Lenir Santos e Francisco Funcia: Se descumprido o piso da saúde em 2023, a perda de recursos para o SUS será de R$ 18 bilhões

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Lenir Santos e Francisco Fúncia

Piso Constitucional da Saúde: mais uma luta pela sua manutenção

Por Lenir Santos e Francisco Funcia*, site do Idisa – Instituto de Direito Sanitário Aplicado

A Constituição de 1988 assegurou direitos sociais, dentre eles, o da saúde, o qual deve assegurar à população ações e serviços para a sua proteção, promoção e recuperação, de modo universal e igualitário – “saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196).

Para cumprir tal desiderato, foi previsto no ADCT uma baliza ou uma matriz de financiamento que considerou ser necessário assegurar, no mínimo, 30% dos recursos da seguridade social à saúde.

Essa determinação se fundamentava nos gastos da saúde da época, cujos serviços estavam dispersos entre vários ministérios, como o da Previdência Social (Inamps), da Saúde, da Educação, dentre outros.

Esse valor expresso na Constituição em 1988 não foi aleatório, fundava-se nas despesas com saúde aos beneficiários previdenciários, que com a universalização do direito, seria aumentado consideravelmente.

Desde então, esse marco orçamentário para a saúde, foi descumprido, sob o manto da tergiversação: inicialmente com ações e serviços previdenciários (aposentadorias); de assistência social (alimentação); de educação (hospitais universitários) alocados ao setor saúde, o que reduzia em torno de 20% a sua aplicação em serviços de saúde.

Essa prática levou mais de uma década para ser alterada pela EC 29, de 2000, que definiu regras de cálculo de valores mínimos a serem aplicados, obrigatoriamente, na saúde pela União, pelos Estados, pelos Municípios e pelo Distrito Federal, com a LC 141, de 2012, definindo o que são e o que não são ações e serviços públicos de saúde que compõem o piso constitucional.

A esses fatos deletérios com os recursos da saúde, outros foram se somando, todos, sem exceção, visando reduzi-los, como:

(i) a desvinculação dos recursos da União (DRU);

(ii) a conversão da unidade de medida da moeda (URV) em real;

(iii) a cessação de repasses de recursos arrecadados pelo MPAS destinados ao SUS por mais de 100 dias;

(iv) a tentativa de distorcer a determinação constitucional da EC 29, com a tese da ‘base móvel e base fixa’(1);

(v) a redução em 60% dos recursos da CPMF destinados à saúde;

(vi) a extinção da CPMF sem substituição de fonte;

(vii) a segregação de fontes de custeio (contribuições sociais) à previdência social;

(viii) o congelamento de recursos pela EC 95;

(ix) a retirada dos recursos do pré-sal como extra piso para integrá-lo.

De todos esses boicotes ao financiamento suficiente da saúde, apenas duas medidas andaram na sua contramão: a EC 29, de 2000, primeira vinculação de recursos mínimos, e a EC 86, de 2015 (2) que durante o exercício de 2016 foi suspensa pela EC 95.

Com a aprovação do novo arcabouço fiscal, EC 126, de 2022, e a edição da LC n° 200, de 2023, a EC 95 foi revogada e o percentual de 15% da RCL da EC 86, de 2015, até então suspenso, voltou imediatamente a vigorar em 2023, sendo devido esses valores à saúde, nos termos do artigo 23, da LC 141, de 2012, que prevê a necessidade de se cumprir o piso da saúde no mesmo exercício financeiro do ano de sua entrada em vigor ( no caso trata-se da volta da aplicação da EC 86 imediatamente a cessação de sua suspensão).

Importante dizer que a EC 126, de 2022, não revogou a EC 86, de 2015, tampouco a LC 141.

Nunca é demais lembrar, porque na saúde sempre há os que esquecem de seu subfinanciamento crônico e da necessidade de se cumprir a Constituição, provendo saúde para a população, que nos anos de 2014, 2015 e 2016, o governo federal aplicou em saúde valores equivalentes a 15% da RCL (ainda pela regra da EC 29) e acima de 15% da RCL em 2017, quando então foi congelado.

Esses valores foram reduzidos com a vigência da regra da EC 95 no período de 2018 a 2022, com perdas bilionárias para a população que viu crescerem as suas necessidades enquanto encolhiam os recursos a satisfazê-las.

A redução do piso federal da saúde se deu em relação ao congelamento de seus valores aos do ano de 2017, atualizados anualmente até 2022 tão somente pela variação do IPCA.

Assim foram suprimidos por volta de 70 bilhões de reais (dos quais 46 bilhões somente no exercício de 2022), não restituídos, tornando o subfinanciamento num desfinanciamento, visível a olho nu por aqueles que adoecem e aguardam anos na fila por uma consulta médica, por uma sessão de quimioterapia, por uma cirurgia.

Daí causar espécie, mais uma vez, a fiel cruzada da área econômica, assumindo a mesma posição de governos anteriores que defendiam que saúde e educação não deveriam ter piso mínimo, nem ser direito universal.

