Luiz Cláudio Cunha: Vexame em Cannes

Tempo de leitura: 5 min

por Luiz Cláudio Cunha, no Observatório da Imprensa

O fato mais retumbante da fracassada reunião do G-20, dias 3 e 4/11, em Cannes, não saiu em nenhum comunicado oficial, nem nas entrevistas dos líderes das 20 nações mais ricas deste planeta empobrecido. Num descuido técnico capaz de matar de inveja ao inconfidente Julian Assange, vazou no sistema de som da cúpula um diálogo inacreditável dos presidentes da França, Nicolas Sarkozy, e dos Estados Unidos, Barack Obama, desancando um amigo ausente, o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu.

Os jornalistas receberam seus equipamentos de tradução simultânea, enquanto aguardavam a chegada de Sarkozy e Obama para a entrevista coletiva. Os dois presidentes, com aquela sinceridade que só habita documento secreto vazado pelo WikiLeaks, falavam em privado, na sala ao lado, o que nunca diriam em público sobre o primeiro-ministro israelense.

“Não posso nem vê-lo. É um mentiroso”, bufou Sarkozy, em francês. “Se você está cansado, imagina eu, que tenho de lidar com ele todos os dias”, ecoou Obama, sob o solitário testemunho do intérprete. Um descuido jogou esta conversa franca no sistema de som que os jornalistas haviam recebido, minutos antes da coletiva iminente.

Mais espantoso do que o tom cabeludo do papo presidencial entre dois tradicionais aliados de Israel foi o comportamento cúmplice da grande imprensa, que se mostrou uma aliada ainda mais incondicional de Sarkozy e Obama. Esta conversa aconteceu numa quinta-feira (3/11), numa sala reservada do suntuoso Palais des Festivals de Cannes, e foi ouvida casualmente por seis jornalistas de grandes órgãos internacionais, que ainda testavam seus fones de ouvido. Um deles era da Associated Press (AP), uma gigantesca agência de notícias que abastece 1.700 jornais e 5.000 rádios e TVs em 120 países. Outro era da Reuters, a maior e mais antiga agência do mundo, com 14 mil funcionários falando 20 idiomas em mais de 200 grandes cidades do mundo. Apesar disso, ninguém ficou sabendo da conversa ouvida por acaso pelos jornalistas simplesmente porque os jornalistas ocultaram a notícia.

Cortesões do poder

Uma das anônimas testemunhas dessa gafe histórica explicou à agência estatal France Presse (3.000 funcionários em 110 países, com notícias em seis idiomas) a razão de seu deliberado mutismo: “Nós fomos avisados para sermos prudentes e proteger as pessoas do Palácio Eliseu, com as quais trabalhamos todos os dias, e acima de tudo sobre a natureza da conversa, que poderia ser explosiva”.

Outro jornalista, mais servidor público do que servidor do público, o israelense Gidon Kutz, de uma rádio oficial de Tel-Aviv, explicou que os repórteres acharam melhor esconder o que ouviram por “uma questão de correção” e por uma inesperada cortesia com os anfitriões: “Eles não quiseram embaraçar o serviço de imprensa do Governo Sarkozy”.

A rede britânica BBC acrescentou outra vergonhosa explicação dos jornalistas que decidiram dissimular a notícia: “A divulgação do diálogo poderia constranger Sarkozy”, disseram, ocultos no anonimato e encharcados de constrangimento por seu mau profissionalismo.

Com esse inusitado pacto de silêncio, a conversa sem censura de Sarkozy e Obama acabou sendo vítima de uma inusitada autocensura dos repórteres que testemunharam a derrapada presidencial mas preferiram ser servis ao poder, em vez de servir ao público a que deveriam informar. Tudo isso ficou sepultado num obsequioso sigilo durante cinco dias. A conversa vazada da quinta-feira (3) só ganhou as manchetes do mundo na terça-feira (8/11), por obra e graça de um site francês especializado nos bastidores da mídia eletrônica, o Arrêt Sur Images(ASI), algo como “Imagem sob Julgamento”. Os jornalões brasileiros só deram a notícia uma semana depois (quinta, 10/11).

Carne com cenoura

Sustentado apenas pelos assinantes e sem espaço para publicidade, o ASI fez o que o resto da imprensa não conseguiu fazer – reconheceu o conteúdo da conversa vazada como de “utilidade pública” e fez dela um “furo” de repercussão mundial, com esta manchete: “Netanyahu ‘mentiroso’ – a conversação secreta de Obama e Sarkozy”. Até as grandes agências de notícias, que tinham afanado a informação, foram obrigadas a reproduzir a gafe mundo afora para não ampliar o vexame. Ela ganhou destaque até nos sites dos maiores jornais de Israel, com exceção do diário Israel Hayom, conhecido por sua notória intimidade com o premiê Netanyahu desde que foi lançado, em 2007.

