Flávio Aguiar: O fantasma da crise bate à porta

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Duas ilusões – a de que a Alemanha pode se tornar uma ilha de prosperidade num oceano europeu de pobreza e a crença de que isso se deveria à “temperança” alemã – sofreram um duro golpe recentemente, o que ajuda a entender a pressão do governo alemão e do BC Europeu em equacionar a situação bancária na Espanha.

por Flávio Aguiar, em Carta Maior

Além de ser uma nação onde predomina um forte pragmatismo em todas as áreas (que convive com um forte romantismo historicamente recalcado), a Alemanha também é uma terra povoada por fantasmas e ilusões (como qualquer outra, aliás).

Por exemplo: um fantasma perene na Alemanha chama-se “Inflação”. Existe uma espécie de automatismo na memória histórica alemã, que une “inflação” e “nazismo”. A todo momento borbulham na mídia referências mais ou menos veladas à inflação do período da República de Weimar, como uma das principais causas que levaram à ascensão avassaladora do antes pequeno Partido Nacional Socialista liderado por Adolf Hitler.

Esse fantasma recobre um outro, que passa inadvertido. É o da lembrança – quase sempre esquecida – de que o forte período hiperinflacionário cedeu espaço para um novo equilíbrio a partir de 1923, e este levou a uma espécie de “golden age” entre este ano e 1930, quando os efeitos da crise norte-americana e internacional de 1929 começaram a devastar novamente a economia alemã. E que exatamente aí sucedeu-se uma tentativa de reequilibrar a economia através de uma radical “política de austeridade”.

Dois políticos conservadores aplicaram sucessivamente essa política: Heinrich Brüning e Franz von Papen. Nesse período os investimentos públicos foram radicalmente cortados, a contribuição pública para fundos de pensão e desemprego foi zerada, o que aumentou os descontos em folha para os trabalhadores e diminuiu-lhes o seguro desemprego e outros beneficios sociais. Mais ou menos como se está tentando aplicar hoje à Europa inteira. Tudo isso, tanto lá como hoje, era e é baseado na crença (para muitos economistas, inclusive liberais, supersticiosa) de que a diminuição das despesas públicas estimularia o reerguimento econômico através dos mercados.

Passando às ilusões, duas são particularmente importantes hoje. A primeira é a de que a Alemanha pode se tornar uma ilha de prosperidade num oceano europeu de pobreza crescente. A segunda é a de que a realização da primeira dever-se-á necessariamente ao fato de que a Alemanha é uma ilha de temperança num oceano (particularmente nos mares do sul europeu…) de perdulários e gastadores dos fundos públicos.

Pois ambas as ilusões sofreram um duro golpe recentemente – o que ajuda a entender a pressa que tomou conta do governo alemão e do Banco Central Europeu (onde o peso maior é do Banco Central Alemão, o Bundesbank) em equacionar a situação bancária da Espanha, nova ovelha no aprisco das ajudas financeiras, com 100 bilhões de euros para a sua banca em condições mais favoráveis do que aquelas oferecidas a Irlanda, Grécia e Portugal (que certamente vão chiar por causa disso).

O que aconteceu? Os índices de abril mostraram que, pela primeira vez desde 2010 as exportações alemãs sofreram uma queda significativa. Em relação a março, as exportações de abril recuaram em 1,7 % no total – 3,6% na Zona do Euro. Importante: a queda foi mais do que o dobro do que a maioria dos economistas (provavelmente ainda embalados pela relativa “imunidade” alemã) previa.

As exportações alemãs para países não europeus continuaram crescendo (esses dados são da Agência Federal de Estatísticas, um IBGE daqui): 10,3%. Ocorre que as exportações para a União Européia são 42% do total. E o continente – a Zona do Euro em particular – está em crise recessiva – por causa dos decantados “planos de austeridade”.

Em 2011 a Alemanha exportou 34,86 bilhões de euros para a Espanha, ou seja, 8,28% de suas exportações para a Zona do Euro (total: 420,9 bi) e 5,5% de suas exportações para a União Européia (total: 627,3 bi).

O mercado interno também sofreu abalos, e as importações sofreram uma queda de 4,8% naquele mês. O DAX – índice da bolsa alemã (equivalente ao BOVESPA em S. Paulo) oscilou para baixo na semana que passou. Ou seja, se o fantasma da hiperinflação (com as contínuas ameaças proferidas pelos sabichões ortodoxos de que o aumento do gasto público a trará de volta) continua entronizado no altar das referências alemãs, o fantasma da crise bateu pelo menos à janela, estremecendo aquelas ilusões caras à ortodoxia.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

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Roberto Locatelli

É hora de aprofundar a união sul-americana. Nosso continente é mais forte do que o Europeu. Temos alimentos, petróleo e minério.

No entanto, para que essa união seja durável, é preciso que o capitalismo seja superado no Continente. Isso pode estar mais perto do que imaginamos. A decrepitude do capitalismo regido pelos bancos acabará acelerando os acontecimentos.

Maurício Caleiro: A falência da Espanha e seus disfarces « Viomundo – O que você não vê na mídia

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Francisco

O Brasil é praticamente uma europa ocidental de mercado, extensão e recursos. Não é uma europa ocidental de consumo, mas somos uma Itália de consumo – o que não é pouca coisa.

Fundamental é que nosso “euro” é coeso. O que vivermos só depende de nós.

Só começa a me preocupar um pouco é a nossa “doença holandesa”. Ela (ainda) não veio do petróleo, mas da produção de alimentos. É preciso estar atento a isso. No mais, sinceramente, pior estão eles: comida e combustivel – tá ruim?

RicardãoCarioca

A coisa só vem piorando.

Antes, diziam que havia uma chance do Euro acabar.

Agora, estão dizendo que há uma chance do Euro continuar!

pperez

Na Grecia O “Fantasma” já mandou seu cartão de visitas na TV embulachando uma parlamentar em entrevista ao vivo e a cores!
Para isso se alastrar numa Europa inflamada, não custa nada!

Marcelo de Matos

O economista José Serra comparou a zona do euro aos “Estados Unidos do Brasil”. Foi advertido pelo entrevistador Boris Casoy de que esse não era mais o nome do país, mas, República Federativa do Brasil. A ideia de Serra, porém, parece estar correta. A zona do euro criou a moeda única, mas, os países dessa zona são politicamente independentes. A unidade de moeda só daria certo se houvesse unidade política. Pode ser. A Inglaterra, sempre esperta ao longo da História, ficou de fora. Os ingleses viam com bons olhos as investidas de Napoleão contra as monarquias euroasiáticas, que representavam a consumação da revolução burguesa. Ficaram equidistantes, porém, até que Napoleão se voltasse contra eles. A crise da zona do euro poderá deixar a Alemanha mais pobre e a Inglaterra em melhor situação. Não sei se o euro resistirá às crises da Espanha e Itália, que poderão provocar o tal efeito dominó.

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