
General Ríos Montt é acusado de vários crimes, entre os quais genocídio. Foto: Anistia Internacional
La hija del hombre
por Dr. Rosinha, especial para o Viomundo
Não tenho fresco na memória o mês e o ano, mas creio que foi março de 2004. Tenho fresco o local: Ciudad de Puebla, no México. Como também tenho fresco o fato, pois é impossível esquecê-lo.
Em Puebla ocorreu um encontro entre parlamentares europeus e latino-americanos. No dia da abertura houve um coquetel e nele um senador da Argentina me apresentou uma deputada guatemalteca. Imediatamente, após a formalidade da apresentação, me apressei a demonstrar que conhecia um pouco da história política da Guatemala e sem mais nem menos emendei: “Ah!, você é da Guatemala do sanguinário, torturador e assassino general Ríos Montt”.
Assim que terminei a frase o senador argentino se pôs nervoso e a deputada da Guatemala me respondeu: “Isto quem diz é a imprensa”. De imediato, respondi: “Sim, a imprensa e a Prêmio Nobel da Paz Rigoberta Menchu”. Rigoberta havia ganhado o Nobel da Paz entre outras coisas por denunciar Ríos Montt.
Neste momento o senador estava mais nervoso que a deputada, e me chamou de lado: “Es la hija del hombre [é a filha do homem]”, disse. Bem, tudo que tinha que ser dito já estava dito e não há como engolir frases ditas. Poderia ocasionar um problema diplomático, mas a essas alturas nada mais restava a não ser confirmar o que tinha dito: “Esta é a verdade que sei”, disse-lhe, e encerramos o diálogo.
Conto esta história porque desde o dia 29 de janeiro deste ano, Efraín Ríos Montt está sentado no banco dos réus, acusado de inúmeros crimes, entre os quais genocídio. Sentou-se dia 29, mas foram longos anos de luta, cobrança e clamor por justiça, envolvendo centenas de militantes e defensores dos direitos humanos da Guatemala e do mundo.
A Justiça da Guatemala, neste dia, deu um passo importante e histórico contra a impunidade de quatro décadas. Dois dias depois, em 31 de janeiro, o juiz guatemalteco Miguel Ángel Gálvez confirmou a abertura da coleta de provas contra o ex-ditador.
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Além da acusação contra Ríos Montt, a Justiça da Guatemala acusa também o seu chefe de inteligência militar dos anos 80, o ex-general Mauricio Rodríguez Sánchez. Ambos pelo assassinato de 1.770 indígenas Maya Ixile no Departamento do Quiché, região norte do país. A Guatemala viveu uma Guerra de Guerrilha de 1960 a 1996, cujo resultado foram mais de 200 mil vítimas entre mortos e desaparecidos.
Ríos Montt, general e político, durante a sua ditadura era um católico apostólico romano, vindo posteriormente a converter-se em pastor da conservadora igreja Verbo Divino. Talvez pensasse que a mudança de religião lhe permitiria o perdão e assim salvaria sua alma, se é que a tem, tão desalmado foi com seu povo.
Em seu “governo cristão”, Ríos Montt e seu braço direito, Mauricio Rodríguez Sánchez, praticaram a política de terra arrasada, com massacres de campesinos de origem indígena, prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos, ou seja, um verdadeiro genocídio. Até hoje familiares buscam pelos seus mortos e desaparecidos.
Em todas as sociedades que passaram por ditaduras não há reconciliação sem justiça. No caso da Guatemala, como em muitos outros países, a justiça só existirá se ocorrer mobilização internacional. A democracia guatemalteca é frágil e Ríos Montt, seus seguidores e sua família, inclusive “la hija del ombre”, mantém ainda poder político.
O que será que “la hija” comentou entre os seus sobre o nosso diálogo naquela ocasião em Puebla? Será que, como eu, neste momento em que seu pai está no banco dos réus, lembra e comenta isso?
Dr. Rosinha, médico pediatra, é deputado federal (PT-PR). No twitter: @DrRosinha
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