Saul Leblon: A rendição da esquerda e a restauração conservadora

Tempo de leitura: 4 min

31/05/2013

As escolhas de Dilma

Saul Leblon, na Carta Maior

As notícias que chegam dos correspondentes de Carta Maior na Europa formam um denso exclamativo de alerta. 

A austeridade estala o relho do desemprego nas costas de quase 27 milhões de pessoas no continente – mais de 19 milhões só na zona do euro.

Um círculo vicioso de arrocho social, demência fiscal e privilégio às finanças escava o fundo do abismo. 

Aleija o Estado; esquarteja o tecido social.

A fome está de volta numa sociedade que imaginava tê-la erradicado com a exuberância da política agrícola do pós- guerra, associada à rede de proteção do Estado social. 

Quem não se lembra das montanhas de manteiga e trigo?

Inútil é a opulência quando a repartição se faz pela supremacia dos mercados desregulados.

Que meio milhão de pessoas passem fome no coração financeiro da Europa, como informa o correspondente em Londres, Marcelo Justo, nesta pág, deveria ser suficiente para afastar as ilusões na ‘solução ortodoxa’ para a crise sistêmica do capitalismo desregulado.

Mas a história não segue uma lógica moral; tampouco é imune a retrocessos. 

A calibragem fina entre a barbárie e a libertação humana não está prevista nos manuais de economia.

Esse apanágio pertence à democracia. 

Vale dizer, ao movimento das gigantescas massas de forças acumuladas na caldeira social de cada época. 

A esquerda europeia, ao longo dos últimos 30 anos, jogou água fria no vapor.

Sua rendição histórica representa hoje o chão firme em que prospera a restauração conservadora.

A regressividade econômica se faz acompanhar da contrarrevolução sempre que a esquerda troca a resistência pela adesão à lógica cega dos mercados.

Os paralelepípedos de Paris assistem, estarrecidos, às marchas extremistas contra os direitos das minorias — num ensaio de assalto aos das maiorias, patrocinado pela tibiez do governo Hollande.

A França vive o seu ‘Maio de 68 de direita’.

Quem avisa, nesta pág, é o experiente jornalista Eduardo Febbro, correspondente de Carta Maior que tem o olho treinado na cobertura de grandes levantes sociais do Oriente Médio à América Latina.

A exceção alemã, ademais de suspeita num continente devastado, assenta-se em mecânica perversa.

Frau Merkel gaba-se de ter acrescentado 1,4 milhão de vagas ao mercado de trabalho germânico no século 21.

O feito encobre uma aritmética ardilosa.

Desde 2000, a classe trabalhadora alemã perdeu 1,6 milhão de empregos.

Vagas de tempo integral, com direitos plenos.

Substituídas por 3 milhões de contratações em regime precário, de tempo parcial.

O salário mínimo (hora/trabalho) do semi-emprego alemão só não é pior que o dos EUA de Obama. 

É no alicerce das ruínas trabalhistas que repousa o sucesso das exportações germânicas, cantadas em redondilhas pelo jogral conservador aqui e alhures. 

Exportando arrocho, o colosso alemão consegue vender mais do que consome internamente. 

A fórmula espalha desemprego e ‘bons exemplos’ ao resto do mundo.

O ‘modelo alemão’, ademais, traz no DNA a singularidade que o torna inimitável: se todos acionarem o moedor de carne de Frau Merkel, quem vai comprar o excesso de salsicha?

O fundo do poço, enevoado neste caso pelo lusco-fusco da retomada norte-americana contrastada pela desaceleração asiática, é o ponto mais perigoso da crise. De qualquer crise.

As fragilidades estão no seu nível máximo. 

E sempre surge alguém para propor que a hora é de escavar o porão com mais arrocho e desmanche social.

Roosevelt ouviu os conselhos dos ‘austeros’, em 1937, quando a economia dos EUA começava a respirar. O rebote depressivo foi tão longe que dele o país só saiu com o keynesianismo de guerra.