Agora a tese nova é a da possibilidade de se descumprir a Constituição em 2023 para não aplicar o piso federal do SUS da EC 86, de 2015, devido ainda neste ano, a partir de agosto, data da LC 200.

Interessante notar a posição contraditória da área econômica do governo em relação à adotada em dezembro de 2022, quando o governo articulou com o Congresso Nacional medidas para incrementar despesas sociais no projeto de lei orçamentária encaminhado pelo governo anterior.

Isso representou para a saúde um acréscimo superior a 20 bilhões de reais, totalizando 170 bilhões de reais, valor quase equivalente a 15% da RCL.

Eis que surgem agora argumentos de que o novo arcabouço fiscal aprovado no Congresso Nacional, que revoga a EC 95, somente deverá ser cumprido em 2024. Sob quais fundamentos jurídicos?

De que essas pastas, educação e saúde, em ter aumentos expressivos no volume de recursos que devem receber no ano que vem e isso pode representar risco de paralisia no governo federal (Representação do Subprocurador Geral do Ministério Público junto ao Contas Tribunal de Contas da União – TCU, conforme veiculado pela imprensa), ignorando o subfinanciamento da saúde e suas expressivas e volumosas perdas de recursos ao longo de sua curta história de 35 anos, com milhares de vidas ceifadas por falta ou mau atendimento e por agravos à saúde pela espera desmedida.

É competência do TCU dar licença ao Executivo para descumprir a Constituição?

Basta a saúde ter qualquer aumento, nada significativo em comparação às suas perdas e ao seu subfinanciamento de 35 anos, para renascer teorias de que as pastas da saúde e educação serão responsáveis pela paralisia da União, com shutdown em alguns ministérios, se cumprido for o piso da saúde neste ano de 2023, após agosto.

Esse filme já foi visto inúmeras vezes pela população que vive na pele a falta de recursos para a saúde.

Se descumprido o piso da saúde em 2023, a perda de recursos será na ordem de 18 bilhões, que irão somar-se aos 70 bilhões já perdidos na vigência da EC 95.

O curioso é que nunca houve acusação perante o TCU ou outros órgãos, por autoridades públicas, de que haveria um shutdown na garantia do direito à saúde, com aumento de doenças e mortes desnecessárias ante a falta concreta, real, de recursos financeiros suficientes às necessidades públicas.

Interessante também notar que a falta de recursos na saúde aumenta dia a dia e de modo significativo, bastando ver o volume da judicialização da saúde, sempre crescente, com mais de 500 mil ações judiciais, numa demonstração de que algo vai mal no reino sanitário.

A norma da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) citada na Representação do senhor Subprocurador ora mencionado, de que na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados (art. 22), é uma forma enviesada de aplicá-la em favor do descumprimento da Constituição, EC 86 e art. 196.

Ora, essa regra de hermenêutica sobre a aplicação das normas na gestão pública em relação às dificuldades do gestor, jamais poderá lastrear descumprimento constitucional, licença para a sua não aplicação de normas garantidoras de direitos fundamentais, como o direito à saúde e o seus pisos, só porque são orçamentários.

Licença para descumprir a Constituição e as leis não estão dadas pela LINDB em hipótese alguma e nem poderia. Seria o caos jurídico tal permissão.

E será um caos maior ainda haver permissão de quem tem a obrigação de velar pelo cumprimento das normas pela autoridade pública. Uma licença para ferir direitos fundamentais.

Como conviver de um lado com o incessante crescimento da judicialização individual da saúde e de outro com a licença para descumprir o piso da saúde.

A temeridade jurídica e a contradição chegam a ser assustadoras e causa espécie mais uma tentativa das autoridades econômicas na burla pela garantia de recursos para a saúde que são reconhecidos nacionalmente como insuficiente em relação ao direito a cumprir.

Como diz Norberto Bobbio chega de proclamar direitos, é preciso cumpri-los.

(1) A EC 29 fez surgir a absurda tese da ‘base móvel e base fixa’ pela equipe econômica do governo que significava que a base para cálculo do piso da saúde sobre valores do ano anterior, seria sempre o ano de 2000, o que significava uma base fixa e não móvel.

(2) A exceção do dispositivo que estabelecia o prazo de cinco anos para se atingir o piso equivalente a 15% da Receita Corrente Líquida da União, partindo de 13,2% no primeiro ano e a inclusão dos recursos do pré-sal no piso, suspensos por um despacho liminar do Ministro Lewandowski até julgamento final da ADI 5595, em 2022.

*Lenir Santos é advogada, doutora em saúde coletiva pela Unicamp, professora colaboradora da Unicamp, e presidente do Idisa – Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

*Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política (PUC-SP), doutor em Administração (USCS), professor dos cursos de Economia e Medicina da USCS e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES)/gestão 2022-2024.

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Comentários

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Neusa

Se não cumpriram com o piso dos enfermeiros – que são os que realmente salvam vidas – podem esperar sentados porque em se tratando de saúde todos os presidentes dão as costas. TODOS!

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