Confissões de um torturador
Comentário sobre o livro recém-lançado de Cleidi Pereira
Por Ivan Seixas*, em A Terra é Redonda
1.
A jornalista gaúcha Cleidi Pereira lançou recentemente um livro muito interessante. Baseado numa entrevista que fez para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, o livro reproduz extensamente o que ela conseguiu tirar de conteúdo do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um público e notório torturador.
A capa do livro tem uma bela e forte ilustração de Artur Machado Scavone, uma das vítimas de torturas desse militar, conhecido à época pela alcunha de “Doutor Tibiriçá” ou simplesmente “Major”, patente que tinha nesse tempo.
No prefácio de Jair Krischke, o advogado, pesquisador e maior especialista em Operação Condor do país, Brilhante Ustra é definido como o “símbolo da ditadura militar”, por tudo que representa ser símbolo de um regime que sequestrou, torturou, matou pessoas e desapareceu com seus corpos. A definição é perfeita.
Muito mais do que falar de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o livro mostra a verdadeira face do exército brasileiro, com tudo o que há de piores características históricas dessa corporação militar.
O torturador mente, escamoteia e cria uma realidade conveniente à suas mentiras.
Todas as acusações feitas a ele, inclusive as que levaram à sua condenação declaratória de que é um torturador, ele rebate apenas com uma frase afirmando que não passa de jogo de inimigos interessados em dinheiro ou alguma outra bobagem do gênero. E, para afirmar sua generosidade e bom tratamento aos presos e presas, ele conta estórias absolutamente irreais.
Sobre o sequestro dos filhos da presa política Amelinha Teles e Cesar Teles, Brilhante Ustra tem a coragem de dizer que a mãe pediu que ele levasse as crianças para a casa de uma de suas agentes. E que a presa ainda lhe disse candidamente: “Ah, mas que coisa boa, faça isso, não sei o que, eles podem ficar lá”.
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Não bastando essa mentira absurdamente irreal, ele ainda diz que a presa lhe agradeceu muito por colocar as crianças na casa de uma de suas agentes, uma policial militar. E reclama que Amelinha Teles depois disse no processo que “eu torturava as crianças”.
2.
Sobre a ocultação de cadáveres de presos políticos, afirma que não sabia qual o nome verdadeiro da pessoa. Segundo ele, os documentos da pessoa eram verdadeiros, tirados num cartório de interior do país. Se enrola na versão e diz que publicava a notícia com o nome verdadeiro, mas que não podia enterrar com esse nome por ter um documento de um cartório.
A explicação do motivo para as suas vítimas o processarem é a mais simplista e absurda possível.
Segundo ele, “Ó, minha filha! A ideologia comunista, minha filha. Revanchismo é a raiva de terem perdido a guerra, essa raiva de não terem podido implantar o comunismo aqui. Eles querem de qualquer jeito… E também dinheiro”.
Se sentindo à vontade para mentir, acaba por escorregar e confessar alguns crimes, mesmo que de forma indireta.
Quando perguntado sobre os métodos e instrumentos de tortura, ele derrapa feio. Confessa que forçava os presos a longos períodos sem dormir, que é classificado pelas Convenções de Genebra e pela ONU como tortura.
Quando perguntado sobre se usava “Soro da verdade, pau de arara”, ele responde que “Soro da verdade? Eu nunca dei soro da verdade, isso aí não”. A resposta tem duplo sentido, pois esquece sobre o pau de arara e ele diz que nunca aplicou o soro da verdade.
Se as vítimas mentem, suas respostas sobre as acusações feitas por seus próprios agentes são uma demonstração de que ele mente sem nenhuma cerimônia. Diz que não lembra de um escrivão, para logo a seguir dizer que pela fotografia mostrada “Mudou, está velho. Não me lembro de jeito nenhum”.
Quando confrontado com as declarações e revelações do ex-sargento Marival Chaves, Brilhante Ustra diz que “Esse cara, eu não sei o que aconteceu com ele. Não sei”, para logo a seguir se desmentir dizendo que “Não vou dizer porque eu sei o que aconteceu com ele, mas não posso dizer. Eu sei por que ele está fazendo isso, mas eu não posso falar, não posso dizer por que eu não tenho provas. Mas eu sei que aconteceu, porque ele está fazendo isso”.
A seguir faz uma acusação séria sem provas. “Porque me consta que ele foi comprado. Me consta que ele foi pago, que ele recebeu grana, dinheiro para fazer isso”.
