Promotor: Representante da FIFA disse que pagar propina era comum na África e América do Sul

Tempo de leitura: 10 min

por Luiz Carlos Azenha

O inacreditável documento que registra o acordo entre a promotoria do cantão de Zug, na Suiça, a FIFA, Jean-Marie Faustin Godefroid Havelange e Ricardo Terra Teixeira é leitura indispensável para todos os que ajudam, direta ou indiretamente, a sustentar financeiramente o futebol.

Infelizmente, o site da FIFA em português publicou a versão em inglês, feita a partir do original em alemão.

A leitura é indispensável por deixar claras as manobras legais da FIFA para tentar abafar o caso, alegando que não se julgava prejudicada, que dispensava o pagamento de reparações por parte dos envolvidos, que o pagamento do que o Jornal Nacional chamou de “comissões” era parte da rotina dos negócios.

O procedimento legal da promotoria de Zug foi iniciado em 29 de maio de 2001, por iniciativa da FIFA, que acionou os responsáveis pelo gerenciamento do Grupo ISMM/ISL (International Sports Media and Marketing, International Sports and Leisure). A entidade do futebol alegava que não tinha recebido a parte que lhe cabia de pagamentos feitos por emissoras de TV, dentre as quais a Globo, na compra de direitos de transmissão.

Pouco antes, a ISMM/ISL tinha quebrado, na segunda maior falência da história da Suiça, provocando um imenso rombo.

O homem encarregado de administrar a massa falida, Thomas Bauer, decidiu pedir o dinheiro das propinas de volta aos que constavam na contabilidade da empresa, sob a ameaça de recorrer à Justiça.

Depois de uma série de manobras de bastidor, com anuência da FIFA, as ações foram evitadas.

Porém, a bola já estava rolando na promotoria de Zug, que foi adiante na investigação.

Quando parte relevante dela foi concluída, o promotor Thomas Hildbrand levou a julgamento seis gerentes do grupo ISMM/ISL. O homem da mala, Jean-Marie Weber, que organizava os pagamentos de propina, foi multado pelo desvio de 90 mil francos suiços para sua conta pessoal. A pena leve que ele e dois outros acusados receberam foi atribuída à incerteza dos juizes sobre se os pagamentos eram ou não criminosos.

Vários depoentes disseram na Justiça que o pagamento de “comissões” era parte dos negócios e que sem eles a empresa de marketing teria ido à falência.

Em papéis oficiais, os pagamentos aparecem sob a rubrica “comissões, remuneração”, “taxas de agenciamento ou pagamentos adicionais de aquisição” ou doações para indivíduos ou autoridades do esporte.

Funcionava assim: o grupo ISMM/ISL tinha duas fundações, a Nunca no principado de Liechtenstein e a Sunbow nas Ilhas Virgens Britânicas — dois refúgios fiscais, na Europa e no Caribe — através das quais transferia dinheiro para a empresa de investimento Sicuretta, também de Liechtenstein, que por sua vez distribuia as propinas a autoridades do mundo esportivo, através das quais obtinha os contratos de exclusividade para marketing, transmissão de eventos, etc.

Através deste esquema foram feitos pagamentos equivalentes a R$ 77 milhões a destinatários, identificados no documento da promotoria de Zug através de códigos.

A Justiça suiça evita nomear em seus documentos indivíduos, empresas ou fundações que não tenham sido acusadas de ilícitos.

Dentre os contratos que o promotor Thomas Hildbrand analisou está o assinado em 29 de junho de 1998, emendado em 17 de dezembro, que tratava da compra de direitos de transmissão das Copas de 2002 e 2006 para o mercado brasileiro, pelas companhias identificadas pelos códigos 2 e 3, por U$ 221 milhões de dólares.

O processo contra João Havelange e Ricardo Teixeira foi iniciado oficialmente em primeiro de outubro de 2008, sob a acusação de apropriação indébita e possível gerência fraudulenta.

Havelange foi identificado como presidente da FIFA entre 1974 e 20 de novembro de 1998. Ricardo Teixeira como membro do comitê organizador da Copa do Mundo de 1994, membro do comitê executivo da FIFA e presidente da CBF, além de desempenhar outras funções na entidade mais importante do futebol mundial.

Os pagamentos feitos a Teixeira e Havelange começaram em 10 de agosto de 1992 (equivalente a U$ 1 milhão de dólares) e seguiram até 4 de maio de 2000 (500 mil dólares), para um valor total aproximado de R$ 45 milhões.