O próprio FMI alerta: nas condições atuais, cada unidade adicional de austeridade produz duas vezes mais decrescimento, do que no início do ‘ajuste’.

A ortodoxia acha que nada disso vale para o Brasil.

O país ingressa nesse capítulo do colapso neoliberal equilibrado em trunfos e flancos significativos.

Sua engrenagem econômica se ressente da mortífera sobrevalorização cambial; as contas externas padecem com a erosão nas cotações das commodities; o parque industrial retraído e defasado tecnologicamente é acossado pela invasão dos importados.

A determinação central, porém, é a luta pelo poder.

A disputa eleitoral de 2014 comanda o relógio dos mercados.

Os ponteiros do capital buscam candidaturas ‘amigáveis’.

Não investir na ampliação da oferta, capaz de domar a inflação, faz parte da campanha. 

‘Culpa das incertezas’, justifica a mídia obsequiosa.

A mesma que encoraja a retranca aos investidores:

“Não façam agora o que poderá ser feito depois, lubrificado por ‘reformas desregulatórias’, caso a Dilma intervencionista seja derrotada”.

O BC endossa o cantochão.

Se não há investimento para atender a demanda, o equilíbrio virá pelo arrocho.

Pau nos juros.

A negociação do futuro não pode ficar restrita ao monólogo entre o mercado e o diretório do BC.

O saldo é mundialmente conhecido.

O falso ‘remédio’ agrava a doença e calcifica o recuo do investimento.

Tudo adornado pela guarnição sabida: angu de desemprego com caroço de atrofia fiscal. 

Perigosamente ilusória é a hipótese de curar essa indigestão com saltos nas grandes obras públicas. 

O Brasil já tem uma parte daquilo que as nações buscam desesperadamente (leia o artigo do economista Amir Khair, nesta pág.)

O singular trunfo brasileiro é o binômio ‘pleno emprego e demanda popular de massa’, parcialmente ancorado no Real ‘forte’.

Foi ele que protegeu o país da crise até agora.

Se não dilatar o espaço da política na condução da economia, o governo corre o risco de perder o que já tem, sem obter o que a ortodoxia lhe promete.

Ao contrário da Europa, o Brasil tem forças sociais organizadas; suas centrais sindicais e a inteligência progressista dispõem de propostas críveis e sensatas. 

Não foram desmoralizadas pela rendição ao neoliberalismo.

O governo construiu sólidas políticas sociais, ademais de estruturas de Estado para ampliá-las.

O conjunto permite à Presidenta Dilma negociar rumos e metas do desenvolvimento com a sociedade; bem como preservar seu mercado de massa com o reforço nas políticas sociais.

Acreditar que a ação do BC será suficiente para reordenar a economia no rumo dos investimentos é terceirizar o país à lógica conservadora, até agora restrita à exortação midiática. 

Política é economia concentrada.

O governo Dilma tem escolhas a fazer. E legitimidade para exercê-las.

É a hora.

Leia também:

Ivan Valente: Explicando a onda conservadora no Brasil

Roberto Amaral: O avanço solitário do pensamento conservador

 


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Comentários

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Samir

Ora, meu caro Leblon. Isso era esperado, a esquerda é ótima em destribuir riquezas que não gerou. Ela é incompetente para gerar capital, é uma questão doutrinária, ideológica. E, depois do caixa arrombado com tanta benesse cumpanhêra, o que acontece, invariavelmente?: a quebra do país.
Vai acontecer aqui, já aconteceu ali etc. Aliás, cumpanhêro Leblon, não adianta tapar o sol da inflação com a peneira furada da “impremça goupizta”, que tenta “desesperadamente estabilizar o desgoverno Dilma”. O mal já está feito. Foi a falta de visão do PT – principalmente de Lula, que nunca leu um livro na vida e não aceitava opiniões de quem os lêra, e muitos – que fez “ecepaiz”, que tinha tudo preparado pelo PSDB para dar o grande salto para frente, saltar agora.. para trás.

