A privatização do SUS em Natal
A tentativa de privatização das UPAs revela que o “terceiro setor” é o novo rosto do patrimonialismo, onde a lógica do lucro se disfarça de modernização para assaltar o que é público
Por Francisco Batista Júnior*, em A Terra é Redonda
1.
“Legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Os princípios da administração pública expressos no Art. 37 da Constituição Federal de 1988, juntamente com a estabilidade do servidor (Art. 41) e o concurso público (Art. 37, inciso II), foram duríssimos golpes na perversa e criminosa cultura do patrimonialismo estabelecida no Brasil.
Até então, e desde os tempos do Império, grupos políticos e econômicos se organizaram para tomar de assalto o Estado através da ocupação da máquina administrativa e das práticas do clientelismo e coronelismo, como regras na nomeação de pessoas em todas as esferas administrativas.
Dessa forma, perpetuavam-se no Poder por meio das oligarquias que dividiam entre si as modernas “capitanias hereditárias”, ou seja, os municípios, estados e a própria União.
Os princípios nominados no parágrafo inicial desse texto pareciam uma lufada de vento que poderia, quem sabe (!), varrer do nosso país o atraso que historicamente sempre esteve na raiz da concentração de renda, da pobreza e da miséria que assolavam – e seguem assolando – o povo e o país.
Com o concurso público e a estabilidade, servidores públicos não mais ficariam dependentes das indicações de governantes e políticos, muito menos seriam reféns de suas vontades e desejos. A população, por seu turno, teria à sua disposição os trabalhadores melhor habilitados e qualificados para as funções a serem desempenhadas.
Não durou, porém, muito tempo. Já na década seguinte à promulgação da “Constituição Cidadã”, o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso iniciou os movimentos que começaram a, não somente neutralizar as importantes conquistas legais, inscritas na Carta constitucional de 1988, como também a trazer de volta e aprofundar todas as mazelas do patrimonialismo no saque ao patrimônio público pelos novos grupos organizados.
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Eles chamavam eufemisticamente de “modernização do Estado” e reestruturação produtiva. Na prática, era a volta do velho com nova roupagem e mais fortalecido.
Apresentado como a solução de todos os males da administração pública, males esses decorrentes exatamente da ação patrimonialista dos grupos organizados, o denominado “terceiro setor” e as organizações “públicas” de direito privado passaram a se disseminar por todo o país fazendo a festa dos neopatrimonialistas que descobriam os prazeres do assalto aos cofres e às instituições públicas.
O terceiro setor é representado nessa suposta “modernização” da administração pública pelas denominadas Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Mas esses “parceiros privados” do Estado brasileiro são pessoas jurídicas de propriedade de particulares, que operam na administração de órgãos e instituições públicas segundo a lógica da iniciativa privada.
As organizações “públicas” de direito privado correspondem às fundações ditas “de apoio”, amplamente disseminadas em todas as áreas do Estado brasileiro, aos serviços sociais “autônomos”, como a Agência Brasileira de Apoio à Gestão do Sistema Único de Saúde (AgSUS) e às empresas “públicas”, como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
As organizações públicas de direito privado disseminadas em todo o país, vêm fazendo a festa dos neopatrimonialistas que desfrutam os prazeres do assalto aos cofres e às instituições públicas, enquanto se mantém deliberadamente frágeis, insuficientes e deficientes, os instrumentos de controle público de que dispõem os órgãos do Estado brasileiro.
Durante a segunda metade dos anos 1990 e as duas primeiras décadas do século XXI, todos os estados da federação foram, sem exceção, vitimados e tragados pela peste ideológica da “privataria”, neologismo cunhado pelo jornalista Elio Gaspari para designar pejorativamente o ‘modus operandi’ das privatizações brasileiras.
2.
O Rio Grande do Norte foi, porém, um capítulo à parte, nesse período. Por meio de uma grande mobilização, envolvendo conselhos de saúde, movimentos sociais, ministério público e poder judiciário, enfrentou e conseguiu debelar as experiências colocadas em prática por governos conservadores na capital Natal e, no plano estadual, em Mossoró.
Mas, após alguns anos de calmaria, apesar de persistentes e reiteradas ameaças, o monstro voltou.
O atual prefeito de Natal, Paulo da Costa Freire (União Brasil), um empresário conservador, eleito sob a bandeira do bolsonarismo, anunciou a entrega de quatro Unidades de Pronto Atendimento (UPA) a empresas privadas, avisando que, em seguida, o restante da rede de serviços do SUS na cidade irá a reboque. Para quem conhecendo o passado do prefeito-empresário, umbilicalmente ligado ao setor patronal, não foi nenhuma surpresa.
É de bom alvitre lembrar que ele era vice-prefeito na gestão que fez a fracassada experiência privatista em Natal entre 2009 e 2012, quando a então prefeita Micarla de Sousa foi afastada do cargo pela justiça em função das denúncias de corrupção na saúde.
Reportagem minuciosa de Conceição Lemes no site Viomundo, publicada no dia 30 de setembro – “A batalha pelas UPAs de Natal: Militância do SUS 1 x Gestão Paulinho Freire 0” – mostrou passo a passo como o processo foi deflagrado e todos os movimentos que foram feitos por parlamentares, conselhos de saúde, sindicatos e movimentos sociais até a suspensão determinada pelo Poder Judiciário.
