Fausto de Sanctis: A decência da dignidade está em xeque

Tempo de leitura: 4 min

Coisa nossa. O país em desconstrução

Fausto De Sanctis, em Valor Econômico, sugerido por Paulo Dantas

Qualquer atitude em direção ao fenômeno crime organizado, mais incisiva que seja por parte da magistratura de primeiro grau, e dentro dos limites institucionais, assume propriamente riscos e conotações como se fruto fosse de organismo à margem do Estado. Do Estado de Direito. Ilegalidade, arbitrariedade, saudosismo da ditadura, adoção da lei e da ordem, do direito penal, do inimigo etc. etc. etc. Inconstitucionalidade. Tratam como se estivéssemos num campo de discricionariedade da atividade judicial que não teria lugar, ainda que preventivamente.

Uma análise minimamente exauriente deve levar em consideração a emergência do fenômeno e a resposta adequada. Acredita-se ingenuamente que tal emergência em algum momento tenha refreado, mas, ao contrário, além de resistir, aumenta substancialmente e sequer se cogita de uma contenção institucional.

O que se observa, de fato, é a grave dilaceração do tecido democrático, uma dor moral (irreparável) aos valores sociais, colocando em perigo ou fulminando práticas políticas salutares e legitimando gravíssimos fatos ilícitos contra o Estado.

Deve-se ponderar que a situação, de tão sistematicamente emergente, tornou-se praxe, e por vezes, possui origem e destino no próprio Estado de “Direito”. Bravamente, por meio de seus Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), com fundamentos sempre bem definidos e convincentes, resiste a qualquer ação de combate ao crime organizado contra a administração pública (corrupção) ou a ordem econômico-financeira (colarinho branco), quando não é negada veementemente.

O fenômeno ou a situação é agravado (a) quando, de forma fantástica e generalizada, dissemina-se a ideia de que os costumes dos homens públicos do país dificilmente seriam extirpados da vida da população já que traduziriam algo inerente à sociedade.

Ledo engano.

A reação social, ainda tímida, mas importante e inquietante, cobra uma definição mais adequada que possibilite algum respiro. O ceticismo geral diante da indiferença institucional, travestida de movimentos teatrais espetaculares, tem sido, entretanto, acompanhado de questionamentos da corrente mantenedora do grave fenômeno.

É um sopro de esperança ou um fator de sobrevivência da democracia, cujo foco único é a funcionalidade do aparato estatal. Sua utilidade.

Ao se constatar que sistemas de valores sociais como honra, família, fé e amizade transmudaram-se para vergonha, clã criminoso, heresia e cumplicidade, abraçamos um fenômeno verdadeiramente mafioso que tenta fazer do “vale tudo” da apropriação privada do bem público uma regra consagrada. Pior quando a deturpação dos reais valores caros torna-se operosa, exitosa e perene. A extorsão ou o favorecimento com a grave comunhão de apadrinhados tem sido idôneo o bastante para interferir no ânimo da sociedade que, perplexa, sente sua liberdade moral ruída e o patrimônio público fatiado. Que fazer?

A luta contra um estado tal de coisas é ao mesmo tempo repressiva (julgamentos eficazes) e preventiva (estabelecimento da cultura da licitude no seio da família, escola e comunidade), ou seja, a constituição de um pool antimáfia institucionalizado que reveja leis, nossas instituições e posturas culturais. Necessariamente que torne transparente contratos e convênios públicos, que proteja, de fato, os colaboradores, sejam réus ou testemunhas, que preveja métodos de investigação que levem à verdade e deem um basta às intimidações e às medidas que visem criar obstáculos ao combate – reforço de penas privativas e medidas de prisão preventiva em certos casos.

O delinquente econômico tem plena ciência, hoje, de que os riscos da conduta criminosa (se é que riscos existem) são menores que os efeitos de suas ações, não se recomendando, portanto, penas pecuniárias ou prestação de serviços, cuja prevenção, já assim entendida por importante doutrina internacional, mostra-se ineficaz.

Em xeque está a decência da dignidade.

Que os direitos coletivos sejam verdadeiramente reconhecidos e não suprimidos por uma valorização simplória e cômoda de direitos individuais. Aliás, os direitos do todo, nada mais significam do que um conjunto de direitos individuais coletivizados para o benefício do todo. Os direitos fundamentais clamam um postulado de intervenção que corresponda em deveres de tutela geral.

É ilusório imaginar prescindir-se da função judicial propulsora – e isso independe da imparcialidade – que faz com que o crime praticado por imitação seja obstado e não venerado. Mesmo pessoas bem educadas, em ambiente corrompido, absorvem maus hábitos.

O Superior Tribunal de Justiça, criado pela Constituição de 1988 para desafogar o Supremo Tribunal Federal, tem assumido função deste (paralisando sistematicamente processos judiciais com invocação de inconstitucionalidade que nem a Corte própria assim entende), quando não de tribunal de segunda instância (apreciando prova que não lhe compete). Uma terceira instância que não tem refletido uma jurisprudência remansosa e pacífica. Tribunal da cidadania, sim, mas principalmente tribunal da coletividade. Cabe refletir o seu papel. Deveria se constituir em última instância, caso em que o Supremo Tribunal Federal se tornaria, exclusivamente, Corte Constitucional?

O Supremo, também com o respeito e acatamento devidos, tem decidido questões marcantes com grau de inovação e de compaixão únicos, reconhecendo um garantismo particular que pode tornar em salvo conduto geral o delito econômico.

Os advogados, tanto possuem função essencial, que chefiam a Polícia Federal, integram tribunais e opinam na indicação dos que ocuparão os cargos próprios da magistratura.

