Guta Assirati: Nenhum ser humano nasce só para carregar pedras

Tempo de leitura: 4 min

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Dilma Rousseff e Cavavo Silva

Feliz Ano Novo

Maria Augusta Assirati, desde Portugal, especial para o Viomundo

Em Portugal, no Brasil e no mundo é ano novo!

A “tradicional” mensagem do Presidente da República ao povo português e aos residentes em Portugal, proclamada pela ocasião, foi marcada pelo otimismo. Cavaco Silva discursou afirmando que “Existem razões de esperança no futuro. Mas a esperança não se proclama com meras palavras… Para se construir um país melhor no futuro, a esperança tem de ser semeada no presente”.

No presente, dias depois, os telejornais portugueses mostravam o descrédito do povo português em relação ao discurso presidencial, à classe política do país, e sua desesperança em relação ao futuro. Isso, no presente, é o que as pessoas, desempregadas, desabrigadas, indocumentadas, vivem. Porque a desesperança também não se constrói apenas com meras palavras. Conforma-se aos poucos, na medida em que se vai tornando vã a espera pelo emprego e pelo pão.

A taxa de desemprego em Portugal girou em torno de 15% em 2014, o acesso aos benefícios da seguridade social tem sido sucessivamente dificultado, e os pilares que sustentam o Estado de Bem-Estar Social (como de resto, em grande parte dos países na Europa – e no mundo) vêm sendo desmontados. E a política em relação aos migrantes estrangeiros tem endurecido concreta e visivelmente. Tempos de austeridade que perdurarão no novo ano.

Para lá do oceano, reeleita, Dilma Rousseff, discursa por ocasião de sua posse para segundo mandato como Presidente da República, em momento coincidente com o início de 2015. Não menos otimista, compromete-se à garantia de direitos: “Nenhum direito a menos, nenhum passo atrás, só mais direitos e só o caminho à frente. Esse é meu compromisso sagrado perante vocês”.

Dias antes de sua posse, (na gestão anterior da mesma Presidente), e portanto, ainda no presente, o governo cortou 18 bilhões em benefícios previdenciários relativos ao seguro desemprego, pensão por morte, auxílio doença, seguro defeso e abono salarial. Não custa destacar que a política previdenciária representa uma das mais importantes fatias na distribuição de renda no país. Vem, assim mesmo, minguando.

Cavaco Silva fala de uma estratégia da política portuguesa, acompanhada do controle das contas públicas e do endividamento externo. O governo Dilma justifica os cortes na Previdência, com base na necessidade de ajustes voltados a eliminar excessos e corrigir distorções.

Fico me perguntando com que excessos nós, anônimos Marias e Josés, “simplesmente” trabalhadores, temos sido contemplados. Como temos mais a contribuir no sentido de corrigir distorções, além de votar, trabalhar, e pagar (justa e devidamente, é bom que se diga) impostos? Entregar mais dinheiro aos bancos? Resignar? Calar? E, ademais, ter esperança, Presidente Silva? E, ademais, entender que cortes nos benefícios previdenciários, Presidenta Dilma, não significam redução de direitos?

O que é que os produtores do Alentejo, os desabrigados da periferia de Lisboa, as comunidades da Maré ou do Capão Redondo, os povos explorados da Amazônia, os esquecidos dos sertões nordestinos, os cortadores de cana, os ribeirinhos, indígenas e quilombolas, os sem terra, podem fazer pelo controle das contas públicas e pela “correção de distorções”? Já abriram mão de seu direito ao trabalho. Precisam, ainda, compreender que é importante para seu país que se contentem com um seguro desemprego menor? Já sobrevivem em condições precárias. Precisam, ainda, controlar melhor suas necessidades de saúde, reduzindo a procura por serviços? Aceitar a vida com menos ou nenhum acesso à educação? E tudo isso, tendo, ainda, esperança?

O ano de 2015 é novo. Mas as injustas mazelas do capitalismo são velhas. Nos palácios dos governos da Europa ou da América (de esquerda ou de direita), tem havido poucas chances de resistência às investidas do (real) poder do capital. E, no mundo, os Estados são cada vez mais mínimos. A esperança, portanto, rogada aos portugueses, é quase um súplica por resignação, sobretudo em ano de eleições. Tanto quanto aos brasileiros, que mal reelegeram sua presidente esperando a continuidade de um projeto popular, já tiveram que amargar a composição de um ministério que, majoritariamente, irá atuar pela conservação dos privilégios das elites dominantes e interesses do capital, em detrimento das demandas e direitos populares.

Nenhum ser humano nasce apenas para carregar pedras. Tanto menos (por ser repugnante), apenas para carregar a lenha que ascende o fogo dos outros.  “Gente é pra brilhar”. E não pode brilhar luz num mundo em que são muitos apenas a preparar o banquete, enquanto somente uns poucos a degustá-lo. Não pode haver esperança enquanto houver desigualdades, em especial, as que matam o corpo ou o espírito, de fome ou desgosto.

Um não tão anônimo José, de sobrenome Saramago, no artigo “A Cozinha” de dezembro de 1977 (pouco tempo após o 25 de Abril), com estilo infinitamente maior que o de quem ora subscreve, já chamava também a atenção do governo da época para o compromisso que assumira em relação às transformações sociais. Munido de acidez em medida impecável, conclui afirmando: “foi o eleitor à secção de voto e pôs o boletim. Louvaram-lhe então o espírito cívico, a maturidade, e cantaram-lhe, a propósito, as loas da democracia formal. Mas de cada vez que descemos à rua para gritar que o voto de vontade socialista foi traído, não falta quem diga serem inadmissíveis esses métodos de actuação de massa. No entender de tais censores, o voto é, em si mesmo, princípio e fim, o eleitor uma borboleta efêmera destinada a nascer, viver e morrer no dia da eleição. Assim nos quereriam. Não é assim que nos terão. Porque a nossa desistência seria o melhor condimento para a cozinha deles”.      

Reside aí, a meu ver, a esperança. Esperança que só há de haver, se nos movermos; se não resignarmos e não desistirmos de reagir. Esperança que somente ressurge a partir da mobilização e persistência dos povos. Portanto, façamos por merecer nosso quinhão de esperança. Do contrário, assistiremos sentados a mais um ano iniciado com festejos, fogos de artifícios e banquetes preparados pela maioria, para que desfrutem apenas as velhas dominantes minorias. Desejo em 2015 a todas e a todos nós uma Feliz Esperança Nova!

Maria Augusta Assirati é advogada e mestre em Políticas Públicas pela Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ. Presidiu entre 2013 e 2014 a Fundação Nacional do Índio – Funai. Atualmente é doutoranda no Programa Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI pela Universidade de Coimbra no Centro de Estudos Sociais (CES).

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Comentários

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Leonardo

Ela Mente assim na cara dura? Nossa. To Chocado.

    Caracol

    Brilhante comentário.
    Só não lhe alcancei a razão, certamente devido à minha insuficiência intelectual. O comentarista evidentemente tem razões com as quais poderia iluminar-me, mas reserva para si a própria luz. Que seja.
    Pergunto, no entanto: Ó mancebo, estás chocado como ovo que proveio de galinha?

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