Vladimir Safatle: Anistia nunca mais

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A Argentina, diferentemente do Brasil, instituiu um processo de transição democrática que possibilitou a condenação de torturadores e assassinos, civis e militares, da ditadura militar encerrada em 1983. Com isso, estabeleceu políticas de memória e verdade que têm servido de exemplo para todo o mundo. Em 9 de dezembro de 1985, os juízes leram a sentença de 709 casos apresentados durante o julgamento. Jorge Videla e Emílio Massera, que comandaram a ditadura militar mais sanguinária da América do Sul, com um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos, foram condenados à prisão perpétua. Roberto Viola, foi condenado a 17 anos de prisão; Armando Lambruschini, a 8 anos, e Orlando Agosti, a 4,6 anos. Anos depois, alguns dos condenados receberam indultos, e alguns dos absolvidos foram condenados, em casos de violações de direitos humanos que continuam até hoje na Argentina O filme "Argentina, 1985", lançado recentemente no Brasil, conta como foi esse julgamento histórico. Fotos: Divulgação do filme, arquivos e redes sociais

Anistia nunca mais

Por Vlaldimir Safatle*, blog da Comissão Arns

Muitas vozes alertam o Brasil sobre os custos impagáveis de cometer um erro similar àquele feito há 40 anos.

No final da ditadura militar, setores da sociedade e do governo impuseram o silêncio duradouro sobre crimes contra a humanidade perpetrados durante os vinte anos de governo autoritário.

Vendia-se a ilusão de que se tratava de astúcia política. Um país “que tem pressa”, diziam, não poderia desperdiçar tempo acertando contas com o passado, elaborando a memória de seus crimes, procurando responsáveis pelo uso do aparato do Estado para prática de tortura, assassinato, estupro e sequestro.

Impôs-se a narrativa de que o dever de memória seria mero exercício de “revanchismo” – mesmo que o continente latino-americano inteiro acabasse por compreender que quem deixasse impunes os crimes do passado iria vê-los se repetirem.

Para tentar silenciar de vez as demandas de justiça e de verdade, vários setores da sociedade brasileira, desde os militares até a imprensa hegemônica, não temeram utilizar a chamada “teoria dos dois demônios”. Segundo ela, toda a violência estatal teria sido resultado de uma “guerra”, com “excessos” dos dois lados.

Ignorava-se, assim, que um dos direitos humanos fundamentais na democracia é o direito de resistência contra a tirania.

Já no século 18, o filósofo John Locke, fundador do liberalismo, defendia o direito de todo cidadão e de toda cidadã matar o tirano. Pois toda ação contra um estado ilegal é uma ação legal. Note-se: estamos a falar da tradição liberal.

Os liberais latino-americanos, porém, têm essa capacidade de estar sempre abaixo dos seus próprios princípios. Por isso, não é surpresa alguma ouvir um ministro do Supremo Tribunal Federal, como Dias Toffoli, declarar, em pleno 2022, pós-Bolsonaro: “Não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina, uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, para o retrovisor, sem conseguir se superar (…) o Brasil é muito mais forte do que isso”.

Afora o desrespeito a um dos países mais importantes para a diplomacia brasileira, um magistrado que confunde exigência de justiça com clamor de ódio, que vê na punição a torturadores e a perpetradores de golpes de estado apenas vingança, é a expressão mais bem acabada de um país, esse sim, que nunca deixou de olhar para o retrovisor.

Um país submetido a um governo que, durante quatro anos, fez de torturadores heróis nacionais, fez de seu aparato policial uma máquina de extermínio de pobres.

Alguns deveriam pensar melhor sobre a experiência social de “elaborar o passado” como condição para preservação do presente.

Não existe “superação” onde acordos são extorquidos e silenciamentos são impostos. A prova é que, até segunda ordem, a Argentina nunca mais passou por nenhuma espécie de ameaça à ordem institucional.

Nós, ao contrário, enfrentamos tais ataques quase todos os dias dos últimos quatro anos. Nada do que aconteceu conosco nos últimos anos teria ocorrido se houvéssemos instaurado uma efetiva justiça de transição, capaz de impedir que integrantes de governos autoritários se autoanistiassem.

Pois dessa forma acabou-se por permitir discursos e práticas de um país que “ficou preso no passado”. Ocultar cadáveres, por exemplo, não foi algo que os militares fizeram apenas na ditadura.

Eles fizeram isso agora, quando gerenciavam o combate à pandemia, escondendo números, negando informações, impondo a indiferença às mortes como afeto social, impedindo o luto coletivo.

É importante que tudo isso seja lembrado neste momento. Porque conhecemos a tendência brasileira ao esquecimento. Este foi um país feito por séculos de crimes sem imagens, de mortes sem lágrimas, de apagamento.

Essa é sua tendência natural, seja qual for o governante e seu discurso. As forças seculares do apagamento são como espectros que rondam os vivos. Moldam não apenas o corpo social, mas a vida psíquica dos sujeitos.

Cometer novamente o erro do esquecimento, repetir a covardia política que instaurou a Nova República e selou seu fim, seria a maneira mais segura de fragilizar o novo governo.

