Lassance: Acabar com homenagens à ‘revolução’ que estuprou e torturou

Tempo de leitura: 6 min

09/03/2014 – Copyleft

Sete lições sobre o golpe de 1964 e sua ditadura

por Antonio Lassance*, na Carta Maior

Há 50 anos, o Brasil foi capturado pela mais longa, mais cruel e mais tacanha ditadura de sua história.

Meio século é mais que suficiente tanto para aprendermos quanto para esquecermos muitas coisas.

É preciso escolher de que lado estamos diante dessas duas opções.

1ª. LIÇÃO: AQUELA FOI A PIOR DE TODAS AS DITADURAS

No período republicano, o Brasil teve duas ditaduras propriamente ditas. Além da de 1964, a de 1937, imposta por Getúlio Vargas e por ele apelidada de “Estado Novo”.

A ditadura de Vargas durou oito anos (1937 a 1945). A ditadura que começou em 1964 durou 21 anos.

Vargas e seu regime fizeram prender, torturar e desaparecer muita gente, mas não na escala do que ocorreu a partir de 1964.

Os torturadores do Estado Novo eram cruéis. Mas nada se compara em intensidade e em profissionalismo sádico ao que se vê nos relatos colhidos pelo projeto “Brasil, nunca mais” ou, mais recentemente, pela Comissão da Verdade.

Em qualquer aspecto, a ditadura de 1964 não tem paralelo.

2ª. lição: QUALIFICAR A DITADURA SÓ COMO “MILITAR” ESCAMOTEIA O PAPEL DOS CIVIS

Foram os militares que deram o golpe, que indicaram os presidentes, que comandaram o aparato repressivo e deram as ordens de caçar e exterminar grupos de esquerda.

Mas a ditadura não teria se instalado não fosse o apoio civil e também a ajuda externa do governo Kennedy.

O golpismo não tinha só tanques e fuzis. Tinha partidos direitosos; veículos de imprensa agressivos; empresários com ódio de sindicatos; fazendeiros armados contra Ligas Camponesas, religiosos anticomunistas. Todos tão ou mais golpistas que os militares.

Sem os civis, os militares não iriam longe. A ditadura foi tão civil quanto militar. Tinha seu partido da ordem; sua imprensa dócil e colaboradora; seus empresários prediletos; seus cardeais a perdoar pecados.

3ª. LIÇÃO: NÃO HOUVE REVOLUÇÃO, E SIM REAÇÃO, GOLPE E DITADURA

Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979) disse a seu jornalista preferido e confidente, Elio Gaspari, em 1981:

“O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução”.

Quase ninguém usa mais o eufemismo “revolução” para se referir à ditadura, à exceção de alguns remanescentes da velha guarda golpista, que provavelmente ainda dormem de botinas, e alguns desavisados, como o presidenciável Aécio Neves, que recentemente cometeu a gafe de chamar a ditadura de “revolução” (foi durante o 57º Congresso Estadual de Municípios de São Paulo, em abril de 2013).

Questionado depois por um jornal, deu uma aula sobre o uso criterioso de conceitos: “Ditadura, revolução, como quiserem”.

A ditadura foi uma reação ao governo do presidente João Goulart e à sua proposta de reformas de base: reforma agrária, política e fiscal.

4ª. LIÇÃO: A CORRUPÇÃO PROSPEROU MUITO NA DITADURA

Ditaduras são regimes corruptos por excelência. Corrupção acobertada pelo autoritarismo, pela ausência de mecanismos de controle, pela regra de que as autoridades podem tudo.

A ditadura foi pródiga em escândalos de corrupção, como o da Capemi, justo a Caixa de Pecúlio dos Militares. As grandes obras, ditas faraônicas, eram o paraíso do superfaturamento.

Também ficaram célebres o caso Lutfalla (envolvendo o ex-governador Paulo Maluf, aliás, ele próprio uma criação da ditadura) e o escândalo da Mandioca.

5ª. LIÇÃO: A DITADURA ACABOU, MAS AINDA TEM MUITO ENTULHO AUTORITÁRIO POR AÍ

O Brasil ainda tem uma polícia militar que segue regulamentos criados pela ditadura.

A Polícia Civil de S. Paulo, em outubro de 2013, enquadrou na Lei de Segurança Nacional (LSN) duas pessoas presas durante protestos.

