Alguns aspectos da crise tucana
por Wagner Iglecias
Sou de uma geração que acreditava que o PT era socialista e que o PSDB era social-democrata. Foi uma geração numerosa. Só posso falar por mim, mas cheguei mesmo a acreditar um dia que PT à esquerda, PSDB ao centro e PL, à direita, seriam os três grandes partidos de um moderno sistema político que viria a existir no Brasil a partir da década de 1990. Doce ilusão juvenil. Só me faltou levar em conta, naquela época, nosso patrimonialismo atávico e nossa velhíssima tradição política, que fazem com que partidos liberais se diluam na massa amorfa de siglas fisiológicas e que fazem vergar, em maior ou menor grau, os ideais fundantes de partidos originalmente progressistas. Fato é que o PL sumiu e, para vencer as eleições presidenciais, tanto tucanos quanto petistas fizeram alianças com partidos e setores conservadores. Mais que isso, no exercício do poder o PSDB aplicou o programa neoliberal, enquanto quem vem tentando construir nosso arremedo de Welfare State, nossa “social-democracimorena”, é o PT. Ou seja, a impressão que fica é que dos anos 1990 pra cá caminhamos todos para a direita do espectro político.
Nosso presidencialismo é de coalizão, mas há que se lembrar que quem ganha eleição para o Executivo em nosso país manda, impera, pode muito, ainda que esse “poder muito” tenha prazo de validade e seja renovável a cada quatro anos. O consórcio PSDB/PFL pôde muito enquanto esteve no poder, em especial surfando na boa onda da economia durante o primeiro mandato de FHC. Havia amplo apoio social ao governo em meados da década de 1990, dos bancos às classes populares, passando inclusive por importantes setores do empresariado nacional, ainda que este vivesse as agruras da exposição desenfreada, via câmbio e abertura comercial, à competição externa. Lembremos que FHC foi eleito e reeleito em primeiro turno, o que não é e nunca será pouca coisa.
É preciso reconhecer, no entanto, que o amplo apoio que FHC, PSDB e PFL tiveram naquela época não pode ser comparado ao que vimos nos últimos anos em relação ao governo Lula. Muita gente critica o lulismo, ressalta seu caráter despolitizador, aponta para o fato de que criaram-se nesses anos 30 milhões de novos consumidores, mas não 30 milhões de novos cidadãos, etc. Mas creio que nunca antes na História deste país, para usar a clássica expressão do ex-presidente, se viu um arco de forças sociais e políticas tão amplo quanto este formado nos anos petistas no poder. Talvez, e olhe lá, algo parecido tenha se dado apenas sob Vargas. Ou nem sob ele. É chover no molhado dizer isso, mas Lula teve apoio desde o sistema financeiro até as classes D e E, passando por quase toda a estrutura sindical e aliando-se amplos setores do que há de mais antigo no quadro partidário brasileiro. De fato, Lula só encontrou oposição no PSDB/PFL, nos extratos da velha classe média que estes partidos representam e nos formadores de opinião que a eles se dirigem.
Feito um lutador que prensa seu oponente nas cordas e vai lhe minando a resistência, o lulismo, pela estratégia acertada do PT e pela genialidade política de Lula, empurrou o PSDB para a direita do espectro político e social, e lá o tem confinado. Que o diga um José Serra, que teve, sim, uma militância intelectual mais à esquerda durante a ditadura militar, a fazer campanha em 2010 de braços dados com líderes religiosos ultra-conservadores e a apelar para a questão do aborto a fim de tentar tirar votos de sua então adversária.
