Túlio Muniz: A mídia pode cair na armadilha de suas próprias mentiras

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Condenada a Lula: a mídia armadilhada

por Túlio Muniz*

Posterior à condenação questionável — pra dizer o mínimo — de Lula pelo Tribunal Regional Federal 4ª Região, inaugura-se uma nova fase imprevista pelos controladores da mídia golpista brasileira.

Se até aqui o martelar de acusações contra Lula se baseou na concepção nazi-facista de que “uma mentira repetida mil vezes se tornará verdade”, a mídia pode ter se armadilhado no viés dessa mesma concepção: a “verdade” resultante das “mentiras”, ou seja, da falta de provas concretas, necessitará de tal atenção e repercussão que pode vir a desconstruir a si mesma, revelando-se enquanto farsa.

Até as vésperas do julgamento de 24 de janeiro, a mídia tratava Lula e seus passos como nota de rodapé.

Invisibilizou, por exemplo, as jornadas que ele empreendeu por todo o país no segundo semestre de 2017, arregimentando multidões por onde passou.

Somente nos dias que antecederam ao julgamento, Lula voltou à berlinda midiática.

Aqui é pertinente o aforisma de Nietzsche, em Humano, desmasiado Humano acerca da mentira:

“Porque é que, na maior parte das vezes, os homens na vida quotidiana dizem a verdade? Certamente, não porque um deus proibiu mentir. Mas sim, em primeiro lugar, porque é mais cómodo, pois a mentira exige invenção, dissimulação e memória. Por isso Swift diz: ‘Quem conta uma mentira raramente se apercebe do pesado fardo que toma sobre si; é que, para manter uma mentira, tem de inventar outras vinte’. Em seguida, porque, em circunstâncias simples, é vantajoso dizer diretamente: quero isto, fiz aquilo, e outras coisas parecidas; portanto, porque a via da obrigação e da autoridade é mais segura que a do ardil. Se uma criança, porém, tiver sido educada em circunstâncias domésticas complicadas, então maneja a mentira com a mesma naturalidade e diz, involuntariamente, sempre aquilo que corresponde ao seu interesse; um sentido da verdade, uma repugnância ante a mentira em si, são-lhe completamente estranhos e inacessíveis, e, portanto, ela mente com toda a inocência”.

Doravante, para a mídia conservadora brasileira, estreitou-se a possibilidade de ignorar a Lula, aos seus passos e palavras.

Não mais se poderá invocar o manto da ‘imparcialidade’, da ‘inocência’ nas abordagens jornalísticas do tema que permeia as ruas, os escritórios, a mídia.

Livre ou preso, vivo ou morto, o espectro de Lula será o tema central e incontornável.

Isso se estenderá pelo menos até as eleições de 2018 – se ocorrerem.

Qualquer gesto de Lula repercutirá na chamada “opinião pública”, queira ou não a mídia, e deixar de falar dele será inevitável.

Foucault e Habermans contribuem para compreender como a, partir do séc. XVIII, a “opinião pública” emerge do conflito do mercantilismo e do absolutismo com os interesses privados da burguesia capitalista ascendente, criando a “ficção de uma esfera pública” (Habermas, em Mudança Estrutural da Esfera Pública).

Essa ‘esfera pública’ ficcional seria, supostamente, a defensora de interesses ‘gerais’ da população.

É esse o mesmo mecanismo utilizado hoje pelos controladores do capital e da mídia nacional, que até aqui sustentam a versão de que Lula e o PT são os únicos responsáveis pelas mazelas do país e, portanto, inimigos de toda a sociedade.

Foucault (em Microfísica do Poder), por sua vez destacará que a suposta unanimidade oriunda da “opinião pública” é o que respalda e sustenta os meios de governação de uma maioria por uma minoria.

Assim, abduzida pelo ódio ao “inimigo comum” (Lula, PT, etc), a sociedade brasileira atualmente se mantém resignada diante da expropriação de recursos minerais e naturais, da evasão de divisas, da disparidade entre concentração de renda e aumento da pobreza, da permanência no poder de uma casta política vinculada aos interesses capitalistas nacionais e estrangeiros.

Essa versão hegemônica da realidade, cujos discursos se embasam numa suposta “vontade geral” (Foucault) de reformar o Estado no sentido de dilapidá-lo, é ecoada pela mídia, e foi incorporada tanto pela classe média brasileira quanto por estratos sociais não inseridos nas estruturas organizadas de movimentos sociais, ou seja, pelos mais pobres que, paradoxalmente, foram os que mais ascenderam com os governos petistas.