A tortura ainda é uma realidade presente, basta lembrar o caso Amarildo.

Os corredores do Congresso ainda mostram um desfile de filhotes da ditadura – deputados e senadores que foram da velha Arena (Aliança Renovadora Nacional, que apoiava o regime).

6ª. LIÇÃO: BANALIZAR A DITADURA É ACENDER UMA VELA EM SUA HOMENAGEM

Há duas formas de se banalizar a ditadura. Uma é achar que ela não foi lá tão dura assim. A outra é chamar de ditadura a tudo o que se vê de errado pela frente.

O primeiro caso tem seu pior exemplo no uso do termo “ditabranda” no editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009.

Para a Folha de S. Paulo, a última ditadura brasileira foi uma branda (“ditabranda”), se comparada à da Argentina e à chilena.

A ditadura brasileira de fato foi diferente da chilena e da argentina, mas nunca foi “branda”, como defende o jornal acusado de ter emprestado carros à Operação Bandeirantes, que caçava militantes de grupos de esquerda para serem presos e torturados.

Como disse a cientista política Maria Victoria Benevides, que infâmia é essa de chamar de brando um regime que prendeu, torturou, estuprou e assassinou?

A outra maneira de se banalizar a ditadura e de lhe render homenagens é não reconhecer as diferenças entre aquele regime e a atual democracia. Para alguns, qualquer coisa agora parece ditadura.

A proposta de lei antiterrorismo foi considerada uma recaída ditatorial do regime dos “comissários petistas” e mais dura que a LSN de 1969. Só que, para ser mais dura que a LSN de 1969, a proposta que tramita no Congresso deveria prever a prisão perpétua e a pena de morte.

O diplomata brasileiro que contrabandeou o senador boliviano Roger Pinto Molina para o Brasil comparou as condições da embaixada do Brasil na Bolívia à do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), a casa de tortura da ditadura.

Para se parecer com o DOI-CODI, a Embaixada brasileira em La Paz deveria estar aparelhada com pau de arara, latões para afogamento, cadeira do dragão (tipo de cadeira elétrica), palmatória etc.

Banalizar a ditadura é como acender uma vela de aniversário em sua homenagem.

7ª. LIÇÃO: JÁ PASSOU DA HORA DE PARAR COM AS HOMENAGENS OFICIAIS DE COMEMORAÇÃO DO GOLPE

Por muitos e muitos anos, os comandantes militares fizeram discursos no dia 31 de março em comemoração (isso mesmo) à “Revolução” de 1964.

A provocação oficial, em plena democracia, levou um cala-a-boca em 2011, primeiro ano da presidência Dilma. Neste mesmo ano também foi instituída a Comissão da Verdade.

A referência ao 31 de março foi inventada para evitar que a data de comemoração do golpe fosse o 1º. de abril – Dia da Mentira.

A justificativa é que, no dia 31, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Minas Gerais, começou a movimentar suas tropas em direção ao Rio de Janeiro.

Se é assim, a Independência do Brasil doravante deve ser comemorada no dia 14 de agosto, que foi a data em que o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se deslocar do Rio de Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.

A palavra golpe tem esse nome por indicar a deposição de um governante do poder. No dia 1º. de abril, João Goulart, que estava no Rio de Janeiro, chegou a retornar para Brasília. Em seguida, foi para o Rio Grande do Sul e, depois, exilou-se no Uruguai mas só em 4/4/1964. Que presidente é deposto e viaja para a capital um dia depois do golpe?

O Almanaque da Folha é um dos tantos que insistem na desinformação:

“31.mar.64 — O presidente da República, João Goulart, é deposto pelo golpe militar”. Entende-se. Afinal, trata-se do pessoal da ditabranda.

O que continua incompreensível é o livro “Os presidentes e a República”, editado pelo Arquivo Nacional, sob a chancela do Ministério da Justiça, trazer ainda a seguinte frase:

“Em 31 de março de 1964, o comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora, Minas Gerais, iniciou a movimentação de tropas em direção ao Rio de Janeiro. A despeito de algumas tentativas de resistência, o presidente Goulart reconheceu a impossibilidade de oposição ao movimento militar que o destituiu”.

