicas e médicos supervisores e tutores originários da Saúde Coletiva, muitos dos quais com dez anos de experiência no Mais Médicos, na gestão do SUS ou com titulação acadêmica mais alta, critérios inacreditavelmente desvalorizados na pontuação.

Foi proposital? Jogada de bastidores?

Ora, nas resoluções resoluções 379 e 385 tais critérios corporativistas emergem “imotivados”, o que é impróprio ao ato público.

Ou seja, não são precedidos de qualquer explicação ou justificativa para estarem ali, sinalizando razões de natureza política que são incompatíveis com a publicidade exigível aos atos públicos  e se exprimem mal à luz do dia.

O que se opera é a entrega de alavancas cruciais para o Mais Médicos, manipulando-se um corporativismo.

Além de injusto e inaceitável do ponto de vista dos critérios de seleção, tal corporativismo aponta para interesses que até podem ser o da corporação mas certamente não são os do SUS.

Tal fato, num programa capilarizado do Oiapoque ao Chuí como o Mais Médicos, implica gravíssimos riscos para o Sistema Único de Saúde.

A primeira resolução para provimento de supervisores e tutores do Mais Médicos é de nº 379, de 2 de agosto de 2023. A íntegra pode ser lida aqui.

 A resolução 379 diz:

E estabelece:

Em 17 de agosto de 2023, foi publicada a resolução nº 385, que ”retifica a resolução nº 379, de 2 de agosto de 2023”. Aqui, a íntegra

A leitura da ementa leva a crer que a versão revista corrige o malefício contido na primeira resolução.

Mas isso não é verdade, como comprovam os artigos 1º e 2º da resolução nº 385:

Em síntese, a correção em nada alterou a lógica do provimento.

As duas resoluções extirpam a Saúde Coletiva das Supervisões e Tutorias do Mais Médicos.

Os títulos da especialidade são considerados como “exigíveis” na primeira e “desejáveis” na segunda.

Na seleção, a resolução “corretiva” pontua com 50% do total de pontos possíveis o especialista em lugar dos 60% previstos na primeira resolução…

Isso torna o egresso da residência em Medicina de Família ou do possuidor do Título de Especialista um candidato assimetricamente imbatível, por melhor que sejam os demais concorrentes.

Tudo isso ocorre clara e ostensivamente em detrimento dos profissionais egressos da Saúde Coletiva.

Saliente-se que, enquanto médicas e médicos atualmente no Programa poderão continuar ativos, os supervisores e tutores serão em sua totalidade substituídos no Novo Mais Médicos.

Ou seja, há uma lógica de dois pesos e duas medidas, o que aumenta a suspeição de que as resoluções estejam enviesadas por uma lógica de Poder. 

E isso é incompatível com o decoro, a tecnicidade e a seriedade com que o Programa vem sendo levado adiante pelo atual corpo de supervisores e tutores que foi, aliás, um dos suportes do Mais Médicos debaixo do bolsonarismo.

As Instituições de Ensino Superior (IES) responsáveis pela seleção deverão pontuar os critérios de forma decrescente conforme aparecem na lista de títulos previstos para fins de seleção na resolução, ferindo, inclusive, a autonomia das universidades para defini-los.

O doutorado e o mestrado em Saúde Coletiva, por exemplo, aparecem como oitavo e nonos lugares, o que significa que terão pontuação incompatível com o que significam efetivamente como experiência profissional a serviço do SUS.

O artigo terceiro da resolução nº 385 diz:

  

Além disso, há uma mobilização nacional para que os recém-egressos das residências pleiteiem Tutorias e Supervisões.

Isso significa que a corporação pretende que ocupem todas as vagas disponíveis, fato que emerge suspeitamente imotivado, mostrando que o verdadeiro viés é o da extirpação da influência da Saúde Coletiva.

Isso se acentua pelo fato de que TODOS os supervisores e tutores do programa deverão ser substituídos numa lógica oposta à que será praticada para as médicas e médicos que corretamente permanecem no Programa.

