02/10/2012
Os antecedentes das próximas horas
Saul Leblon, na Carta Maior, sugerido pelo FrancoAtirador
Quis o destino que a resposta da Presidenta Dilma Rousseff à soberba ‘paulista’ de Serra acontecesse num simbólico 2 de outubro. Nessa data, há 80 anos, Getúlio Vargas derrotou a secessão da oligarquia de São Paulo, cuja marca de fantasia se atribui o rótulo de ‘revolução constitucionalista de 32’.
O tucano que se gaba de já ter disputado sete eleições para cargos executivos, enfrenta um crepúsculo de campanha — talvez de vida pública — perfilando assim no lado que lhe compete na história. Em 12 de setembro, ao ranger do chão da candidatura que pode marcar a sua despedida política, Serra vestiu a farda da nostalgia separatista. E evocou prerrogativas pré-republicanas sobre o eleitorado de São Paulo. Como um guardinha de 32, desengavetou a carabina da resistência à construção do Estado nacional, implementada então por Getúlio Vargas. E apontou a mira contra aquela cujo cargo e trajetória política simbolizam a presença de Vargas no Brasil atual.
“Ela vem meter o bico em São Paulo; ela que mal conhece São Paulo, vem aqui dar palpite”, disparou o tucano para gozo da mídia oligarca que se esponjou em manchetes nostálgicas. A filiação da frase foi captada pela Presidenta gaúcha Dilma Rousseff. Uma saraivada de recados históricos soterrou o tucano na sua resposta. Em um palanque na periferia de São Paulo, junto a um conjunto popular, ao lado de um líder operário que ultrapassou as expectativas mais otimistas de Getúlio e se fez presidente por duas vezes, bem como do adversário direto de Serra no pleito municipal, Fernando Haddad, Dilma foi ao ponto.
Deu uma lição de republicanismo ao porta-voz do apartheid conservador nos dias que correm.
Disse a Presidenta : ”Eu morei na Celso Garcia; lutei contra a ditadura aqui; fui presa política em São Paulo. Foi pelas liberdades, pelo direito de cada um dos paulistas e dos brasileiros de meter o bico em todos os assuntos que eu lutei aqui em São Paulo. Devo a São Paulo não só respeito, mas gratidão por ter me protegido. Por isso, quem vai governar essa cidade é muito importante para a presidenta. Eu estou aqui metendo o bico em uma eleição porque para o Brasil, São Paulo é muito importante. E não tem como dirigir o Brasil sem meter o bico em São Paulo”
Em síntese, ela explicou a sinhozinho Malta que, desde Getúlio, São Paulo não é mais uma sesmaria consuetudinária dos endinheirados. Seu povo não compõe um protetorado eleitoral tucano; e ela, a exemplo de Vargas, em 30 e em 50; de Lula, em 2002 e 2006, não se sujeita às regras de quem arrota retórica liberal. Mas dispensa ‘aos de fora’ – os ‘baianos’, os gaúchos, os operários, os comunistas – as armas da capangagem política mais conveniente à ocasião.
Ontem, a secessão à bala; hoje, o golpismo conservador calibrado pela fuzilaria interrupta do bombardeio midiático.
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Não cometerá desatino histórico quem incluir na engrenagem dessa cortina de fogo o circo criado em torno do julgamento do processo 470. Em alguma medida, neste caso também, são ‘os de fora’ que estão sendo julgados, sob critérios de uma exceção definida e vocalizados pelos d ‘de dentro’, através do seu aparato midiático.
É o PT que surgiu de baixo em afronta à regra não escrita dos partidos feitos pelo e para o dinheiro grosso comandar a vida do Brasil miúdo. São lideranças que, ademais das concessões e renúncias — e por mais que às vezes remetam à imagem do cardume exaurido levado pela correnteza depois de vencer os pedrais da piracema — demarcaram um campo popular de extensão inexistente no Brasil até então. E inédito no mundo redesenhado pela derrocada do projeto socialista, após a queda do Muro de Berlim, em 1989.
Foi o contraponto dessa gênese de vigor paradoxal que atraiu para o PT o olhar da esperança progressista mundial; mas também o ódio tenaz dos que imaginavam ter erradicado ‘essa raça para sempre’, com o efeito dominó subsequente ao colapso da ex-URSS e da supremacia neoliberal.
Três vitórias presidenciais sucessivas abalaram as certezas dos que consideravam questão de tempo destruir a exceção petista dentro das regras do jogo. Não é preciso ser de esquerda para admitir que esse abalo influencia nesse momento a redefinição das fronteiras da norma, do bom senso e da isonomia no julgamento em curso no STF.
Está no ar, mas é de tal maneira denso que se pode cortar com uma faca: uma engrenagem gigantesca se move para desacreditar por outros meios, aquilo que se consolidou como referência de luta pela democracia social no país e no imaginário do povo.
Não se poupa aqui de reprovação a prática do caixa 2 de campanha. Sobre isso Carta Maior já disse e sublinha: ela amesquinha projetos progressistas, aleija suas lideranças, desmoraliza a soberania do voto popular.
O que causa espécie, todavia, é o esforço concentrado para distinguir o caixa 2 cometido pelos ‘fora’ (a ‘companheirada’, no tratamento quase racial do jornalismo isento), daquele precedido na natureza e no calendário pelos ‘de dentro’.
Tal malabarismo assumiu dimensões e contornos de sofreguidão caricatural na a pulsão condenatória de mídias e togas, que nunca antes , ‘nem depois’, vaticinou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos em entrevista à Carta Maior — reproduzirão o mesmo tratamento para igual delito.
Quando Vargas derrubou as oligarquias da República Velha que se perpetuavam na Presidência à base do Café com Leite, irritaria sobremaneira aos ‘liberais’ paulistas a legalidade concedida aos sindicatos operários e ao Partido Comunista.
O apoio do novo governo a um aumento salarial reivindicado por uma greve geral que paralisou 200 mil trabalhadores no Estado de São Paulo pode ter sido a gota d’água da ‘intentona constitucionalista’.
Muitos estudiosos enxergam nesse entrelaçamento histórico a semente de um conflito entre duas linhagens frontalmente distintas de democracia e de projeto para o país: de um lado, um Brasil ordenado pela democracia social; de outro, uma sociedade circunscrita pela democracia de recorte liberal, vista pelo tenentismo mais aguerrido dos anos 30 como uma farsa. Os ecos desse conflito ainda comandam a disputa política brasileira no século XXI. Foi isso que o dedo de Dilma apontou em direção a Serra no discurso desse 2 de outubro encharcado de referências históricas implícitas e explícitas.
É de alguma maneira a extensão desse embate que se assistirá nas próximas horas no STF, no julgamento de lideranças petistas, entre elas José Dirceu e Genoíno.
O calendário ordenado com o definido propósito de tornar eleitoralmente desfrutável esse momento autorizará o historiador do futuro a arguir se aquilo foi um julgamento isento. Ou terá sido mais um capítulo da tentativa recorrente, desde 1932, de impedir que os ‘de fora’ venham meter o bico nos destinos da ‘São Paulo ampliada’, que é como os ‘de dentro’ enxergam o Brasil.
Postado por Saul Leblon às 19:17
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