De novo, o conto da Carochinha do 31 de março.

Ainda mais incompreensível é o livro colocar as juntas militares de 1930 e de 1969 na lista dos presidentes da República.

A lista (errada) é reproduzida na própria página da Presidência da República como informação sobre os presidentes do Brasil.

Nem os membros das juntas esperavam tanto. A junta governativa de 1930 assinava seus atos riscando a expressão “Presidente da República”.

No caso da junta de 1969, o livro do Arquivo Nacional diz (p. 145) que o Ato Institucional nº. 12 (AI-12) “dava posse à junta militar” composta pelos ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ledo engano.

O AI-12, textualmente: “Confere aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar as funções exercidas pelo Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva, enquanto durar sua enfermidade”. Oficialmente, o presidente continuava sendo Costa e Silva.

Há outro problema. Uma lei da física, o famoso princípio da impenetrabilidade da matéria, diz que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo – que dirá três corpos.

Não há como três chefes militares ocuparem o mesmo cargo de presidente da República. Que república no mundo tem três presidentes ao mesmo tempo?

O que os membros da Junta de 1969 fizeram foi exercer as funções do presidente, ou seja, tomar o controle do governo. O AI-14/1969 declarou o cargo oficialmente vago, quando a enfermidade de Costa e Silva mostrou-se irreversível.

Os três comandantes militares jamais imaginaram que um dia seriam listados em um capítulo à parte no panteão dos presidentes. A Junta ficaria certamente satisfeita com a homenagem honrosa e, definitivamente, imerecida.

Que história, afinal, estamos contando?

Uma história que ainda não faz sentido.

Uma história cujas lições ainda nos resta aprender.

(*) Antonio Lassance é cientista político

De volta ao DOI-CODI from Luiz Carlos Azenha on Vimeo.

Leia também:

O ato unificado contra o golpe diante do prédio do DOI-CODI


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Comentários

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Objete

O texto é bom e esclarecedor. Temos que compilar mais informes ainda guardados a sete chaves. Os cruéis carrascos devem ser gradualmente, denunciados e julgados, se possível, com prisão como vem fazendo nossos irmãos argentinos.

Nelson

Excelente texto do Lassance. É de esperarmos que aqueles que andam “mais por fora que aro de barril” em relação a nossa história, tendendo a acreditar em afirmações absurdas de que não houve ditadura, de que o comunismo estava prestes a tomar conta do Brasil “bebam” as informações deste artigo.

“Foram os militares que deram o golpe, que indicaram os presidentes, que comandaram o aparato repressivo e deram as ordens de caçar e exterminar grupos de esquerda.” A esta frase, eu agregaria outra. E foram os grandes capitalistas, nacionais e estrangeiros, os que “meteram a mão” nos gordos lucros possibilitados pela ditadura e que cresceram às custas da repressão dos trabalhadores e de suas organizações.

Daniel

Que a ditadura é uma página vergonhosa em nossa história, isso não posso negar, mas, gostaria de saber, sem nenhuma ironia ou brincadeira, o que vocês, ávidos leitores do site, pensam das atitudes de Che Guevara, Fidel Castro e cia em Cuba no ano de 1959? Foi uma revolução que libertou o povo cubano das mãos de Fulgêncio Batista, ou foi um golpe que tirou um ditador e colocou outro no lugar, no caso o Fidel, que governou Cuba por mais de três décadas?

    Aliança Nacional Libertadora

    Daniel,

    Sei que não foi o exército apoiado pelas oligarquias, empresários e pelos EUA. Naquela época não havia meio termo para a oposição.

    Vide Venezuela…

Luís Carlos

A ditadura civil-militar brasileira foi grotesca e absolutamente corrupta, com apoio da grande mídia.
Sentimos o cheiro de golpistas surfando na onda das manifestações de 2013/14 sem liderança e pauta que saiam às ruas até assassinato de Santiago. E tem gente comemorando o golpe nazista na Ucrânia (Luciana Genro do PSOL/RS).

Mauro Assis

A única ressalva ao texto é que a esquerda da época do golpe também não estava “a pesseio”, assim como aqueles que pegaram em armas contra a ditadura não estavam defendendo a democracia. Queriam nos levar a uma ditadura de esquerda a là Cuba, esta muito mais sanguinária.