Em 27 de fevereiro de 2004 foi concluído um acordo pelo qual Teixeira transferiu parte das propinas recebidas à massa falida do grupo ISMM/ISL. Era um acordo sigiloso, bancado pela FIFA para proteger os cartolas.

Mesmo as planilhas constantes da contabilidade da ISMM/ISL, relativas ao pagamento de propina, não traziam diretamente o nome de quem recebia o dinheiro, mas de empresas em paraísos fiscais, como a Sanud, baseada no principado de Liechtenstein.

Durante CPI no Congresso brasileiro, nos anos 2000, investigadores identificaram a Sanud, ou Dunas ao contrário, como sócia da empresa holding dos negócios de Ricardo Teixeira, a RL&J Participações, no Rio de Janeiro. O R é de Ricardo, o L de Lúcia, a filha de Havelange com a qual Teixeira se casou e o J do pai dela, João.

O processo de divórcio litigioso entre Ricardo e Lúcia congelou os negócios do casal, razão pela qual até hoje, pelos documentos que constam na Junta Comercial do Rio de Janeiro, a Sanud, embora extinta em Liechtenstein, ainda aparece como sócia da empresa de Teixeira no Rio, conforme demonstramos no Jornal da Record (documentos posteriormente reproduzidos aqui no blog).

[Clique aqui para ver as reportagens que foram ao ar no Jornal da Record]

O promotor da Suiça precisava obter comprovação direta entre as propinas e os cartolas brasileiros. No caso de João Havelange, foi mais fácil, já que um pagamento da ISL destinado a ele foi depositado por engano numa conta da FIFA e posteriormente redirecionado, deixando uma trilha de transações e documentos no caminho.

No caso de Ricardo Teixeira, isso foi possível graças a uma testemunha.

O promotor fez a manobra clássica: seguiu a trilha do dinheiro devolvido à massa falida da ISMM/ISL, que está descrita detalhadamente na página 10 do documento:

Trecho:

O valor que o advogado 1 transferiu via banco 6 à massa falida da ISMM e ISL no banco 7 veio logo depois dele receber dois pagamentos em sua conta do banco 8. A autora das duas transferências [para o advogado] é uma companhia baseada em Andorra, cujo dono é o cidadão de Andorra P5. De acordo com o testemunho de P5, ele fez as transações em nome de Ricardo Terra Teixeira. O valor em questão havia sido transferido anteriormente de uma conta em nome de Ricardo Terra Teixeira para a conta da companhia 5. Antes da transferência, a conta, número 400428, no banco 8, em nome de Ricardo Teixeira, foi abastecida com bens de várias contas do banco 2, em Zurique.

As transferências que abasteceram a conta de Teixeira de onde saiu o dinheiro devolvido à ISMM/ISL foram quatro, no total de U$ 2.451.000,00, feitas em 11.04.2003.

O promotor investigou a origem das quatro contas de Zurique de onde vieram estes quase U$ 2,5 milhões.

Elas foram abertas em 01 de julho de 1998, em 03.11.1999 e em 23.08.2001. Duas delas foram abertas com depósitos em dinheiro de 300 mil dólares, uma terceira com transferência de títulos no valor de 300 mil dólares e a quarta com uma transferência de 1 milhão de dólares. Estavam em nome de pessoas/empresas identificadas apenas como F1, F2, F3 e F4.

Em outras palavras, ao seguir o dinheiro o promotor Thomas Hildbrand comprovou com testemunho direto que Ricardo Teixeira era um dos recebedores da propina, passível de ser processado.

Para justificar o acordo que promoveu entre Teixeira e a massa falida da ISMM/ISL, a FIFA recorreu às opiniões de dois professores, que formularam uma hipótese para os pagamentos: “A ISL fazia contratos de marketing com associações desportivas”, diz o texto. “Não há indícios de que ofertas melhores tinham sido feitas por outras agências de marketing. A ISL fez pagamentos a vários indivíduos no ambiente das associações desportivas, que presumivelmente devem ser considerados comissões. Esses pagamentos de comissões não aconteceram em uma data específica, mas foram espalhados por vários anos, com dois ou três pagamentos por ano. Os pagamentos foram feitos antes e depois da conclusão dos contratos de marketing”.

Porém, a promotoria considerou que os pagamentos eram uma forma de burlar as próprias regras da FIFA, já que em tese o dinheiro que deveria ficar com a entidade para promover o futebol foi usado para enriquecimento pessoal.

