
Saramago: "...a Democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada e amputada"
Onde está então a Democracia? [1]
por Patrick Mariano, especial para o Viomundo
A pergunta feita pelo escritor José Saramago em uma de suas conferências e que escolhemos como título, está cada vez mais atual, quando se encara a perspectiva da efetivação dos direitos humanos e a recente onda de criminalização dos movimentos sociais.
Passados 25 anos da elaboração do texto Constitucional, em que se prevê uma fortaleza de direitos sociais, políticos e individuais – dando verdadeiro giro epistemológico após anos de sufocamento e repressão autoritária – é preciso, mais do que nunca, discutir e enfrentar a questão: onde está então a Democracia?
Se alguém lhe contasse, sem precisar a época histórica, que um ajudante de pedreiro, sem acusação formal alguma contra si, foi retirado de um bar por agentes do Estado, para ser torturado até a morte e indagasse ao final, qual a forma de governo que possibilitaria tal conduta, dificilmente a resposta seria Democracia.
Da mesma forma, se fosse relatado que após manifestações políticas, dezenas, centenas de pessoas foram presas, muitas delas sem prova concreta, possivelmente a resposta seria a mesma.
O regime democrático garante um amplo leque de direitos civis, políticos, sociais a todos e todas, independente de classe, etnia, cor ou gênero. O devido processo legal, direito à ampla defesa, legalidade, entre tantos outros, heranças de uma humanidade que caminha e tenta evoluir, também sedimenta a fortaleza construída em 1988. Ao tempo que isso ocorre, infelizmente, ainda nos ronda o espectro da tentação autoritária.
O autoritarismo pressupõe a concepção de ordem. Construção política e ideológica do início do século passado que serviu, ao longo dos anos, para reprimir perigosos estrangeiros que aqui vinham para, com “suas idéias anarquistas”, agitar as massas trabalhadoras por melhores condições de trabalho; os indesejáveis das reformas urbanas de Pereira Passos no Rio de Janeiro, a vadiagem, passando pelo perigo comunista e pelos subversivos dos anos 60 e 70 do século passado. [2]
Regimes autoritários não convivem, muito menos toleram, qualquer forma de conflito. Inexiste, portanto, qualquer forma de diálogo, imperando a violência e o uso da força, na vã tentativa de apagar as contradições internas, como se nunca existido tivessem.
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Já na Democracia, não. Nela, não existe ou não deveria existir, outra forma de resolução de conflitos que não o diálogo aberto e franco. O problema, ao nosso ver, reside justamente no fato de que, uma vez alcançado, a duras penas, o regime democrático há 25 anos atrás, estancamos e pouco se conseguiu avançar no seu aprofundamento.
Daí o acerto de Saramago:
“Não se discute a Democracia. A Democracia está aí como se fosse uma espécie de santa do altar de quem já não se espera milagres, mas que está como uma referência. E não se repara que a Democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada e amputada,, porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não gosta e a por outro que talvez venha gostar. Nada mais.”
Neste ponto, inegável o papel dos movimentos sociais, principalmente a partir da década seguinte a 1988, questionando e exigindo o que foi prometido pelo texto Constitucional e criando contradições no seio do regime. Quando isto surge e toma vulto, uma primeira ação estatal é reprimir. Diante do novo e de sua estranheza, a força da ordem. Para manter a ordem, outro componente tem que surgir: o inimigo político.
São esses, em breve e arriscada síntese, os componentes que formatam a ação repressiva estatal. Ordem, sua imposição de forma autoritária e a escolha da personificação da anomalia do sistema, o inimigo político.
Nos casos mais recentes de repressão ao uso de máscaras, prisão de indivíduos fantasiados de super heróis e, elevação de um pequeno grupo (black blocs) ao status de novo e perigoso inimigo da ordem, o caldo autoritário está montado.
Nilo Batista, em recente e lúcida entrevista aborda, com maestria, esse quadro que beira a paranóia em que se aposta na repressão, ao invés de naturais canais democráticos de diálogo.
Outra ação política possível para lidar com as manifestações e as contradições internas que vão surgindo no seio do regime democrático é entender o conflito, arbitrar e negociar.
A vitória histórica importantíssima que tivemos há 25 anos – verdadeira fortaleza de direitos que é a Constituição da República de 1988 – precisa ser habitada e povoada cotidianamente. Nela cabem ou deveriam caber, todos aqueles que acreditam e sonham com um País melhor.
Apostar na repressão leva tanto a cenas patéticas como a prisão do Batman, como à tragédia do encarceramento em massa de manifestantes. Compreender os processos históricos, sua complexidade e buscar formas de intervenção dentro deste contexto é o desafio que a Democracia exige de todos nós.
Patrick Mariano Gomes é mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP.
[1] Breves apontamentos de intervenção a ser realizada no XVII Encontro Nacional de Advogados e Advogadas Populares, entre os dias 14 e 17 de novembro, na cidade de Porto Alegre/RS.
[2] Trabalhamos este tema, mais detalhadamente, em trabalho apresentado na Universidade de Brasília, com o título “Discursos sobre a ordem: uma análise do discurso do Supremo Tribunal Federal nas decisões de prisão para garantia da ordem pública”.
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