André Rocha: Até que ponto pode chegar o “espírito das artimanhas” quando desafia o “espírito das leis”?

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EDUARDO CUNHA/ENTREVISTA

A manobra de Cunha poderá prosseguir até que ponto?

 Emenda geraria uma aberrante contradição na Constituição

por André Rocha, especial  para o Viomundo

Após a derrota de anteontem, dia 26 de maio, Cunha reorganizou sua base e, com apoio dos deputados do PSDB, realizou ontem uma manobra e colocou em votação uma emenda que legaliza “doações” de pessoas jurídicas para partidos políticos.

A emenda foi aprovada por 330 votos favoráveis contra 141 contrários. Agora a emenda terá que ser votada em segundo turno na Câmara e, em seguida, terá que passar pelo Senado.

Se fosse aprovada em segundo turno e depois passasse pelo Senado, na prática a emenda à Constituição seria uma espécie de blindagem contra qualquer possibilidade de julgar e condenar as práticas de corrupção dos lobistas na Câmara e no Senado.

Mas a manobra de Cunha no dia 27 de maio não anulou a votação histórica do dia anterior. Não anulou a rejeição do sistema majoritário e, além disso, no que tange ao financiamento das campanhas, produziu uma espécie de aberração jurídica, pois a emenda não tem o poder de anular a proibição do financiamento de campanhas por pessoas jurídicas que foi aprovado no dia 26 de maio. Ora, se a emenda fosse aprovada no segundo turno pela Câmara e, depois, nos dois turnos pelo Senado, como se estabeleceria no texto da Constituição a diferença entre as “doações” a campanhas e as “doações” a partidos?

Que atividades as “doações” aos partidos poderão financiar, posto que as atividades de campanha não poderão ser financiadas? Se estas “doações” puderem financiar atividades de divulgação de programas do partido, tais como conferências, palestras, sites e material audiovisual para circular na internet, será possível diferenciar estas atividades das atividades de campanha eleitoral? Como impedir que o material audiovisual circule na internet durante as eleições?

Se puderem financiar viagens de políticos e lideranças partidárias, como diferenciar estas atividades das atividades de campanha, posto que estas muitas vezes se iniciam dois ou três anos antes das eleições, quando os candidatos ao executivo não foram ainda oficialmente inscritos no TSE, mas já foram designados ou eleitos pelas lideranças ou pelos membros do partido?

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Em suma, será praticamente impossível registrar no texto da Constituição a lista com as atividades de um partido político que não seriam parte de campanhas eleitorais. Mesmo que fosse possível, seria impossível distinguir na prática atividades de campanha de outras atividades de candidatos e partidos.

A aprovação da emenda seria uma aberração jurídica por registrar na Constituição duas leis opostas: uma que proibiria as “doações” de pessoas jurídicas a partidos políticos para financiar campanhas de candidatos ou partidos e outra que permitiria as “doações” de pessoas jurídicas aos partidos políticos.

A ambiguidade da lei seria ótima para corruptos desinibidos que manejam com astúcia as leis e para advogados dispostos a defendê-los, mas para o Poder Judiciário, que interpreta e julga, a ambiguidade das leis seria um desastre. Como os magistrados poderiam se apoiar nas duas leis opostas para condenar ou absolver membros do Executivo acusados de corrupção?

Não custa lembrar que o próprio Cunha está sendo investigado na Operação Lava Jato e que seu nome está na lista que o Procurador Geral da República enviou ao STF. Para evitar que a estouvada manobra de Cunha tenha inflexões sobre o Poder Judiciário e afete sua independência, talvez os magistrados do STF tenham que fazer valer a sua decisão de contribuir para o combate à corrupção na República assim que cessar o pedido de vistas de Gilmar Mendes.

Neste momento, deputados, assessores e peritos legais provavelmente iniciam as análises mais profundas da estouvada manobra de Cunha que veio para remendar a histórica derrota do dia anterior. Talvez não remende nada. Será difícil invalidar a votação da emenda com base na sessão de 26 de maio em que Cunha não apenas rejeitou o texto do relator, mas declarou expressamente que não o tomaria como base para a votação.

O acordo com os líderes na manhã do dia 27 de maio foi apresentado como justificativa para retomar o texto do relator e fazer a manobra. Mas se os deputados puderem provar com análises técnicas que a emenda aprovada no dia 27 de maio se opõe à deliberação do dia 26 de maio que decidiu pela proibição das “doações” de pessoas políticas a campanhas eleitorais de candidatos e partidos políticos, se puderem provar que a emenda geraria uma lei incompatível com a lei gerada pela deliberação do dia 26 de maio que proíbe as “doações” de pessoas jurídicas a campanhas de candidatos e partidos, talvez a aberração constitucional que seria gerada pela aprovação da emenda fique tão evidente que torne impossível forçar a barra para aprová-la numa votação em segundo turno na Câmara e, depois, em dois turnos no Senado.

André Rocha é doutor em filosofia pela USP e pós-doutor em filosofia pela USP e pela Université Paris I –Pantheon Sorbonne.

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