Triste magistratura de primeiro grau que, para galgar qualquer cargo legítimo, terá que se valer do apoio de parte de políticos que prestigia e promove a manutenção do delicado e vitorioso fenômeno criminoso avassalador, aviltante e tomador da riqueza e da esperança brasileiras.

O povo que aceita esse fenômeno paga o preço: não prestigia a dignidade, não goza de liberdade, não desfruta de segurança. Tampouco é verdadeiramente soberano.

Fausto De Sanctis é desembargador federal em São Paulo e escritor.

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Comentários

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Pitagoras

Infelizmente para cada DeSanctis há no judiciário dez teodomiros (aquele magistrado condenado e que proibiu a "Marcha da Maconha").
O que faz do "pudê" judiciário o mais nefasto do país.

    Artur

    Onde estão os dados?

yacov

Realmente, precisamos urgente de reformas, não só no Judiciário, que apresenta o desvio de comportamento em sua forma mais acabada, pois legitimador da corrupção, mas principalmente nas formas de relacionamento pessoais, familiares, em casa, na escola, no trabalho… As pessoas precisam rir o tempo todo, ou estão doentes. Nas famílias, a voz que fala mais alto é da TV, da Internet, ou do video game. Ninguém mais senta à mesa para almoçar ou jantar. O que vale é ser o mais experrrrto!!! Quando penso na importância do professor e no desprestigio que desfruta em nossa sociedade altamente competitiva, tenho calafrios. Que mundo estamos criando?? Grande texto do ínclito Dr. Fausto. Sempre Instigante.

"O BRASIL PARA TODOS não passa na glOBo – O que passa na glOBo é um braZil para TOLOS"

ricardo silveira

Felizmente o corajoso juiz Fausto De Sanctis, agora desembargador, tornou-se mais difícil de ser calado pelas instâncias superiores, até porque, novas vozes surgiram dentro da magistratura, com a mesma indignação com relação a juízes corruptos e criminosos. Se tivéssemos uma mídia comprometida com a justiça e a democracia não há dúvida que a impunidade a bandido e a juiz bandido seria mais difícil.

reinaldo carletti

pelo que eu entendi, acertou em cheio os pigs,o serra e suas ambicões transloucadas,alguns integrantes do stf e adjacencias, portanto mostrou-se um brasileiro digno em sua aividade.parabéns.
reinaldo carletti

    Artur

    Claro…os últimos marginais pegos na botija são todos ligados ao PIG, ao Serra…

Rafael

Globo, abril, folha, estadão se se preocupassem com corrupção valorizariam pessoas como Fausto de Sanctis. Nunca vi uma reportagem sobre esse juiz na capa como exemplo de atuação e nunca veremos. O PIG repeita é Gilmar Mendes que é um gangster prova disso mais básica sua esposa trabalha no escritório do advogado do Daniel Dantas. Coincidência que Gilmar Mendes de dois HC em menos de 48 horas para o Daniel Dantas. E pior ainda questionou Fausto de Sanctis. Essa é cara do PIG, autoritarismo enquanto banca preocupado com corrupção.

nadja rocha

O que posso dizer é que, a julgar o autor, que o considero íntegro e ético até que me provem o contrário deve ser verdadeiro, porém como sempre Dr. Fausto usa um nível altíssimo e eu como vários pobres mortais não consigo compreender o texto

    Julio_De_Bem

    Esse paragrafo resume o texto

    "Triste magistratura de primeiro grau que, para galgar qualquer cargo legítimo, terá que se valer do apoio de parte de políticos que prestigia e promove a manutenção do delicado e vitorioso fenômeno criminoso avassalador, aviltante e tomador da riqueza e da esperança brasileiras."

    Quem dera Dilma indicasse um homem que tem a coragem de dizer isso, como um ministro do STF. Pelo menos o povo teria alguma representação na justiça.

    Jairo_Beraldo

    Faço minhas suas palavras…mas não entendo porque ela se furta a assim agir….será que o STF tem poder sobre os presidentes? Escutei de um jornalista hoje na barbearia que frequento, que os processos contra o reizinho goiano M. Perigo, estão estacionados no fundo de gavetas a troco da bagatela de R$ 7 milhões para cada um dos 3 ministros responsáveis por julgar o meliante….se isso for verdade, o que suponho ser, estamos literalmente ferrados!!!!

    Pitagoras

    Imagine se magistrado fosse eleito…

    Julio_De_Bem

    como assim?

    marcio gaúcho

    Explico: está tudo podre. Desde a primeira instância, que necessita de apoio político para as promoções, que exigem favores especias, que resultam em decisões fora da lei. O resto a gente já sabem.

    H. C. Paes

    Não é problema só seu. Também tive trabalho para destrinchar. De Sanctis não é um escritor dos mais claros. Seu raciocínio é macarrônico. O sentido está lá, coerente e consistente, mas soterrado por uma retórica esquisitíssima que torna a leitura desnecessariamente árdua, ao menos para mim.
    As entrevistas dele não são muito melhores.
    Felizmente, de Sanctis é admirável por suas idéias e sua integridade à toda prova, e não por seu estilo de redação. Do contrário, ele seria um cronista, não um juiz.

    franklin

    ESTAMOS FERRADOS. Isto é, o que ele quer dizer. Espero que tenha lhe ajudado.

    Rafael

    Exatamente, mas como juiz ele precisa ser compreendido claramente seja qual for o nível intelectual e ainda mais escrevendo um texto. Poderia escrever a essência desse texto de modo muitíssimo mais simples. Parece um vício do judiciário como um todo, as decisões precisam ser facilmente entendidas, mas quase todas usa um vocabulário específico o que dificulta a compreensão.

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