Dialética

Perfeito!

Dilma ignora o eleitor e dá passos arriscados. Vai ganhar outra eleição. Mas o povo do andar superbaixo não conseguirá apoiá-la caso ela mantenha a obediência atual ao mercado. Todos sofreremos um pouco no proximo ano e estaemos mais dispostos a criticar. Por que não coloca Amir Khair na Economia ou Fazenda?

Uélintom

Até onde vai a queda? Quando vão bater no fundo do poço? Quem estará no poder desses países amanhã? Ninguém sabe. Da Europa só sei uma coisa: a França, a Inglaterra, a Rússia, as ex-repúblicas soviéticas, todos estes tem armas nucleares. Se o Euro e a União Europeia explodirem, muitos outros explodem juntos.

Alemao

Belo folhetimde propaganda. A culpa é sempre dos outros, do sistema. Como só a Alemanha se mantém com a cabeça fora d’água na crise então ela é o lobo mau. Os países que não cuidaram de suas finanças são tratados como vítimas agora.

A questão da austeridade no momento da crise pode muito bem ser debatida sem ficar tentando tachar os outros pelos próprios problemas.

Não sei como ainda conseguem se orgulhar do desgoverno que a Dilma vem levando à frente. O BC teve até que aumentar os juros para tentar provar que o governo está cuidando da economia, ou seja, uma decisão puramente política apenas para evitar uma maior fuga de investimentos do país.

Querem o dinheiro dos capitalistas que não cansam de crucificar todos os dias. O teatro tem que acabar porque essa peça só dá bilheteria à turminha do barulho, enquanto o povo passa fome na rua.

    xacal

    O alemão é o melhor apelido melhor para um idiota.

    Sim, porque há os alemães idiotas que acham que são os “iluminados”, os faróis da Europa.

    Engraçado, imaginar que em um bloco, em um sistema, possa existir o sucesso de um, enquanto todo o resto afunda.

    É como se Frau Merkel, e todos os demais líderes europeus fossem trancados em uma sala, na chegada do inferno, e por um duto a sala enchesse de merda.
    Uma semana depois, o diabo abre uma escotilha, vê frau Merkel com merda “apenas” pela cintura, e pergunta:

    -Como pode frau Merkel?

    -Revezei-me nos ombros dos outros todo este tempo!

    Como o “idiota” pode dizer que os países não “cuidaram” de suas finanças?

    Ora, as assimetrias gigantescas na zona do Euro criaram a brutal desnacionalização das economias e de sua capacidade industrial (que na maioria dos países já era debilitada), onde a moeda única se transformou em uma armadilha, na medida que irrigou as economias mais frágeis, que trocavam algum possível dinamismo de suas economias pela desregulamentação de seus mercados.

    Enquanto isto, as bancas manipulavam todas as taxas e índices, como a Eurolibor, e as taxas de risco de alavancagem imobiliária e de outros ativos.

    Claro, só os idiotas como o alemão que imaginam que nestes países todos sofrem da mesma forma…Qual nada, ali, como em todas as regiões do planeta, alguns setores lucram(e muito) com a miséria e morte alheias!

    Resultado: quebradeira generalizada. E ainda tem gente a defender que só a Alemanha “cuidou” de sua economia.

    Sobre o Brasil, é bom o débil mental dar uma olhada na curva de IED (investimento estrangeiro direto), e rever a asneira que disse: não há nenhuma fuga de investimento de longo prazo!

    Nosso problema é o déficit de contas correntes, com a falta de produtividade com cenário de pressão de demanda, associado com a chantagem permanente dos cafetões do câmbio e dos juros fazem todos os dias!

    Nada que uma boa alíquota sobre o mercado de câmbio (nas saídas) não resolva.