Depois da investigação, em 14 de julho de 2009 o promotor iniciou um procedimento que tinha como objetivo determinar se os envolvidos estariam dispostos a pagar reparações para ter o caso arquivado, o que é previsto no artigo 53 do Código Penal suiço.

A promotoria entendeu que “os dois acusados violaram seus deveres com a FIFA, baseada em Zurique, ao não divulgar e repassar à FIFA os pagamentos recebidos da ISMM/ISL. João Havelange agiu como presidente da FIFA em Zurique. O mesmo se aplica a Ricardo Terra Teixeira, na medida em que ele estava envolvido no trabalho da associação como membro do comitê executivo e exercia tarefas em outros comitês. Em todos os casos, as omissões ocorreram na FIFA e o lugar onde as ofensas foram cometidas foi a Suiça, o que também é entendimento da FIFA. Assim, Ricardo Terra Teixeira, João Havelange e a FIFA, como companhia acusada, estão sujeitos ao Código Penal suiço”.

As acusações formais foram as seguintes:

“O acusado Ricardo Terra Teixeira usou ilegalmente bens confiados a ele para seu próprio enriquecimento pessoal várias vezes. Deve ser notado que ele foi instruído, com base em uma transação legal, para gerenciar os bens de outrem e, em violação a seus deveres, causou danos a estes bens. Ele agiu com a intenção de enriquecer ilegalmente”.

Teixeira recebeu o equivalente a R$ 26,5 milhões em comissões entre agosto de 1992 e novembro de 1997.

“Ele também recebeu uma quantia (estabelecida, mas não inteiramente atribuída a ele) entre 18 de março de 1998 e 4 de maio de 2000 através de E4. Os pagamentos foram feitos pela ISL X5 AG, que era uma subsidiária da companhia 1. Ela concluiu contratos de marketing e licenciamento com a FIFA para utilização dos direitos de transmissão de rádio e TV da Copa do Mundo a preços precisamente definidos; também concluiu, através de uma de suas subsidiárias, ISMM X3 AG, contratos de sub-licença com as companhias 2 e 3 referentes a direitos de rádio e televisão para a transmissão da Copa do Mundo de 2002 no Brasil. Tais comissões, que Ricardo Terra Teixeira recebeu devido a sua posição na FIFA, foram embolsadas por ele (para seu próprio uso), e ele não revelou e não entregou os pagamentos à FIFA. Os pagamentos foram feitos durante um número de anos e tinham como objetivo explorar a influência de Ricardo Teixeira na FIFA, de tal forma que relações contratuais foram estabelecidas entre a FIFA e a companhia 1, e subsequentemente [Teixeira] usou sua influência de presidente da Confederação Brasileira de Futebol para assegurar a conclusão de acordos de sub-licenciamento [no Brasil]. Ricardo Terra Teixeira foi enriquecido na extensão das comissões que recebeu e deixou, contrariando seu dever, de repassar à FIFA; a FIFA sofreu uma perda equivalente”.

O valor das propinas pago a João Havelange foi equivalente a R$ 3 milhões, em 3 de março de 1997, além de quantias indefinidas entre 18 de março de 1998 e 4 de maio de 2000.

A FIFA foi acusada de “organização deficiente”. “Em outras palavras, a FIFA absteve-se de defender seus direitos contra João Havelange e Ricardo Terra Teixeira, que eram, em vista de suas posições, obrigados a entregar os bens que receberam à FIFA. Como resultado, a FIFA sofreu os danos relativos à sua omissão, resultantes de violação do dever, enquanto Ricardo Terra Teixeira e João Havelange foram enriquecidos na mesma proporção”, diz o texto.

O representante legal da FIFA argumentou junto à promotoria que os que receberam os pagamentos não tinham “dever legal” de repassar os valores recebidos “imoralmente” para um terceiro partido, no caso, a própria FIFA. Com o que o promotor não concordou.

“O critério para definir se Ricardo Terra Teixeira e João Havelange tinham o dever de revelar o recebido e em último caso o dever de repassar o dinheiro não é se se tratou de um ato imoral, mas se como agentes [da FIFA] receberam os valores com base numa relação de agenciamento, ou seja, se houve uma conexão interna entre o recebimento e os mandatos [que exerciam]”.