Por quê? Não se sabe, é imotivado.

Noutras palavras, em lugar de haver seleção apenas para as vagas novas a serem preenchidas para a tutoria e supervisão, todos os tutores e supervisores atuais serão desligados e haverá uma seleção enviesada para a totalidade das vagas, privilegiando de forma injusta e descabida os especialistas em detrimento até mesmo dos que já estavam.

Ora, embora essa movimentação tenha aparentemente índole corporativista, não podemos excluir — dado o perfil da Saúde Coletiva enquanto defensora intransigente do SUS e da democracia — que tenha de forma velada um conteúdo político, urdido por um pequeno grupo nas sombras, cujo viés, manipulando um corporativismo desavisado, seja justamente o de alijar a cultura sanitarista do programa.

Vale relembrar mais uma vez que sob o bolsonarismo foi a Saúde Coletiva que, em grande medida resistiu e assegurou a sobrevivência do Mais Médicos, garantindo a implementação das políticas de saúde, assim como colaborando com as universidades para assegurar a continuidade das especializações das Médicas e Médicos de Família no contexto do programa.

Tais especializações formaram milhares de profissionais, demonstrando que a área da Saúde Coletiva não tem qualquer preconceito em relação à Medicina de Família, muito ao contrário.

Ou seja, o mais provável é que esteja em curso uma jogada política de um pequeno grupo politicamente motivado que manipula o corporativismo para, extirpando a cultura do SUS trazida pela Saúde Coletiva, se assenhorar da supremacia política completa num programa estratégico para a Saúde Pública como é o Mais Médicos.

Ora, dado o perfil e o engajamento histórico da Saúde Coletiva em favor do SUS e da Democracia, sobretudo no momento polarizado em que vivemos, são escassas as chances de que tudo isso esteja acontecendo por acaso e sem conotação política.

Sublinhe-se também que o Programa Mais Médicos não é uma residência em Medicina de Família, que pudesse com legitimidade preferir especialistas como preceptores.

Trata-se de um programa de Saúde Pública e os supervisores e tutores não são preceptores de Residência. Ao contrário, juntamente com os municípios, desempenham papel de gestão do programa em múltiplas áreas.

A portaria nº 604 (na íntegra, aqui) do Ministério da Saúde/Ministério da Educação, de maio de 2023, define as atribuições de cada atividade prevista no funcionamento do programa:

Portanto, a Portaria 604, que define as atribuições dos supervisores e tutores, nada tem a ver com a definição de atribuições para uma preceptoria de residência em Medicina de Família.

A Portaria 604 também não dialoga, para dizer o mínimo, com as resoluções resoluções 379 e 385, que definem os critérios de seleção, com foco em excluir toda a área da Saúde Coletiva do programa.

Capilarizado como é o Mais Médicos, o seu Poder de influência no país como um todo é imenso numa área de vulnerabilidade e interesse para a consolidação da democracia. O viés corporativista, portanto, é uma derrota para o Brasil.

Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Conselho Nacional de Saúde (CNS), Conselho Nacional de Secretarias Estaduais de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) precisam se posicionar sobre esse problema que, nesta conjuntura política, é possivelmente o mais grave desafio para o SUS hoje e talvez para o Brasil amanhã.

A nova Resolução de Seleção pela qual essas entidades devem reivindicar deve propor um ambiente isento no qual possa ocorrer um processo seletivo simétrico e justo entre as áreas que legitimamente têm o Mais Médicos como objeto de trabalho e um imenso campo para colaborar.

Importante: em 27 de setembro, a Universidade Federal do Mato Grosso publicou edital de seleção para supervisores e tutores do Mais Médicos (clique aqui para ler ). A ele seguirão novos editais das demais universidades conveniadas ao Mais Médicos.

O tempo urge. A engrenagem da seleção de tutores e supervisores já começou a rodar, expondo o Mais Médicos a grave risco de naufrágio.