Contudo, esgotado o arsenal de ‘vinte mentiras’ contra Lula, impõe-se a questão: como por em xeque a supremacia da “opinião pública” imposta pela mídia em nome de interesses capitalistas internacionais que mantém vínculos com o sistema de dominação social e econômico das castas brasileiras abonadas?

Castas, sim, é o termo apropriado para designar a luta de classes no Brasil – e editorial recente do Le Monde não hesitou em usar o termo –, marcada pelo racismo, pelo sexismo, pelo ideal do patriarcado branco.

Entretanto, a mídia, tal qual o capitalismo, por vezes já se demonstrou capaz de criar hiper-realidades que possibilitam surgimento de alternativas a suas próprias auto-sabotagens.

Não haverá um aniquilamento da mídia hegemônica por si mesma.

Se há algum sentido no que aqui se afirma, será preciso ações rápidas e diversificadas que embaralhem e confinem a mídia no labirinto por ela mesma criado com a perseguição a Lula.

É raro no telejornalismo, hoje, o contraponto à opinião pública hegemônica que legitima a estratégia de poder estatal. Quando há, se restringe na atuação de poucos profissionais que ainda preservam seu direito ao contraditório.

A questão é ampla, merece análise aprofundada que não cabe nesta curta reflexão. Passaria, por exemplo, pela crítica aos próprios governos do PT, que fortaleceram a mídia dominante com fartos recursos de publicidade, em detrimento de mídias alternativas, sobretudo das mídias eletrônicas.

Alguns caminhos podem ser indicados:

— A urgência da necessidade da união das esquerdas e da centro-esquerda, ora fragmentados. Está em curso um debate acerca tanto das necessidades quanto das dificuldades dessa união, no que um artigo recente de Boaventura Santos é emblemático. Somente essa união pode gerar argumentos fortes para combater a opinião pública hegemônica que aí está. Para tanto, cabe ao PT abandonar discursos e posturas dúbias e cabe aos demais atores políticos se desarmarem de dogmas e crenças. Seria interessante que todos mirassem para Portugal, onde o Partido Socialista governa já há dois anos com apoio críticos dos demais partidos de esquerda, o Bloco de Esquerda e a coligação do Partido Comunista com os Verdes.

— Igualmente, se faz urgente uma maior aproximação de atores progressistas da chamada blogosfera. A última década assistiu a uma proliferação de blogs e sites pessoais ou coletivos no campo progressista. Estes tiveram apoio financeiro mínimo dos governos do PT – os quais eram defendidos ou contavam com apoio crítico desses ativistas – em comparação ao carreamento de recursos públicos à grande mídia. A blogosfera progressiva compete entre si na captação de apoio de leitores e adeptos para se manter na ativa. Seu fortalecimento se faz necessário por ser a alternativa de mídia eletrônica à TV, ainda que desta esteja longe de obter o mesmo alcance junto à parcela massiva da população. E, sobremaneira, por ser a blogosfera progressista o combatente de primeira linha das tais ‘fake news’ que têm origem nos think tanks a serviço dos conglomerados capitalistas mundiais.

— Por fim, é preciso que artistas e intelectuais engajados na defesa da nossa “frágil democracia” (cf. Boaventura Santos) mantenham suas inserções nos mídia para denunciar a pseudo imparcialidade dos mesmos, como fizeram recentemente, ao vivo, por exemplo, a filósofa Márcia Tiburi, ao abandonar um programa de rádio de emissora em Porto Alegre que a colocaria em conversação imprevista com um expoente da juventude fascista brasileira, ou o ator Pedro Cardoso, que retirou-se do estúdio da TV Brasil em meio a um debate, para se solidarizar com os funcionários em greve da emissora. Aumenta também a presença de artistas em atos públicos pela democracia e contra o golpe de 2016, artistas, cantoras, músicos, atrizes e atores que demonstram, como afirmou Guattari, em As Três Ecologias, que “ninguém está dispensado de jogar o jogo da ecologia do imaginário” nesses tempos

*Historiador e Doutor em Sociologia/Pós Colonialismos e Cidadania Global pela Universidade de Coimbra. Professor na Universidade Federal de Uberlândia

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