O promotor também escreveu:

“Com a alimentação [de propinas] constante, que aconteceu durante vários anos, os serviços não apenas de João Havelange mas também de Ricardo Terra Teixeira foram comprados. Este era genro de João Havelange — uma circunstância da qual o Grupo ISMM/ISL esperava, sem dúvida, tirar os benefícios apropriados –, além de ser o presidente do membro mais poderoso da FIFA [a CBF], uma forma adequada de fazer uma goleada: primeiro, a conclusão de um contrato com a FIFA e subsequentemente com os compradores brasileiros dos direitos, na forma de contratos de sub-licenciamento”.

E acrescentou:

“Os pagamentos não foram feitos apenas antes da conclusão de contratos, de forma a colocar o recipiente [do dinheiro] sob uma obrigação — embora uma obrigação que não podia ser cobrada –, mas de forma subsequente, para ajudar em relação a futuros contratos”.

Thomas Hildbrand atacou o acordo fechado em 2004, pelo qual Ricardo Teixeira fez aquela ginástica financeira para devolver 2,5 milhões de francos suiços à massa falida da ISMM/ISL.

Segundo ele, “a FIFA não é livre para dispor de seus bens em casos nos quais isso é contrário aos fins da associação. As tentativas da FIFA de chegar a um acordo, para induzir Ricardo Terra Teixeira a pagar uma soma e assim abrir mão, pelo menos naquela extensão, de devolver à FIFA o dinheiro do suborno, só podem ser interpretadas como sendo do interesse de certos de seus membros [grifo nosso], já que foi uma tentativa de evitar danos à reputação da associação, uma vez que pagamento de suborno é sempre associado a condutas repreensíveis. No fim das contas, não é a alegada promoção do futebol e, portanto, a defesa de interesses relacionados a isso o principal objetivo [da FIFA], mas sim vantagens pessoais e pecuniárias de parte dos integrantes da FIFA”.

Um dos pontos mais “singelos” do documento diz respeito a uma das justificativas apresentadas pelo representante da FIFA para o pagamento de comissões:

“O representante legal da FIFA [diz o texto da promotoria] é da opinião de que a execução de pedidos de reembolso do dinheiro [de quem recebeu propina] não seria possível. Justifica isso com o argumento de que uma reivindicação da FIFA na América do Sul ou na África dificilmente seria aplicável, já que o pagamento de subornos é parte do salário usual da maioria da população”.

O hoje presidente da FIFA, Joseph Blatter, sabia dos pagamentos. “Primeiramente, porque vários membros do comitê executivo tinham recebido dinheiro e, além disso, entre outras coisas, foi confirmado pelo ex-diretor financeiro da FIFA, em depoimento, que um pagamento feito pela companhia 1 a João Havelange, de 1 milhão de francos suiços, foi erroneamente transferido para uma conta da FIFA; não apenas o diretor-financeiro tinha conhecimento disso, mas, entre outros, o P1 também teria sabido a respeito”.

Joseph Blatter confirmou ser o P1 mencionado no documento e disse que sabia dos pagamentos. Segundo ele, pela lei da Suiça a prática não era ilegal, então.

Segundo o promotor, a pena máxima a que João Havelange e Ricardo Teixeira poderiam ser condenados na Suiça era de 2 anos de prisão. Nenhum deles admitiu qualquer crime.

Mas, como o artigo 53 do Código Penal do país permite que as acusações sejam arquivadas desde que os envolvidos paguem reparações, a promotoria arbitrou as quantias que Havelange e Teixeira teriam de devolver aos cofres da FIFA.

No caso de Ricardo Teixeira, o equivalente a R$ 5 milhões de reais (além dos R$ 5 milhões que já havia devolvido à massa falida da ISMM/ISL).

Considerando a idade (94 anos) e o patrimônio declarado, o valor de João Havelange foi reduzido do equivalente a R$ 5.000.000,00 para R$ 1.000.000,00.

Fácil o dinheiro para essa gente, não?!


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Julio Silveira

O futebol, para quem não vive na lua, dá para perceber que é um grande negócio para se esquentar dinheiro no mundo. Milhões, viajando para lá e para cá, de fontes desconhecidas a não ser as ISLs da vida, fachada para seus proprietarios. Só enganam quem quer ser enganado e não quer mexer no vespeiro desse mar de grana estranha que corre pelo mundo.

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Smilinguido

africa e america do sul: tudo a ver

Marcelo

“Promotor: Representante da FIFA disse que pagar propina era comum na África e América do Sul”.
Não serve como defesa , mas não chega a ser mentira .

Manuel Henrique

Transmissão de jogos?! Olha a globo aí, gente!

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