Ion de Andrade é médico, pediatra e epidemiologista, professor e pesquisador aposentado da Escola de Saúde Pública do RN

*Este artigo representa a opinião do autor e não necessariamente a do Viomundo

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Comentários

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Leo Júnior

A guerra do corporativismo, toda busca por melhora é bem-vinda, Tutores e supervisores do programa precisam sim ter especialização em Medicina da Família pelo simples fato de que o médico do programa vai atender necessariamente as famílias da comunidade. Já basta o Conselho Federal, alvo de denúncia, estar envolvido em “ocupação” de vagas do programa sem que o médico se apresente, deixando o município sem atendimento.

Angelmar

Pra supervisão clínica, obviamente a Saúde Coletiva nada tem a ver, em competências. O sanitarista não atende pessoas, não tem habilidade clínica.

Pra tutoria, sim, poderias ser um sanitarista.

O artigo é bem inviesado.

Zé Maria

Excertos

[As resoluções 379 e 385 SAPS/MS] “atribuem ao médico especialista
recém-saído da Residência em Medicina de Família ou com título de
especialista nada menos que 50% da pontuação prevista na seleção.

Na prática, inviabilizam a aprovação no processo seletivo de médicas
e médicos supervisores e tutores originários da Saúde Coletiva,
muitos dos quais com dez anos de experiência no Mais Médicos,
na gestão do SUS ou com titulação acadêmica mais alta, critérios
inacreditavelmente desvalorizados na pontuação.”
[…]
“As duas resoluções extirpam a Saúde Coletiva das Supervisões e
Tutorias do Mais Médicos.”
[…]
“Tudo isso ocorre clara e ostensivamente em detrimento dos profissionais
egressos da Saúde Coletiva.

Saliente-se que, enquanto médicas e médicos atualmente no Programa
poderão continuar ativos, os supervisores e tutores serão em sua totalidade
substituídos no Novo Mais Médicos.
[…]
“Ou seja, o mais provável é que esteja em curso uma jogada política
de um pequeno grupo politicamente motivado que manipula
o corporativismo para, extirpando a cultura do SUS trazida pela
Saúde Coletiva, se assenhorar da supremacia política completa
num programa estratégico para a Saúde Pública como é o Mais Médicos.

Ora, dado o perfil e o engajamento histórico da Saúde Coletiva em favor
do SUS e da Democracia, sobretudo no momento polarizado em que
vivemos, são escassas as chances de que tudo isso esteja acontecendo
por acaso e sem conotação política.”

.

Zé Maria

Excertos

[As resoluções 379 e 385 SAPS/MS] “atribuem ao médico especialista
recém-saído da Residência em Medicina de Família ou com título de
especialista nada menos que 50% da pontuação prevista na seleção.

Na prática, inviabilizam a aprovação no processo seletivo de médicas
e médicos supervisores e tutores originários da Saúde Coletiva,
muitos dos quais com dez anos de experiência no Mais Médicos,
na gestão do SUS ou com titulação acadêmica mais alta, critérios
inacreditavelmente desvalorizados na pontuação.”
[…]
“As duas resoluções extirpam a Saúde Coletiva das Supervisões e
Tutorias do Mais Médicos.”
[…]
“Tudo isso ocorre clara e ostensivamente em detrimento dos profissionais
egressos da Saúde Coletiva.

Saliente-se que, enquanto médicas e médicos atualmente no Programa
poderão continuar ativos, os supervisores e tutores serão em sua totalidade
substituídos no Novo Mais Médicos.
[…]
“Ou seja, o mais provável é que esteja em curso uma jogada política
de um pequeno grupo politicamente motivado que manipula
o corporativismo para, extirpando a cultura do SUS trazida pela
Saúde Coletiva, se assenhorar da supremacia política completa
num programa estratégico para a Saúde Pública como é o Mais Médicos.

Ora, dado o perfil e o engajamento histórico da Saúde Coletiva em favor
do SUS e da Democracia, sobretudo no momento polarizado em que
vivemos, são escassas as chances de que tudo isso esteja acontecendo
por acaso e sem conotação política.”

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