Não há porque deleitar-se no pensamento mágico de que tudo o que vimos foi um “pesadelo” que passará mais rapidamente quanto menos falarmos dele. O que vimos, com toda sua violência, foi o resultado direto das políticas de esquecimento no Brasil. Foi resultado direto de nossa anistia.

A sociedade civil precisa exigir do governo que se inicia a responsabilização pelos crimes cometidos por Bolsonaro e seus gerentes. Isso só poderá ser feito nos primeiros meses do novo governo, quando há ainda força para tanto.

Quando falamos em crimes, falamos tanto da responsabilidade direta pela gestão da pandemia, quanto pelos crimes cometidos no processo eleitoral.

O Tribunal Penal Internacional aceitou analisar a abertura de processo contra Bolsonaro por genocídio indígena na gestão da pandemia.

Há farto material levantado pela CPI da Covid, demonstrando os crimes de responsabilidade do governo que redundaram em um país com 3% da população mundial contaminada e 15% das mortes na pandemia.

Punir os responsáveis não tem nada a ver com vingança, mas com respeito à população. Essa é a única maneira de fornecer ao estado nacional balizas para ações futuras relacionadas a crises sanitárias similares, que certamente ocorrerão.

Por outro lado, o Brasil conheceu duas formas de crimes eleitorais. Primeiro, o crime mais explícito, como o uso do aparato policial para impedir eleitores de votar, para dar suporte a manifestações golpistas pós-eleições.

A polícia brasileira é hoje um partido político. Segundo, o pior de todos os crimes contra a democracia: a chantagem contínua das Forças Armadas contra a população. Forças que hoje atuam como um estado dentro do estado, um poder à parte.

Espera-se do governo duas atitudes enérgicas: que coloque na reserva o alto comando das Forças Armadas que chantageou a República; e que responsabilize os policiais que atentaram contra eleitores brasileiros, modificando a estrutura arcaica e militar da força policial. Se isso não for feito, veremos as cenas que nos assombraram se repetirem por tempo indefinido.

Não há nada parecido a uma democracia sem uma renovação total do comando das Forças Armadas e sem o combate à polícia como partido político. A polícia pode agir dessa forma porque sempre atuou como uma força exterior, como uma força militar a submeter a sociedade.

Se errarmos mais uma vez e não compreendermos o caráter urgente e decisivo de tais ações, continuaremos a história terrível de um país fundado no esquecimento e que preserva de forma compulsiva os núcleos autoritários de quem comanda a violência do Estado.

Mobilizar a sociedade para a memória coletiva e suas exigências de justiça sempre foi e continua sendo a única forma de efetivamente construir um país.

Vladimir Safatle é filósofo, escritor e músico brasileiro nascido no Chile. É professor titular de Teoria das Ciências Humanas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Leia também:

Jair de Souza: A função da linguagem na construção do autoengano bolsonarista

Jeferson Miola: O fascismo que habita o Brasil


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Comentários

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Zé Maria

“Até quando GSI e Forças Armadas se calarão sobre militares golpistas?
É preciso providências urgentes contra Andriely Cirino que insufla a desordem
e Ronaldo Ribeiro que ameaçou eleitores de Lula e a posse.
Devem ser afastados e punidos por crime a contra democracia.”
https://twitter.com/gleisi/status/1598028252152533004

Zé Maria

.

E o Assange, que não não cometeu Crime nenhum, vai ser Extraditado
pela Monarquia Inglesa para cumprir Pena de Prisão Perpétua nos EUA.

.
“Julian Assange is a prisoner of conscience.
Free the man, and free the press.”
EDWARD SNOWDEN
https://twitter.com/Snowden/status/1597275451252412418

https://twitter.com/wikileaks/status/1597580134302633984
https://twitter.com/ggreenwald/status/1597231273415970817
https://twitter.com/ggreenwald/status/1597231889311363073
https://twitter.com/teleSURtv/status/1597586064600100865
https://twitter.com/diplobrasil/status/1597998131760992256
https://twitter.com/sahouraxo/status/1595524071067901957
https://twitter.com/mikelo56/status/1597472016806072322
https://twitter.com/RealSpikeCohen/status/1594858165228675076
.
“Estive com @khrafnsson, editor-chefe do WikiLeaks,
e com o editor Joseph Farrell, que me informaram
da situação de saúde e da luta por liberdade
de Julian Assange.
Pedi para que enviassem minha solidariedade.
Que Assange seja solto de sua injusta prisão.”
Luiz Inácio LULA da Silva
Presidente do Brasil (Eleito 2022)
https://twitter.com/LulaOficial/status/1597407126195867648
https://twitter.com/khrafnsson/status/1597440267619016704
https://twitter.com/petrogustavo/status/1595064957653090305
.
.

Zé Maria

Já existem os Assassinatos
praticados por Militares …

https://pbs.twimg.com/media/FizrmY_XkAA4cNp?format=jpg
“Tá vendo esta arma? É uma pistola Taurus, calibre .40, nº de série SCN06248.
Ela pertence à Polícia Militar de SP. E foi usada para matar, em abril de 2012,
o músico MC Primo, em São Vicente.
O laudo que comprovou que ela foi usada no crime
só ficou pronto uma década depois.”

Segue o Fio:
https://twitter.com/LuisAdorno/status/1597911017295872002

Zé Maria

Anistiar Fascistas Safados Alucinados?
Nem aqui nem na China?

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