Através do vereador Daniel Valença e da deputada federal Natália Bonavides, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT), começamos uma mobilização junto aos movimentos sociais, conselhos de saúde e sindicatos.
Embora inicialmente uma ação na Justiça não tenha tido êxito, serviu para despertar a atenção do Tribunal de Contas do Estado (TCE), que designou dois servidores, Jadson Anderson Medeiros da Silva e José Luiz Moreira Rebouças, para realizarem uma auditoria no processo de privatização. Foi o suficiente para que viesse à luz um parecer recomendando a sua paralisação.
Seguiram-se audiências com o procurador-geral, Luciano Ramos, e com a procuradora do Ministério Público de Contas, Luciana Ribeiro Campos, oportunidades em que manifestamos as preocupações com as ilegalidades constantes no processo e a disposição para acompanhar, pari passu, tudo o que a ele dissesse respeito. Concomitantemente, uma audiência pública na Câmara Municipal de Natal, com participação massiva, possibilitou significativa ampliação da mobilização e maior acúmulo de forças.
A vereadora Samanda Alves, do Partido dos Trabalhadores, também realizou uma Sessão Popular onde pudemos denunciar e debater a situação da Rede municipal, apresentando propostas para melhorar a qualidade dos serviços prestados à população e mobilizando importantes setores do movimento social.
3.
Uma nova ação judicial dos mandatos de Daniel Valença e Natália Bonavides, apresentando recurso ao Poder Judiciário, com o acréscimo de novas informações apresentadas pelos auditores do TCE, conseguiu dessa vez uma resposta positiva com a determinação de suspensão do processo de privatização em curso.
O parecer pela suspensão, apresentado no Pleno do TCE pelo conselheiro relator Marco Antônio Montenegro, teve um pedido de vistas do conselheiro George Soares, que negou a tutela, mesmo concordando com todas as flagrantes e inúmeras ilegalidades detectadas e apontadas nos devastadores relatórios dos auditores e da procuradora.
George Soares justificou sua negativa sob a argumentação, para nós incompreensível e injustificável, de que o judiciário já havia se manifestado pela suspensão e que portanto não haveria necessidade de uma manifestação do TCE com o mesmo teor.
Num contexto histórico nacional caracterizado por privatizações que acontecem em cadeia, sem praticamente nenhuma reação dos movimentos sociais, não há dúvida de que o que conseguimos em Natal, com a participação decisiva de companheiros parlamentares do PT, é um excepcional exemplo de que é possível derrotar os privatistas do SUS e do Estado brasileiro.
As privatizações no SUS, e em outros setores da administração pública, não são inexoráveis, inevitáveis, resultantes da “modernização”. São, ao contrário, decisões que resultam de uma opção política e ideológica. É assim que devem ser vistas e é assim, como parte dos enfrentamentos políticos e ideológicos que precisamos travar, que deve ser combatida.
Temos clareza que a gestão municipal da capital potiguar não desistiu e que voltará com toda a força. Temos certeza de que continuará sendo uma luta profundamente desigual e com poucas chances de nossa vitória no final.
Mas temos certeza, também, de que não podemos assistir de braços cruzados à destruição dos nossos sonhos e do nosso projeto de Nação, de sociedade e de vida. Resta-nos a capacidade de luta e a ação política.
Já estamos nos articulando para as novas batalhas que fatalmente virão. Precisamos fazer valer a lei no que diz respeito ao papel dos Conselhos de Saúde na fiscalização e na deliberação das políticas de saúde.
Precisamos fazer valer os Planos Plurianuais de Saúde (PPA) e as Programações Anuais de Saúde (PAS).
Precisamos enfrentar o processo de destruição que está em curso no debate jurídico-legal, mas também e principalmente na política.
As terceirizações e as demais formas de privatização são a volta e consolidação do assalto por grupos políticos e econômicos ao Estado brasileiro. São formas perversas de precarização e exploração dos trabalhadores. São formas de espoliação do patrimônio público e de comprometimento da qualidade do serviço prestado à população.
Não abriremos mão do SUS conforme preconizado pela Reforma Sanitária, das nossas propostas alternativas e sintonizadas com os princípios elencados na Constituição Federal, de contratualização direta entre o serviço e o correspondente nível de gestão, promovendo autonomia administrativa e financeira ao serviço, como alternativa concreta aos “parceiros privados”e viabilizando a gestão pública e a participação social em saúde (“controle social”), onde quer que haja uma unidade do SUS.
Não abriremos mão da profissionalização da gestão com o estabelecimento de critérios a serem atendidos pelos trabalhadores designados para ocupar cargos no SUS, como forma de extinguir o clientelismo e as indicações políticas e de qualificar a gestão.
Num país assolado pela desigualdade e exclusão social, mais do que nunca o SUS se faz necessário.
A atual luta contra os privatistas, reformistas e revisionistas em geral é, sem dúvida, o momento mais decisivo da sua história e da Reforma Sanitária.
Não é nenhum exagero afirmar que um futuro mais justo, includente, igualitário, solidário e democrático para o Brasil passa necessariamente pela afirmação definitiva do SUS de acordo com seus princípios basilares, público, estatal, integral, equânime e universal.
*Francisco Batista Júnior é farmacêutico hospitalar do SUS no Rio Grande do Norte e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (2006-2011).
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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