Afasta de mim esse cálice
Por Jordan Michel-Muniz*
Por que julgar os envolvidos num golpe de Estado fracassado?
Se não deu certo, por que punir alguém?
Uma resposta preliminar é que só podemos julgar e punir a tentativa de golpe exatamente porque ela fracassou.
Por um motivo elementar: golpes vitoriosos calam, prendem, torturam e matam opositores.
Golpistas bem-sucedidos fazem da injustiça a sua justiça, e ai de quem reclamar.
Em geral, se o golpe tem êxito juízes não arriscam seus nababescos salários repletos de ricos penduricalhos para defender o país, as leis, e menos ainda os pobres e desfavorecidos.
Os tribunais costumam silenciar e até participar na violação da vontade popular.
As reações das cortes variaram historicamente, da frouxidão moral e submissa do STF em 1964 à adesão imoral em 2015 – na aprovação do processo ilegítimo de impeachment contra Dilma –, sem esquecer a farsesca ratificação da condenação de Lula no TRF-4, em 2019, visando impedi-lo de concorrer à presidência.
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A conivência com tais golpes sufocou anseios sociais, com incontáveis vítimas, em especial as pessoas que foram perseguidas.
Muitas não sobreviveram para dizer: “Ainda estou aqui”.
Temos uma dívida com gente que resistiu bravamente e acabou torturada e morta.
Desta gente há corpos que permanecem desaparecidos, impondo a continuidade da tortura às suas famílias.
Entretanto, eu contornei as perguntas que abrem o texto, ao falar de negligências judiciais que causaram danos sociais, dizendo que hoje somos capazes de julgar, mas não por que é importante e necessário fazê-lo.
Tal volteio é intencional, para melhor enxergar, e contém parte da resposta.
A possibilidade de enquadrar criminalmente o golpismo vira, automaticamente, dever de agir assim, como desagravo de golpes passados e como medida preventiva e dissuasória.
O fato de podermos julgar quem nos agrediu converte-se na exigência de responsabilizar os agressores, para evitar que pela insistência nos tornem, enfim, incapazes de reagir.
Nossa capacidade vira obrigação ético-política, por isto é essencial punir quem tem culpa.
Quando somos testemunhas de um crime, a omissão em denunciar os culpados é violência similar à cumplicidade nele.
Desta vez, o STF e o Procurador-Geral da República merecem aplauso, por honrarem seus encargos constitucionais, apesar das ameaças internas e externas que sofrem.
Não julgar Bolsonaro e seus asseclas ofenderia a memória de todas as pessoas assassinadas por ditaduras anteriores no Brasil e no mundo, além de nos sujeitar a novos conluios a qualquer tempo, e de expor as gerações futuras, desavisadas, a este infame destino.
Por isto o julgamento da trama golpista, que emergiu no 8 de janeiro de 2023, em Brasília, deve ser celebrado como marco histórico reparador da conturbada democracia brasileira.
Ao contrário do que sustenta o bando seguidor dos golpistas, não se trata de vingança ou revanchismo dos vencedores contra os derrotados.
Na verdade, muitos outros crimes de bolsonaristas relacionados ao golpe foram perdoados, na medida em que o Ministério Público se absteve da persecução penal.
A lista é grande: difamação nas redes sociais de membros do Poder Judiciário, difusão de ataques à lisura do sistema eleitoral e obstrução da liberdade de votar em estados com maioria petista, para lembrar apenas três casos.
Muito mais gente teria que ser julgada e punida, se fôssemos acossar os vencidos: todos que delinquiram, e sabem que o fizeram, devem reconhecer seus erros e agradecer, pois foram anistiados pela indulgência da lei ante seus crimes.
Não me refiro somente aos tontos lobotomizados pelas tevês, rádios, imprensa e mídias sociais, esta enorme massa de manobra que é analfabeta política e atuou contra a democracia.
Importam realmente os que controlam tais meios de (des)informação, bem como pastores com pregação antidemocrática, empresas de robôs de multiplicação de mensagens fraudulentas… Há centenas de possíveis réus adicionais, absolvidos sem indiciamento.
O próprio bolsonarismo, como prática fascista dos piores preconceitos – racismo, machismo, xenofobia, homofobia… –, deveria sentar no banco dos réus.
Ele fere a dignidade humana e a igualdade política, sendo incompatível com quase todos os princípios, direitos e garantias fundamentais listados na abertura da Constituição do Brasil.
Nossas leis são demasiado condescendentes ao permitir que o fascismo bolsonarista transforme o texto constitucional em letra morta.
Mas, enquanto no STF o julgamento dos golpistas segue no trote lento do amplo direito à defesa, a Câmara Federal galopa para votar anistia para eles.
É o pior Congresso de todos os tempos, mas se ousarem anular punições aplicadas pelo STF, praticando novo golpe, eles próprios deverão ser punidos.
A paciência do povo tem limite, não aceitará o golpe parlamentar.
Golpe nunca mais!
Tortura nunca mais.
Afasta de mim esse cale-se.
* * *
P.S.: Para quem não viveu sob a ditadura militar, o título é verso da música Cálice, de Chico Buarque e
Gilberto Gil. O sentido ambíguo, refletido na última frase do texto, foi notado pela censura dos golpistas de 1964. A letra denuncia desigualdades sociais e a repressão assassina imposta pelos militares, e critica à própria censura, que proibiu a canção.
*Jordan Michel-Muniz é ativista social, mestre e doutor em filosofia pela UFSC, e pesquisa temas ligados à geopolítica, democracia e injustiças.
Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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