O site Arrêt Sur Images é dirigido pelo jornalista Daniel Schneidermann, 53 anos, que escreve semanalmente sobre TV nos jornais Le Monde e Libération. O sucesso de seus comentários o levou a criar em 1995 um programa no canal estatal France 5 com um objetivo claro: “A vocação de Arrêt Sur Images é a reflexão crítica sobre as mídias”. Os jornalistas de TV, incomodados com essa espécie de “observatório televisivo”, apelidaram o programa semanal de Schneidermann de boeuf-carottes (carne com cenoura), gíria francesa para uma repartição pública, a IGS, conhecida como “a polícia das polícias”. Tinha uma audiência média de 7%, o que representava mais de 700 mil telespectadores, mas a fricção interna na rede estatal levou à sua exclusão da grade de programação em setembro de 2007.

Dias depois de sair do ar na TV, o Arrêt Sur Images voltou pela internet, com o mesmo nome e ousadia. Até o blog ganhar visibilidade mundial com o “furo” inesperado de Cannes.

A questão que fica sem resposta não é o previsível mal-estar que dominará os futuros encontros entre os líderes dos Estados Unidos, França e Israel, agora desnudados pela conversa nua e crua de Sarkozy e Obama.

A grande, desafiadora pergunta que paira no ar sobrevoa a gafe monumental da grande imprensa mundial surpreendida em flagrante delito: o que levou à deliberada ocultação de uma notícia de evidente interesse público, de forte implicação política, de grave repercussão internacional no contexto das relações diplomáticas?

A ferida e o manto

É inacreditável que experientes profissionais de grandes órgãos e de redes de comunicação de alcance planetário se vejam, de repente, enredados em questões menores, mesquinhas, provincianas. Não cabe aos jornalistas, em nenhuma circunstância, o delito de esconder deliberadamente uma notícia sob o falso argumento de que ela possa “constranger” o poder ou a autoridade pública.

Nada constrange mais do que a autocensura ou o servilismo da imprensa às instâncias do poder, público ou privado. A imprensa e seus profissionais vivem e dependem da fé pública que deriva de sua eterna vigilância e de sua permanente independência em relação aos governos e aos governantes, em todos os tempos, em todos os lugares.

Os repórteres enviados a Cannes não estavam lá a passeio, para aproveitar as delícias da Promenade de la Croisette, a charmosa avenida a beira-mar lambida pelo sereno Mediterrâneo. Diante do inesperado vazamento, não cabia a eles “proteger” os descuidados funcionários do Palácio Eliseu ou evitar embaraços aos presidentes distraídos. Uma das virtudes dos bons jornalistas é justamente embaraçar governantes e expor as falhas de suas administrações.

Esconder uma notícia não é “uma questão de correção”. É exatamente o contrário. Quando se estabelece um sistema de cumplicidade e uma prática de quadrilha para fazer o que não é correto e para cometer um ato servil que subverte a função essencial do bom jornalismo, abre-se uma ferida de mau comportamento que exige uma discussão aberta e transparente, sem códigos de silêncio ou conluios de sigilo, todos envergonhados, todos vergonhosos.

É surpreendente descobrir que, oculto por trás da grande gafe presidencial de Cannes, havia algo ainda maior, ainda pior: um grave vazamento ético de má conduta da imprensa. A única forma de estancá-lo é abrir, já, um amplo debate sobre este monumental erro coletivo, que abafa até o jornalista mais inocente sob o espesso manto do constrangimento.

Luiz Cláudio Cunha é jornalista

PS do Viomundo: Graças ao Beaumirage, os leitores do Viomundo ficaram sabendo do diálogo no dia 9 de novembro.

Leia também:

A conversa “secreta” de Obama e Sarkozy


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Comentários

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augusto

âh..
teve mais, depois que o obama o encorajou, ai o Sarkô emendou: " Tambem je num aguento pas o Berluscô,sabe? Ele anda cantando agora, advinha quem?
–who, my friend?
–A Carla bruni,todo o dia pelo celular.
Pano rapido.

Alex Gonçalves

A questão tem a ver com ‘mal-estar’ entre USA e Israel TAMBÉM.

Pois já estão querendo bombardear o Irã. ‘Mentiroso’ vem bem a calhar agora.

Hélio

"A grande, desafiadora pergunta que paira no ar sobrevoa a gafe monumental da grande imprensa mundial surpreendida em flagrante delito: o que levou à deliberada ocultação de uma notícia de evidente interesse público, de forte implicação política, de grave repercussão internacional no contexto das relações diplomáticas?"

