Dr. Rosinha: Jogadores têm de se cuidar para não acabar como Midas
Tempo de leitura: 4 minDr. Rosinha, especial para o Viomundo
Reafirmo: sou dono do tempo. Vamos envelhecendo e nos tornando donos de histórias. Alguns, de patrimônio. E, todos, donos de seu passado.
Passamos a nos referir ao passado como “no meu tempo”. No “meu” tempo, que é somente meu, de infância e adolescência, comecei a gostar de muitas coisas, entre elas, o futebol.
Como jogador, era um perna de pau mas com alguma flexibilidade. Tinha velocidade e conseguia dar alguns dribles. Perna de pau em relação a muitos da minha idade e da minha turma.
Alguns da turma, pelas condições de vida (trabalhar no pesado da roça o dia todo) e dos campos em que jogávamos (esburacados, sem grama, inclinados, etc.), eram verdadeiros craques, sim.
Por ser perna de pau, sabia dos meus limites. Por isso, nunca sonhei em ser um bom jogador de futebol e da bola viver. Eu me dediquei aos estudos e continuei, nos finais de semana, a correr atrás da bola. Tornei-me, também, um mero torcedor do Santos e do Botafogo [do Rio de Janeiro].
No meu tempo de torcedor, o uniforme principal do Santos Futebol Clube era todo branco. Só o distintivo do clube “manchava” o lado esquerdo do peito, bem em cima do coração.
O Botafogo tinha a camisa listrada de branco e preto e, em cima do peito, uma solitária estrela.
E, dentro dos campos, imagina você, Zito, Pelé, Pepe, Pagão, Zagalo, Didi, Nilton Santos, Garrincha e tanto outros craques que precisaria de uma página para listá-los.
No meu tempo, jogador era a cara, a identidade do time. Raramente trocavam de clube. A maioria iniciava e terminava a carreira dentro do mesmo clube, e a camisa do time era suada com amor.
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Hoje, não são clubes. São empresas. O amor ao clube foi substituído por quanto a empresa paga para jogar. Os antigos dirigentes de clubes foram substituídos por espertos empresários, quando não por corruptos ou máfias e mafiosos.
Os limpos (em todos os sentidos) uniformes do passado vestidos pelos atletas são hoje verdadeiro outdoors, neles vende-se de tudo: seguros, empréstimos, carros, medicamentos, produtos de limpeza, etc.
Conta Eduardo Galeano em seu livro “Futebol – Ao Sol e à Sombra” (L&PM Editores, 1995, p. 108) que “em meados dos anos 50, o Peñarol assinou o primeiro contrato para estampar publicidade nas camisas do time”. Na primeira oportunidade após o contrato assinado, “dez jogadores apareceram com o nome de uma empresa no peito. Obdulio Varela (um dos uruguaios de 1930) jogou com a camisa de sempre, e explicou:
— Antes, nós, os negros, éramos puxados por uma argola no nariz. Este tempo já passou.
A partir dessa frase, posso entender que a grande parte dos jogadores joga com a argola no nariz, colocada por empresas, empresários e, às vezes, máfias.
Domingo passado jogaram Santos e São Paulo. Este último venceu o clássico do campeonato paulista de futebol. No dia do jogo, qual foi a manchete da Folha de S.Paulo? “Clássico contrasta opulência do Santos com penúria do São Paulo”.
Não a opulência do futebol de um e a penúria do outro, mas a opulência em termos de arrecadação financeira. Claro que a arrecadação tem relação com o futebol, mas não foi disso que tratou a matéria.
O texto da Folha inicia dizendo que o “Santos de Neymar aprendeu a mágica de transformar futebol em dinheiro”, enquanto o São Paulo ainda tenta “inventar o seu toque de Midas”.
Abro parênteses: Midas é um personagem da mitologia grega. Diz a história que Midas encontrou Sileno, mestre de Baco, bêbado e perdido. Reconheceu-o e tratou-o com respeito e hospitalidade. Em seguida, levou-o a Baco. Em reconhecimento a este ato, Baco ofereceu a Midas o direito de escolher uma recompensa.
Creio que, sem titubear, Midas pediu que tudo que ele tocasse fosse transformado em ouro, e assim foi feito. No caminho de volta, Midas tocou uma pedra e esta se transformou em ouro. Já em casa, abraçou a filha, que se transformou em ouro. Quando foi comer, tocou o pão, e esse se transformou em ouro.
Resumindo: tudo que tocava virava ouro. Para não morrer de inanição, teve que pedir a Baco que desfizesse o encanto.
Fecho parênteses. Quem tem um Midas (Neymar) no time, tem o outdoor mais caro ou a possibilidade maior de colocar a argola no nariz de seus atletas.
O toque do Midas (Neymar e equipe) fez com que o uniforme do Santos, como o de muitos outros times, que no meu tempo era limpo, seja hoje uma poluição visual pelo excesso de propaganda. É tão poluído que parte dos torcedores já protestam.
Porém, essa placa ambulante gera para o Santos R$ 32 milhões por ano. Até o calção, num toque de Midas, domingo passado, virou ouro.
Midas, ou melhor, Neymar e equipe renderam para o Santos, nos últimos três anos, um aumento de quase 450% na propaganda.
Mais uma vez abro parênteses: Após o fato mal sucedido de tudo que tocasse virar ouro, Midas virou seguidor de Pã, deus dos bosques. Pã afirmou que tocava melhor que Apolo (deus do sol), e o desafiou para um “duelo musical”.
Pã tocou a sua flauta e Apolo, a sua lira. Tmolo [um deus das montanhas da mitologia grega] deu o prêmio a Apolo, o que deixou Midas enfurecido. Indignado, Apolo deu a Midas orelhas de asno. Fecho parênteses.
Torcedores e jogadores têm que se cuidar para não terminar como Midas. Há que se cuidar para não serem úteis para empresas, empresários ou até mesmo máfias do futebol.
Por ser dono do tempo, não torço por nenhuma empresa.
Dr. Rosinha, médico com especialização em Pediatria, Saúde Pública e Medicina do Trabalho, é deputado federal (PT-PR). No twitter: @DrRosinha
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