A oposição hoje esvazia-se a passos largos, DEM e PPS são duas siglas em forte declínio e o futuro do PSDB é incerto. O que é uma temeridade para uma agremiação que desempenhou um papel bastante significativo na trajetória recente do Estado brasileiro. Goste-se ou não, o PSDB foi um partido de quadros que implementou algumas propostas relevantes para a gestão pública nacional quando foi governo. Não vou aqui fazer uma discussão de mérito, se foi bom ou se foi ruim e a que custo as coisas se deram, mas reconheça-se que foi com o PSDB no comando que se debelou a inflação, deu-se o pontapé inicial para uma mudança cultural em relação à questão fiscal e promoveram-se reformas gerenciais que tiveram forte impacto na máquina pública. Hoje em dia, no entanto, o partido encontra dificuldade em dialogar com uma sociedade civil em rápida mutação, vive a reboque de denúncias publicadas na imprensa e suas gestões estaduais dão a impressão de não irem além de um gerencialismo monótono e burocrático. Para além disso, a legenda encontra-se às voltas com disputas internas entre suas principais lideranças, aparentemente mais focadas em suas próprias carreiras do que no partido, como noticia a imprensa cotidianamente.
A crise tucana, portanto, tem duas dimensões, se não outras: de identidade e de lideranças. De identidade porque o PSDB há muito perdeu sua aura progressista, permanece sem saber ao certo o que fazer com o legado do governo FHC e parece ter dificuldade de compreender as mudanças recentes que a sociedade brasileira vem passando. É provável que o projeto tucano de poder seja ainda aquele mesmo do início da década de 1990, ainda que o cenário mundial tenha passado por tantas transformações nestes vinte anos. O partido há tempos não formula novas ideias, algo fundamental para quem almeja retomar o comando da nação, e se vê embotado pela lógica de culpabilizar o adversário (PT) por quase tudo o que de ruim ocorre no país. Embotamento este que afeta os tucanos de cima a baixo, atingindo desde algumas de suas principais lideranças até o militante mais simples, passando ainda por alguns dos intelectuais simpáticos à sigla.
Além de ser uma crise de identidade, de falta de novas formulações, de dificuldade de dialogar com a sociedade, a crise tucana também é de lideranças. Afinal, o que cada vez mais se lê nos jornais são os desencontros entre seus principais nomes. Que se tome como exemplo a recente polêmica envolvendo FHC e Serra, já dois veteranos em termos de trajetória política. Aquele continua sendo a principal referência do partido, enquanto este parece ainda almejar a disputa da presidência da república em 2014, o que se choca com os planos de outros setores do tucanato. Aécio, tido agora como nome natural para tentar suceder Dilma, surge aos olhos do eleitor como um presidenciável que parece não saber muito bem o que quer, se vai ou se fica, se é pra agora ou pra mais tarde.
Outras lideranças, antigas ou nem tanto, parecem por sua vez não ter condições de alçar vôos nacionais. Cito Tasso, Azeredo e Dias, bem como Marconi e Richa. E aqueles que talvez tenham sido as duas lideranças mais progressistas que a legenda teve, Franco Montoro e Mário Covas, são hoje apenas História. Aliás, parecem fazer muita falta ao partido nos dias de hoje. Assim como no futebol, na política não existe o “se”, mas se ainda estivessem por aí talvez os rumos do PSDB tivessem sido outros, ou não? Diz a mitologia política brasileira que foi por causa da insistência de Covas que FHC não tornou-se ministro de Collor, o que fatalmente lhe teria custado a carreira política. Dizem os mais velhos que Montoro era um homem de diálogo, antes de mais nada.
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Sem Covas e Montoro, com FHC e Serra falando idiomas diferentes, com Aécio numa postura para muitos dúbia e com as demais lideranças reduzidas a seus rincões locais, resta ao PSDB o nome de Alckmin. Que, a seu jeito, quase que um Montoro de sinal trocado, vai tentando, como diriam os marqueteiros, “reposicionar a marca” do partido. Reposicionamento à direita, mesmo. Via política do “pulso firme”, como tem sido visto nos últimos tempos e que cai tão ao gosto de uma parcela da sociedade brasileira, em especial a sociedade paulista. Quando eu ingenuamente ainda acreditava em três partidos que poderiam vir a dominar a cena política brasileira dizia-se que o PSDB era um partido em cima do muro. A experiência no poder e o lulismo que a sucedeu imprensaram o PSDB no canto direito do espectro político. Será que é lá que o partido vai permanecer daqui por diante?
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP.
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