Urariano Mota: As empregadas e a escravidão

Tempo de leitura: 3 min

por Urariano Mota, em Direto da Redação

Por caminhos tortos, Joaquim Nabuco teve uma das suas iluminações quando escreveu:  “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Sim, por caminhos tortos, porque depois de uma frase tão magnífica, de gênio do futuro, Joaquim Nabuco sem pausa continuou, num encanto que esconde a crueldade:

“Ela (a escravidão) espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor…”.

 Penso na primeira frase de Nabuco, a da escravidão como característica do Brasil, nestes dias em que o Congresso dá um primeiro passo para a superação da herança maldita. Não quero falar aqui sobre as conquistas legais para as empregadas domésticas,  da nova lei sobre a qual os jornais tanto têm falado como num aviso: “patroas, cuidado, domésticas agora têm  direitos”. Falo e penso nas empregadas que vi e tenho visto no Recife e em São Paulo. No aeroporto de Guarulhos eu vi Danielle Winits, a famosa atriz da Globo, muito envolvida com o seu notebook, concentradíssima, enquanto o filhinho de cabelos louros berrava. Para quê? A sua empregada, vestida em odioso e engomado uniforme, aquele que anuncia “sou de outra classe”, cuidava para que a perdida beleza da atriz não fosse importunada. Tão natural… os fãs de telenovelas não viam nada de mais na mucama no aeroporto, pois faziam gracinhas para o bobinho lindinho.

Em outra ocasião, numa terça-feira de carnaval à noite, vi no Recife uma jovem à minha frente, empenhada em ver a passagem de um maracatu. Tão africano, não é? Junto a ela uma senhora – desta vez sem uniforme, mas carregando no rosto e modos a servidão – abrigava nos braços um bebê. Os tambores, as fantasias, eram de matar qualquer atenção dirigida à criança, que afinal estava bem cuidada, sob uma corda invisível que amarrava a empregada. Então eu, no limite da raiva, ofereci o meu lugar à sua escrava sobrevivente, com a frase: “a senhora, por favor, venha com o seu filho aqui para a frente”. A empregada quis se explicar, coitada, morta de vergonha, enquanto a doce mamãe não entendia o chamamento irônico, pois me olhava como se eu fosse um marciano. Espantada, parecia me dizer: “como o meu filho pode ser dessa aí?”.

O desconhecimento de direitos elementares às empregadas domésticas, como privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos patrões, creio que sobreviverá até mesmo à nova lei. É histórico no Brasil, atravessa gerações e atinge até mesmo os mais jovens e pessoas que se declaram à esquerda. É como se estivesse no sangue, como se fosse genético, de um caráter irreprimível. Até antes delas vão a democracia e a igualdade. A partir delas é outra história. Quantas vezes vemos nos restaurantes jovens casais com suas lindas crias, tendo ao lado as escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida? Isso nos domingos e feriados, pois esses são os dias das patroazinhas se divertirem. É justo, não é? O feminismo se faz para que mulheres sejam cidadãs, mas a cidadania só alcança os iguais, é claro.

Em todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as domésticas são pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas por deveres, notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços afetivos. A ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que, afinal, é mais limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro. Não estranhem, porque não exagero. Não faz muito  tempo no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento? Olhem os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os olhos para os minúsculos quartinhos de empregadas, entrem nos seus banheiros, que Millôr dizia serem a prova de que no Brasil empregadas não têm sexo no WC.

Não posso concluir sem observar que os pobres copiam os ricos, e que o tratamento dado às domésticas se estende em  democracia para todas as classes sociais. Menos para as empregadas, é claro. “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, dizia Nabuco.

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Caracol

Citando Mark Twain:
“Leis são como areia, hábitos são como rocha.”

Isidoro Guedes

Urariano Mota toca numa questão básica: o fato de não termos superado ainda os fantasmas da escravidão, que estão presentes em nosso inconsciente coletivo e cultural. Superar isso é essencial para que se possa construir uma sociedade de solidariedade e justiça social no Brasil.

FrancoAtirador

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‘Eles’ ‘dão tudo’

para as empregadas…

Só não pagam o salário…
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Lu Busis

Sempre considerei o trabalho doméstico como outro qualquer, daí a entranheza em vê-lo considerado como resquícios da escravidão. Tenho empregada doméstica, sempre tive, mas nunca a coloquei em posição de inferioridade. É lógico que a patroa sou eu, e o seu trabalho deve estar do meu agrado. Mas, assim, também é no meu local de trabalho. Lá, eu cumpro, com rigor, o determinado pelos superiores na realização de minhas tarefas e não fico cheia de melindres quando me chamam a atenção por qualquer falha, como acontece com a minha subordinada doméstica, quando lhe mostro qq falha. Apesar de trabalhar comigo há 17 anos, fica de cara fechada por muitos dias. Além disso, para quem já cumpria a legislação anterior, a lei não vai fazer tanta diferença, assim: ela é registrada, recolho o INSS, goza férias anuais de 30 dias, recebe o 1/3 constitucional, décimo-terceiro salário, etc. Só faltava o FGTS. Em compensação, tinha a prerrogativa de faltar quando quisesse, entrar e sair de forma bastante elástica, não trabalhar aos sábados, domingos e feriados. Agora, a coisa vai ser mais séria, porque nós duas teremos que cumprir as regras e não somente, eu. Ela está preocupada com a nova lei, pois eu lhe disse, que terá que cumprir, exatamente, o que alí, consta, ou deixar o emprego. Não sei o que vai decidir, só sei que, desde ontem, quando eu ainda trabalhava, ela já havia dito que não viria, porque pretendia viajar…

    Malvina Cruela

    Vc, como eu, é mais uma vitima dessas malvadas, pérfidas que tem de de tudo, do bom e do melhor em nossas casas…onde nós as tratamos quase como gente, “da família” e elas em sua ingratidão quase genética, nos exploram, nos roubam e tudo fica por isso mesmo…ainda querem ser pagas por isso, por ganhar cama e comida. Não sei onde isso vai parar, um horror…

Urbano

Mais ignóbil do que a escravidão só o escravagista.

Gerson Carneiro

    Viviane

    Essa imagem zerou o tópico! O que falar antes ou depois disso?

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