    Mas não precisará chegar a tanto. Em breve as coisa voltam aos seus lugares, basta um aceno mais grave do governo contra esta onda especulativa!

    Mecanismos para tanto não falta.

    Sobre a frase cretina no final (“o povo passa fome nas ruas”), não dá nem para debater…

    Esta turma do mendonção e do loyola não se emenda…

    Dialética

    Caro Alemão,

    Procure ver – e entender o balanço do BNDS em uma década.

    O dinheiro vai dos pobres para o banco e depois para os capitalistas.
    O dinheiro nunca vai dos capitalistas para o governo. Como voce deve ler na Veja….

Fabio Passos

A esquerda que abdica de enfrentar a burguesia… acaba se misturando com ela.
No fim a populacao tem dificuldade em distinguir um do outro.

Marco

Sr.Saul à que esquerda que o sr. se refere?àquela que acreditava ser o revisionismo soviético,socialista?Ou a outra,que crê que os partidos socialistas e trabalhistas europeus sejam algo semelhante ao socialismo científico,pelo menos pra aqueles que o fundaram no século 19?Quanto a restauração conservadora,carece de alternativas econômicas para sua restauração,já que estão sacrificando em favor do agiotismo internacional,sua mais preciosa fonte de apoio e inspiração,que é a pequena burguesia.Todavia,me somo às suas preocupações mas me parece que o diabo está solto e não tem pra onde ir.Um abraço e parabéns pelo artigo.

    Samir

    Posso responder a esta pergunta. É assim: se a esquerda deu errado, não funcionou, pode ter gerado a ruína do país (mínimo) ou milhares/milhões de mortos (o normal) não era a “verdadeira” esquerda – era um subproduto do capitalismo travestido de esquerda; já se o sistema funcionou – e isso é como a cabeça de bacalhau e enterro de anão – esta sim é a “verdadeira” esquerda. É simples.

Guanabara

“Não investir na ampliação da oferta, capaz de domar a inflação, faz parte da campanha. 

‘Culpa das incertezas’, justifica a mídia obsequiosa.”

Esse é o xis da questão. Aqui que faltou peito pra Dilma. Esse, sim, é o caminho. Controla-se a inflação por aumento de oferta e, de preferência, quebrando monopólios, com juros baixos para financiar esse aumento de oferta. Seria a livre concorrência controlando os preços sob a “mão invisível”. Daí a gente vê que esses empresários não querem liberalismo. Querem monopólios para ditar os preços sem qualquer intervenção do Estado. Por mim, com relação a produção de alimentos, já que “a iniciativa privada” não toma iniciativa em produzir alimentos do dia a dia, o governo o faria, criando uma estatal. Seria lindo ver o rebuliço das Kátia Abreu’s da vida ao ver o Estado exercendo o seu papel e atrapalhando a louca acumulação de capital dela’s e de seus pares com os Casoy’s se estrebuchando na TV, enquanto o que queriam mesmo, era fazer vista grossa a degradação da população.

    Samir

    O PT, depois da Carta aos Brasileiros, se tornou um partido de direita, com uma fantasia vermelha.

J Souza

Alguém pode me explicar o aparente paradoxo de austeridade baseada em aumento de juros e diminuição de impostos?
Pelo que eu entendo, se aumentam os juros, aumentam a dívida.
E se diminuem os impostos, menos dinheiro se tem para pagar a dívida.
Afinal de contas, o que os “arrochistas” querem é o pagamento da dívida ou a perpetuação da dívida?

Fabio Passos

A esquerda nao pode abdicar de sua tarefa historica: Construir uma sociedade sem classes.
Se na crise, nao ha via para evoluir… o risco de retrocesso e muito alto.

O Brasil tem uma situacao privilegiada para ousar e romper com as oligarquias financeiras que governam o mundo.
Temos riquezas naturais fabulosas e um povo criativo e trabalhador.

A nossa fraqueza e a pior “elite” do mundo.
Ja passou da hora de implodir a casa-grande.

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