A explicação para o golpe de 1964 e a implantação da ditadura é quase uma história infantil.
Segundo ele, “Agora veio essa história ‘ah, não. Eles começaram a lutar porque havia ditadura’. Não foi. Não foi isso não”. Para ele, “Houve, houve a contrarrevolução”. E coloca a culpa nos jornais, congresso e os aliados da ditadura, “Castelo Branco assumiu e queria vedar só o restinho do mandato do João Goulart. Aí os jornais, o Congresso e tudo achou que era muito pouco, deu mais um prazo para ele”.
O assalto ao poder e aos cofres públicos não importa, importa apenas a vontade de Castelo Branco de não deixar o presidente João Goulart terminar seu mandato.
3.
O anticomunismo de Brilhante Ustra, que justifica seus crimes, é explicado de uma forma aparentemente ingênua. Conta ele que seu tio e seu pai fizeram parte da Coluna Prestes, “porque eles lutavam por um ideal (o tenentismo), que não era o comunismo”.
E, para ele passar a ser um anticomunista ativo e implacável, a justificativa é que seu pai “quando ele viu que estavam lutando atrás de um homem que virou comunista, meu pai ficou revoltado, e me contava, falava do comunismo, falava de 1935, falava de que tinham matado os militares que estavam dormindo”.
Um exercício de futurologia e pulos históricos, misturando a fantasia com as lições de anticomunismo aprendido nas escolas militares, que repetem a historinha de que o Levante comunista de 1935 foi uma covardia e que os comunistas mataram seus colegas de farda quando ainda dormiam.
Nesse ponto, Brilhante Ustra mostra que ele é a cara do exército brasileiro. E que suas alegações são o que ele aprendeu nas escolas militares, como Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO), que ensinam que as forças armadas são tutores da República, que os militares têm a tarefa de defender o capitalismo e o cristianismo.
Ensinamentos do General Golbery do Couto e Silva, criador da Escola Superior de Guerra (ESG), junto com oficiais do exército dos EUA, amplamente difundidos nas escolas militares do Brasil. Forma lá oficiais anticomunistas e golpistas.
O fato de Brilhante Ustra se defender utilizando mentiras é uma característica do exército nacional, que deu um golpe de Estado para implantar a República mentindo que o imperador Pedro II iria prender os Marechais Deodoro e Floriano Peixoto, além de Olavo Bilac e outros civis positivistas.
Depois virou rotina o uso de mentiras na atuação dos fardados brasileiros. Foi assim com o golpe de implantação da chamada Revolução de 1930, do golpe para a implantação da ditadura do Estado Novo, quando utilizaram a mentira do tal Plano Cohen.
Para derrubar Getúlio Vargas, inventaram que o país estava à beira do abismo econômico, que havia o perigo comunista e que estava atolado num “Mar de lama” da corrupção.
Por causa disso, criaram a ilegal “República do Galeão”, usurpando o poder judiciário de suas atribuições, e forçaram a renúncia do presidente trabalhista, que preferiu dar um tiro no coração e assim cortar a trajetória para o golpe de Estado.
Isso atrasou os planos de implantação de uma ditadura em dez anos, que se realizou em 1964, com outra campanha de mentiras, utilizando a mesma trinca de mentiras (economia em frangalhos, perigo comunista e corrupção) para destruir a democracia que o país tinha.
Ao depor perante a Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, Brilhante Ustra falou apenas uma verdade. “Quem deveria estar nesta cadeira sendo interrogado era o exército brasileiro. Tudo o que eu fiz, foi cumprindo ordens do exército brasileiro”.
Em outras palavras, as torturas, assassinatos e desaparecimentos foram uma política da ditadura, comandada pelo exército brasileiro, corporação que formou, orientou e mandou Carlos Alberto Brilhante Ustra fazer.
Ainda assim, isso não diminui em nada a responsabilidade do “Major”, do “Doutor Tibiriçá”, nomes usados por ele quando dirigiu o Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do II Exército, em São Paulo, que era definido por Ustra e seus agentes como “a sucursal do inferno”, onde “o filho chora e a mãe não vê”.
Nesse lugar tenebroso, Brilhante Ustra foi morar com dona Joseíta e sua filha Patrícia, que brincava no pátio por onde passavam presos arrebentados pelas torturas, que eram ouvidas no quarteirão inteiro da rua Tutóia, em São Paulo.
*Ivan Seixas é jornalista e escritor. Preso político aos 16 anos, foi coordenador da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo e assessor especial da Comissão Nacional da Verdade.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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