Carlos Cleto: Mesmo com os soldados de Hitler já em Paris, Drummond anteviu “Havemos de amanhecer”. Nós também podemos

Tempo de leitura: 3 min
Drummond (então com 38 anos), soldados de Hitler marcham em Paris (1940) e os corpos expostos de Benito Mussolini, sua companheira Claretta Petacci e de outros fascistas fuzilados em Milão, em 29 de Abril de 1945, na Piazzale Loreto. Um ano antes, nessa mesma praça, 15 civis milaneses haviam sido executados por suas atividades de resistência. Foto de Vincenzo Carrese.

Por Conceição Lemes

Quem é leitor assíduo do Viomundo provavelmente já leu algum dos muitos artigos de Carlos Cleto que já publicamos.

Por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui

Cleto é advogado e historiador.

Já foi líder estudantil e dirigente sindical.

Inteligente, bem informado, é um ponto fora da curva.

Essa trajetória faz com que, nesses tempos sombrios, amigos e amigas busquem ouvi-lo para tentar entender melhor o que está acontecendo.

Eu mesma conheço duas amigas que frequentemente trocam mensagens com Cleto sobre a situação do Brasil.

Dá gosto ler as observações dele. São sempre enriquecedoras.

Diante disso, decidimos pedir autorização para reproduzi-las.

Ele concordou.

A partir hoje começamos a publicar uma série de cartas que Carlos Cleto tem enviado a amigas e amigos.

À medida que forem sendo publicadas certamente os leitores nos darão razão.

“Querida amiga,

Você me diz: Parece que tô andando com roupa de chumbo

Para você, e tantos outros com esse mesmo sentimento, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o Poeta Maior, legou “A Noite Dissolve os Homens”. Um pungente adagio de desespero seguido por um andante de esperança.

A Portinari

A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.

A noite caiu. Tremenda,
sem esperança… Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio…
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio…
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.

Nota de rodapé do poema, escrita pelo próprio Drummond: “A noite anoiteceu tudo… O mundo não tem remédio… Os suicidas tinham razão”.

E, em fevereiro de 1942, o escritor Stefan Zweig não esperou pela aurora, matou-se em Petropólis, desesperado com os avanços do Eixo.

Para você, e para todos que não suportam mais tanto horror, a Esperança de “Aurora, (…) O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos (…) Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as tintas da antemanhã e o sangue que escorre é doce, de tão necessário para colorir tuas pálidas faces, aurora“.

“A Noite Dissolve os Homens” pertence ao livro “Sentimento do Mundo”, de 1940. Foi escrito após a Queda de Paris.

Mesmo com as botas nazistas conspurcando o chão de quase toda Europa, Drummond ainda pôde antever que “Havemos de amanhecer”. Nós também podemos.

Beijos,

Cleto

PS. Eu sou só bibliotecário. As honras são do sujeito que escreveu esse poema e ainda teve a coragem de publicar em plena Ditadura do Estado Novo, Drummond, o Poeta Maior”.

Leia também:

Carlos Cleto: Como foi que tudo deu errado no Brasil?!


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Comentários

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Zé Maria

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Esse Poema Histórico do Drummond
é tão ou mais Marcante do que este
do Brecht:
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AOS QUE VIRÃO DEPOIS DE NÓS
(Bertolt Brecht)

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez,
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri
É porque ainda não recebeu a terrível notícia.
Que tempos são esses,
Quando falar sobre flores é quase um crime,
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?

Aquele que cruza tranqüilamente a rua
Já está então inacessível aos amigos
Que se encontram necessitados?
É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso.
Nada do que eu faço
Dá-me o direito de comer
Quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa, estou perdido!)

Dizem-me: “Come e bebe! Fica feliz por teres o que tens!”
Mas como é que posso comer e beber,
Se a comida que eu como,
Eu tiro de quem tem fome?
Se o copo de água que eu bebo,
Faz falta a quem tem sede?
Mas, apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.

Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
E sem medo passar o tempo
Que se tem para viver na Terra;
Seguir seu caminho sem violência,
Pagar o mal com o bem,
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.

É verdade, eu vivo em tempos sombrios…

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
Quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens
No tempo da revolta
E me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a terra.

Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
Deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
E não tive paciência com a Natureza.
Assim se passou o tempo
Que me foi dado viver sobre a Terra.

Vocês, que vão emergir das ondas em que nós perecemos,
Pensem, quando falarem das nossas fraquezas,
Nos tempos sombrios de que tiveram a sorte de escapar.

Nós existíamos através da luta de classes,
Mudando mais seguidamente de governos que de sapatos,
Desesperados!
Quando só havia injustiça e não havia revolta.

Nós sabemos:
O ódio contra a baixeza
Também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
Faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós, que queríamos preparar
O caminho para a amizade,
Não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.

Mas vocês, quando chegar o tempo
Em que o humano seja amigo do humano,
Pensem em nós com um pouco de compreensão.
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Fascistas Bolsonaristas
NÃO PASSARÃO!
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