Resposta.
Porque o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, os presidentes da França, Nicolas Sarkozy, e dos Estados Unidos, Barack Obama, em conjunto, estão discutindo as bombas atômicas que o Irã pretende construir. Talvez as mesmas "armas de destruição em massa do Sadam Hussein" (que nunca apareceram). A repetição da mesma falácia que redundou na invasão do Iraque. E o restante do mundo vai fingir acreditar.

zeca

Hoje o Bom (?) dia BR revelou com grande reverencia, que o Obama disse ontem ser a crise europeia de caráter político. Ora, Lula e Dilma já vem dizendo isso há uns 2 meses, mas nada de dar os créditos…Realmente o servicilismo e a tentativa de desvalorizar o ex-presidente e sua sucessora não tem limites ao PIG…

JOSÉ ANTÔNIO

A imprensa sempre promoveu a desinformação. O povo é que faz a informação, através de canais como este.

ratusnatus

A Chevron já vazou 300 mil litros de óleo em Campos e nada do Azenha comentar. Que estranho.

Parece até a reunião do G20.

E a discussão sobre royaltie acadou abruptamente quando estava no auge. Estavam prontos para vetar o possível veto da Presidente.
Aaaa gentem…. vamos voltar a discussão.
Volta Azenha volta.

mello

Apenas um diálogo entre dois dos maiores hipócritas entre os dirigenyes das grandes putências…

FrancoAtirador

.
.
O que mais ameaça a democracia:

O monopólio da desinformação;

O conluio para a falsificação da notícia;

A conspiração para a omissão da verdade.
.
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Roberto Locatelli

A mesma mídia que cometeu crime para tentar conseguir um "furo" no hotel onde se hospeda José Dirceu, silenciou por UMA SEMANA sobre esse episódio.

A mesma mídia que tem sangue nos olhos para desancar a Petrobras, silencia sobre o GRAVÍSSIMO DESASTRE AMBIENTAL, o vazamento provocado pela Chevron no litoral brasileiro. Veja aqui: http://www.tijolaco.com/cumplicidade-escandalosa/ – e aqui: http://www.tijolaco.com/especialista-derrame-de-o

A mesma mídia que acusa, julga e condena os ministros de Dilma, silencia sobre os graves casos de corrupção demotucana em SP e MG (merenda, Alstom, venda de emendas, rádio Arco-Íris e muitos outros).

O verdadeiro jornalismo está na Blogosfera.

José M. de Medeiros

Fato como êsse aconteceu no Brasil, na Globo mais precisamente, o entrevistado era o então ministro da Fazenda Rubens Ricupero, falou abertamente o que a Globo ainda hoje usa, o que é bom agente mostra o que e ruim agente esconde. Isso nos dá um idéia do grau de confiabilidade da imprensa , na globo, veja e folha de S. Paulo é zero. Por falar em confiabilidade da informação, o vazamento de petróleo já foi estancado?

Zé Tourinho

Num fórum teve uma breve discução sobre essa matéria, um forista levantou a hipótese de a notícia ter sido divulgada propositalmente, e outro forista perguntou qual seria a mentira que o sr. Bibi estava a esconder….
No topico de debate foi dito que talvez a mentira estivese ligada ao fato das armas nucleares do Irã…
E vocês o que acham? Qual seria a mentira do sr. Bibi?

Lu_Witovisk

Esses putos mantém a MATRIX… até quando?! :(

Caracol

Fizeram um favor ao Netanyahu, que no fim dessa história, entre governantes e jornalistas, passou a ser o menor e menos importante mentiroso de todos eles.

Augusto

O ocidente é um piada, não faz nada do que prega, tortura, presos incomunicáveis, presos sem provas, imprensa que só informa o que é de interesse do poder e das grandes empresas. Criam orgãos internacionais para defender o que eles querem, não aceitam quem discordância. Prendem quem protesta, você tem direito a opinião, deste que, fique calado!

Francisco

Com o advento da internet estamos nos dando conta de que quem devia fazer a cobertura jornalistica de um país, deveria ser a imprensa de um país qualquer antípoda.

Esse negócio de escova de dentes juntas (entre poderosos e imprensa) gera muita "intimidade"…

Juan

E eu tenho certeza que teve mais alguma parte da conversa que não saiu, pq como pode os caras terem percebido e avisado os dois em uma outra sala tão rápido a ponto de só ter vazado 2 frases?? acho dificil.

Juan

E eu tenho certeza que teve mais alguma parte da conversa que não saiu, pq como pode os caras terem percebido e avisado os dois em uma outra sala tão rápido a ponto de só ter vazado 2 frases?? acho dificil.

então provavelmente alguma coisa foi silenciada.

    Mário SF Alves

    Que não foi tudo, ah! meu caro, isso é quase um fato Mas, Juan, por que não admitir que foi tudo um jogo de cena; que o que vazou, vazou por intenção de vazar? Imagine o impacto político de se passar a impressão de que esses caras ainda pensam com as próprias cabeças, que têm capacidade crítica ou de divergência de métodos?

Polengo

Pois é, e quem não ia se gabar de ter um "furo" desses?
Mas parece que estava um de olho no outro, sei lá, que nem um monte de ladrão juntos.

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