Regina Camargos: Impraticável, o Teto de Gastos desabou na cabeça do povo

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Por Regina Camargos

Por Regina Camargos*

Nas próximas semanas, vamos ouvir muito a mídia falar sobre o novo regime fiscal.

Esse é um tema que interessa a todos os brasileiros.

Afinal, a política fiscal define o que o governo deve fazer com o dinheiro arrecadado com os impostos que pagamos.

Nos (bons) cursos de Ciências Econômicas aprendemos que um dos principais objetivos da política fiscal é definir o montante de recursos necessários ao financiamento de políticas públicas essenciais ao bem-estar da população nas áreas de saúde, seguridade social, educação e cultura, segurança e transportes.

Outra parte dos recursos dos impostos vai para o pagamento de juros e resgate dos títulos da dívida pública adquiridos por pessoas físicas, empresas e instituições financeiras. Falei sobre isso no primeiro artigo que escrevi para o Viomundo.

A política fiscal, portanto, é redistributiva. Visa essencialmente à melhoria da qualidade de vida do povo, em especial de sua parcela mais pobre.

Porém, a partir do final da década de 1970, o ideário econômico neoliberal e ultraliberal foi desvirtuando a missão fundamental da política fiscal, e as prioridades se inverteram.

Estado Mínimo, austeridade fiscal, redução de impostos dos mais ricos e privatizações passaram a dar o tom dessa política, que se intensificou após a crise financeira de 2008/2009.

Os neoliberais argumentam que o Estado deveria reduzir seu papel econômico e social — portanto, seus gastos. E, além disso, diminuir os impostos cobrados dos mais ricos e das empresas.

Dessa forma, a dívida pública diminuiria, a confiança do mercado financeiro na capacidade do governo de pagá-la seria restabelecida e os empresários voltariam a investir e gerar empregos. Assim, como num passe de mágica.

Essas e outras propostas têm sido vendidas à exaustão pela mídia corporativa como ‘’remédios” que vão curar todos os problemas econômicos do Brasil

A panaceia mais recente foi o famigerado “Teto de Gastos’’, proposto pelo ex-presidente Michel Temer e aprovado pelo Congresso Nacional em novembro de 2016, na forma da Emenda Constitucional 95, logo após o golpe que derrubou a ex-presidenta Dilma Rousseff

O Teto de Gastos nasceu com a justificativa de disciplinar os gastos do governo após a suposta gastança dos governos do PT, cujo ápice teriam sido as “pedaladas fiscais” no governo Dilma, utilizadas como desculpa para o impeachment da ex-presidenta.

O que é Teto de Gastos?

O Teto de Gastos estabelece que num determinado ano o governo só pode aumentar suas despesas de acordo com a inflação ocorrida no ano anterior.

Se descumprir essa regra naquele ano, no ano seguinte o governo terá que apertar o cinto e cortar gastos até que a despesa retorne ao patamar previsto no Teto.

Essas regras foram previstas para durar 20 anos.

Acontece que essas regras são rígidas demais e desconsideraram variáveis importantes da economia real.

Nem precisa ser especialista em finanças públicas para perceber que essas regras são impraticáveis em qualquer país do mundo, em especial naqueles que convivem há séculos com imensas desigualdades.

Por exemplo, as regras do Teto de Gastos não consideram o comportamento do PIB e a evolução da chamada “pirâmide demográfica”, que é a proporção de pessoas mais jovens e mais velhas no total da população.

Ignoraram também fatores acidentais, como a pandemia, que obrigou os governos de todo o mundo a gastarem muito mais para socorrer a população e as empresas.

Ao não levar em conta esses e outros fatores, o Teto praticamente congela os gastos e investimentos essenciais ao desenvolvimento do país e ao bem-estar da população.

Consequentemente, viola, na prática, princípios fundamentais da própria constituição federal relacionados aos objetivos da República.

Mas o Teto tem outro aspecto negativo: é “pró inflação”, pois atrela o crescimento da despesa pública a esse único indicador. Ou seja, a despesa do governo só pode crescer se a inflação também aumentar.

Salta aos olhos que essa regra é, no mínimo, burra, ainda mais num país como o Brasil que conviveu durante décadas com inflação muito alta.

Essa regra, aliás, contraria um dogma dos economistas ligados ao mercado financeiro.

Eles alegam que a inflação no Brasil é um problema crônico, porque a maioria dos preços da economia atrela-se automaticamente à inflação; por exemplo, os reajustes dos aluguéis e financiamentos imobiliários.

Ora, se o próprio governo atrela suas despesas à inflação, os demais agentes econômicos farão o mesmo e com isso persistirá o problema inflacionário no país.

Porém, o aspecto mais nefasto do Teto é excluir os gastos com o pagamento dos juros da dívida pública das despesas correntes do governo

Ou seja, a economia proporcionada pelas regras do Teto que os neoliberais tanto alardeiam só vale para o povo, em particular para as pessoas que mais necessitam dos investimentos do governo .

Já os ganhos dos rentistas com os títulos da dívida pública – uma minoria da população! — são preservados.

Conclusão 1: com o Teto de Gastos, a política fiscal perde totalmente sua nobre missão de redistribuir ao conjunto da sociedade, na forma de políticas públicas, os recursos dos impostos arrecadados.

Conclusão 2: com o Teto de Gastos, a política fiscal se torna mais um mecanismo de transferência de renda de toda a sociedade para uma minoria que possui aplicações financeiras.

— E o Teto de Gastos, que serviu de álibi para derrubar a presidenta Dilma, tem sido cumprido? – algum leitor talvez esteja perguntando.

A resposta é NÃO!

Na verdade, as regras do Teto só foram cumpridas em 2018, mesmo assim, às custas de muitos cortes no orçamento do governo.

Durante o desgoverno de Bolsonaro, o Teto nunca foi cumprido e foram feitas seis emendas à Constituição que alteraram seu texto original para permitir que o ex-presidente pudesse cumprir minimamente o que havia prometido à população na campanha eleitoral de 2018.

Uma dessas emendas foi o chamado Orçamento de Guerra para enfrentar a pandemia que incluiu o Auxílio Emergencial.

A outra emenda, de caráter claramente eleitoreiro, foi a PEC Kamikaze, aprovada às vésperas do primeiro turno das eleições de 2022.

Ela permitiu à dupla Bolsonaro-Paulo Guedes burlar todas as regras eleitorais que proíbem determinados gastos no período que antecede as eleições.

Evidentemente uma alteração ilegal.

Curiosamente, o senhor “Mercado” não manifestou nenhuma discordância.

Muito pelo contrário. O que vimos foi um indisfarçável posicionamento dos agentes do mercado financeiro a favor da reeleição de Bolsonaro.

Por uma simples razão: nenhuma dessas alterações no Teto afetou seus sacrossantos interesses.

Como podem perceber, o Teto de Gastos, tal como existe hoje, é totalmente inviável.

Em recente entrevista à imprensa, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, comentou sobre a proposta para um novo regime fiscal.

Amanhã, falarei a respeito.

*Regina Camargos é economista e consultora

Leia também:

Por um regime fiscal factível e justo

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Regina Camargos

Economista e consultora


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Zé Maria

“O Brasil responde por + de 7% da área territorial do Planeta,
comporta 15% de todas as águas superficiais
e detém 3 dos 5 maiores aqüíferos do mundo,
inclusive com os 2 maiores deles:
o Sistema Aquífero Grande Amazônia
e o Aquífero Guarani.
Permitiria outro projeto de sociedade.”

https://twitter.com/MarcioPochmann/status/1637735072433307648

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