por Luiz Carlos Azenha
Já escrevi anteriormente a respeito deste assunto.
Volto ao tema para dar um segundo exemplo. Reproduzo o trecho final de uma carta (íntegra aqui) do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) à presidente Dilma Rousseff:
“Confio na Vossa sensibilidade de chefe da Nação para arbitrar com equilíbrio e espírito humanitário a necessidade de combinar preservação ambiental e interesses da agricultura e do povo brasileiro. ONGs internacionais para cá despachadas pelos países ricos e sua agricultura subsidiada pressionam para decidir os rumos do nosso País. Eles já quebraram a agricultura africana e mexicana, com as consequências sociais visíveis. Não podemos permitir que o mesmo aconteça no Brasil. Termino relembrando o Padre Vieira quando alertou em um dos seus sermões: “Não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar nossos bens”.
Aldo Rebelo é relator de um projeto que terá profundo impacto político e econômico no Brasil. Não apenas por isso, tem obrigação de ser didático com os eleitores e os contribuintes. E deve dar nomes aos bois.
Quais países ricos despacharam quais ONGs para o Brasil? Quem são “eles”, que quebraram a agricultura africana e mexicana? As ONGs? Os governos de países ricos? Uma aliança entre eles?
Quanto ao México, o leitor Leider Lincoln notou, em comentário: Eu jurava que quem “quebrou” a agricultura mexicana foram os subsídios dos EUA e a entrada irresponsável do país no NAFTA.
Talvez o deputado saiba mais que a gente sobre o papel que o Greenpeace, o WWF e outras entidades ambientalistas tiveram para forçar o México a fazer um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, que permitiu aos norte-americanos inundar o mercado mexicano com milho subsidiado, por exemplo.
Com certeza, não foi legislação ambiental imposta “de fora” que quebrou a agricultura mexicana, que é do que trata a carta de Aldo Rebelo.
Mas o pior está na menção à agricultura “africana”.
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Qual África? Egito? Marrocos? Guiné? Botsuana? África do Sul?
Aqui, Aldo Rebelo comete um erro comum, o da simplificação sobre a enorme diversidade da África.
Não existe, por assim dizer, “agricultura africana”.
Falo a partir das viagens que fiz ao Quênia, Marrocos, Gana, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, África do Sul, Botsuana e Namíbia.
O único esforço conjunto, de matriz ocidental, que existiu em relação à agricultura africana, foi a chamada “revolução verde”, que ideologicamente muito se aproxima do modelo defendido por aliados de Aldo Rebelo para o Brasil: a priorização da produção de commodities na África, naquele caso com o objetivo de financiar os ajustes estruturais que, ao fim e ao cabo, enfraqueceram ainda mais os já frágeis estados africanos.
Se quiserem encontrar os responsáveis, seria melhor procurar no FMI e no Banco Mundial.
A produção de commodities para exportação em vários paises africanos encontrou forte resistência de ambientalistas locais, estes sim muitas vezes aliados a ambientalistas estrangeiros.
Tinha relação com duas questões principais: o avanço sobre terras comunitárias (isso mesmo, em vários países africanos subsiste a propriedade da terra por comunidades, que a utilizam para plantio de subsistência) e o fato de que era politicamente insustentável promover a exportação agrícola em países onde a população corria sérios riscos de insegurança alimentar.
Como justificar o uso das terras do Quênia para produzir chá tipo exportação se isso for feito às custas da produção local de alimentos?
Seja como for, a África é extremamente diversa para que se fale em “agricultura africana”.
O processo de colonização colocou as melhores terras do continente em mãos de europeus ou descendentes de europeus. Isso pouco mudou, mesmo depois da descolonização, a não ser no Zimbábue, por exemplo, onde Robert Mugabe fez uma reforma agrária que redistribuiu terras para seus asseclas e/ou apoiadores políticos.
O agronegócio é forte na África do Sul, onde a grande maioria das terras continua na mão dos brancos, e no Quênia. O avanço é desigual por uma série de circunstâncias: falta de financiamento, falta de insumos, precariedade da infraestrutura de transporte e armazenamento e resistência local a mudanças na propriedade da terra. O continente tem mais de um bilhão de habitantes e a grande maioria deles sobrevive graças ao acesso às terras, individual ou comunitário.
Grosseiramente, sem medo de errar, podemos dizer que os ambientalistas, como Wangari Maathai — a queniana que é Nobel da Paz — se colocam ao lado da produção de alimentos para abastecer o mercado interno, contra os interesses da monocultura extensiva e exportadora. E a ela se juntam, sim, muitas ONGs internacionais.
Em Gana, onde a Embrapa tem um trabalho de cooperação, a proposta brasileira é a de equilibrar o agronegócio com a agricultura familiar, nos mesmos moldes do que temos por aqui.
Não apenas gerar renda para os empresários do campo, mas também para quem vive no campo.
De qualquer forma, se existe uma “agricultura africana”, é mentira que ela faliu por imposições ambientais externas.
Pelo contrário, na África o Ocidente propôs e financia a agricultura de exportação, ao mesmo tempo em que mantém barreiras comerciais aos produtos nos quais não tem vantagem comparativa. Exatamente a agricultura de exportação à qual o deputado Aldo Rebelo, aparentemente, se associou.
Rebelo contrói a conclusão de sua carta à presidente Dilma sobre duas falácias: a de que ONGs internacionais, despachadas por poderosos governos estrangeiros, teriam quebrado a agricultura mexicana e africana.
E outra: que a reprise de algo que não houve (a quebra da agricultura mexicana e africana por pressões ambientais externas) poderia quebrar a agricultura brasileira.
Se existe algo que não corre o risco de quebrar, hoje em dia, é a agricultura brasileira. Por outro lado, é apenas natural que, com um mercado internacional de commodities agrícolas aquecido, haja pressão para incorporar novas terras à produção.
Que, como escreveu o deputado, se busque um equilíbrio entre o lucro da agricultura comercial e os bens comunitários de todos brasileiros, nos quais se inscrevem, por exemplo, as áreas de preservação permanente e as margens dos lagos e rios. É razoável, como propõe Aldo, que se considere de forma distinta os interesses dos pequenos proprietários.
Seria sensato, em busca desse compromisso, arquivar a mistificação nacionalista.




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