    Julio Silveira

    Engano seu. O golpe militar saiu por que um governo democrático resolveu que deveria fazer reformas que iam ao encontro dos interesses populares. E isso não é permitido no Brasil país altamente dominado por oligarquias substitutas dos condados e dos ducados. Aqui a luta é gigante para se manter uma estrutura que vem do tempo do império. A corte de direito perdeu o poder, mas ficou a corte de fato, os substitutos nos postos do império, manobrando a continuidade de uma cidadania contida e mantida em seu lugar de plebe. Esse negocio de dizer que os comunistas queriam fazer do Brasil uma ditadura do proletariado é a maior invenção contada pela direita para justificar o golpe. Primeiro por que sabem eles que o comunismo de fato, no Brasil nunca teve uma aceitação completa pela maior parte da cidadania, sempre esteve representada por grupos pequenos de militantes. Diferente da Russia cujo partido dominou as mentes do proletariado. O Brasil também nunca praticou capitalismo, aqui o capital se esconde atrás do estado para usufruir e fazer crescer fortunas imorais e florescer oportunidades pros do circulo. O que houve aqui foi um golpe militar feito por ditadores para preservar a distinção evidente entre as classes. Os ditadores foram apenas os guardiões e braços armados das oligarquias dominantes e presentes no Brasil nunca em nenhum momento pensaram o Brasil, defendiam seus interesses. Nada justifica um golpe militar. O povo só cresce quando reconhece, ele povo, seus erros e muda.
    Quando se subtrai esse direito se retira a chance do amadurecimento e se propicia a continuidade do erro.

    VALDIR DOS SANTOS

    Homem, você você na raiz do problema. Oligarquia não é apenas a oposição ao interesses populares. Oliguarquia, são aqueles que defendem seus direitos hereditários pelo meios mais desumanos ao seu alcance, sem escrúpulos.

    Vixe

    Esse papo carcomido de “foi para evitar uma ditadura comunista” já deu o que tinha que dar.
    Sugiro a você que leia outras fontes além da velha tríade de jornalões, canais de tv e revistas/detritos de maré baixa, que você costuma se informar…

    Luís Carlos

    Ao que parece, você é um daqueles que ainda dorme de botinas.

    abolicionista

    Que estupidez sem tamanho. E ainda tem gente que acredita. Por exemplo, o Brasil é o único país do mundo em que fazer reformas de base, como reforma agrária, é considerado algo comunista.

Alemao

“Se prendem 15 jovens e uma pessoa é golpeada ou maltrada, a tortura tem um sentido, se emprega para obter uma confissão, se inflige um sofrimento físico para obter uma confissão e temos que diferenciar isso de um tratamento excesivo ou uso desproporcionado da força”.

Marilia

Sou da opinião de que não se deveria referir a Ditadores como Presidentes. Presidente pressupõe um posto ocupado por alguém eleito e, nunca àquele que se adona, de forma ilegal e brutal de um cargo que não é seu por direito.

    Marat

    Perfeito. Sempre que falo destes, uso o termo “Ditador”. Houve aqui, na verdade, um rodízio de ditadores, apoiados por milicos lambe-botas dos EEUU, empresários, fanáticos religiosos e agentes do capitalismo internacional!

Lafaiete de Souza Spínola

Quem ordena a tortura é um psicopata!

Quem a executa não tem o mínimo remorso do execrável ato praticado. Faz por prazer! É um psicopata do mais alto grau.

Vamos investir na educação. Não só para amenizar as injustiças sociais, mas, também, para que o nosso povo saiba buscar informações e deixe de ser manipulado que é outro modo de atuar dos psicopatas.

Urbano

Comemorar a ditadura de 1º de abril de 1964 é acender uma vela pro diabo…

Julio Silveira

Concordo com tudinho.
Mas fazer o que? brasileiro não é instado a pensar.
É instruído a ficar calado escondido no cantinho, esperando para arcar com seus prejuízos.
Poucos sabem o que vem a ser de fato respeito e cidadania.

Marat

Texto excelente. Pena que Estados Unidos e Europa estão cada vez mais autoritários, sanguinários e fascistas. Não demorará muito, e veremos editoriais da globo e da veja apoiando a neo-democracia autoritária, que escravizará povos em nome do mercado!

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