Doutor João Odilo: “Até quando iremos tolerar isso, meu Deus?”

Tempo de leitura: 4 min

por João Odilo Gonçalves Pinto, enviado por e-mail Gustavo Feitosa

“Caros Colegas

Geralmente engulo desejos agudos de desabafar os problemas do mundo porque palavras não mudam nada mesmo, no outro dia a gente esquece e ainda fica com fama de rabugento. Ontem, no entanto, a sequência de eventos foi tal, que não vejo outra saída. Então aí vai!

Os eventos que ensejaram esse meu desabafo foram o somatório de, digamos, duas ocorrências no plantão de ontem durante minha aula. Primeiro, o fato de haverem três apendicites, duas obstruções intestinais, uma colangite e outras tantas amputações de urgência que estavam numa fila insana aguardando por uma cirurgia nos corredores do hospital. Havia casos de alguns dias de espera. Pasmem que isso é quase rotina por lá, mas ontem estava pior. No plantão, apenas um cirurgião pois o outro estava de férias e não foi substituído, um anestesista já ocupado e nenhuma vaga na sala de recuperação ou UTI, nenhuma sala de cirurgia livre.

Para completar a folia da insanidade, aparece nosso querido Patch Adams com uma comitiva enorme de palhaços onde já não cabia mais ninguém. Com safonas e brincadeiras diante do olhar sem graça daquela gente doente e dos saltitados das equipes de enfermagem. Ajudem-me, por favor, a entender porque justo eu, que sempre adorei aqueles palhaços na enfermaria, achei a presença deles na emergência uma falta de respeito sem tamanho. Provavelmente ele não sabia que aquela senhora com sonda nasogástrica e obstrução intestinal com quem ele conversava e de quem não recebia reação alguma, esperava há 2 dias por uma cirurgia que não seria realizada pelo menos nas próximas 24h.

Acho que não é preciso dizer que os serviços de emergência do país são ruins, superlotados, desumanos, em que vidas são perdidas por falta de atendimento adequado. Há momentos, entretanto, em que fico me perguntando se algumas pessoas não estão por dentro do assunto, ou se é só anestesia coletiva mesmo. Convivo com esse problema desde cedo na minha carreira e tenho visto como se agrava a cada dia. Frotinha, Frotão e HGF são os hospitais de emergência adulta de Fortaleza e frequentei a todos como estudante e depois como profissional. Aprendi com meu pai, com quem dei os primeiros plantões de minha vida, a tratar aquela gente com respeito. É esse respeito que nos permite reduzir nossas diferenças para que haja compreenssão, decência, humanidade no atendimento! Aprendi com meu velho uma coisa meio óbvia, mas que muitos se esquecem: que tratamos as doenças tratando as pessoas bem! Esses são valores que têm que ser cultivados nos médicos. Sempre tive a idéia de que a busca em ser um bom médico é indissociável da busca em ser uma boa pessoa!

Atualmente, como professor, sem o viés assistencialista, levo meus alunos a emergência do Hospital Geral com um olhar ainda mais sensível. Escutamos juntos inúmeras histórias de agonia e sofrimento. Muitos dos casos em que nos envolvemos, além de não serem resolvidos de imediato, como gostaríamos que fosse conosco, ainda são agravados pelo ambiente desumano em que ocorrem os atendimentos. Nos corredores e no hall do hospital, em macas improvisadas como enfermaria, quase ao chão, se amontoam pessoas numa quantidade que por vezes passa de 100. As equipes apelidam o local de piscinão para vocês terem uma idéia. Já pensei em fazer 365 fotografias diárias do mesmo local, para mostrar o pouco que se faz para mudar aquela situação. Ou talvez pôr uma webcam em tempo real daquele absurdo. Não sei. Apenas reportagens pontuais país afora, ou como a que acabo de ver no jornal local não parecem surtir efeito veja aqui).

Que inveja não deve sentir a medicina de emergência do SUS vendo outras áreas como os transplantes por exemplo. Com equipes bem pagas, leitos reservados, material cirúrgico exclusivo, oferta de equipes que geralmente dá conta dos poucos doadores que surgem. Orgulho para sociedade em cada procedimento, não é difícil de encontrar apoio em qualquer círculo social. Na emergência pública é o contrário: todo mundo é mal pago, não há leitos, não há material, a oferta é insuficiente e para sociedade é motivo vergonha! Talvez seja porque no SUS a lista de transplantes seja para ricos e pobres enquanto a lista da emergência é só para os pobres. Não tenho nada contra os transplantes, muito pelo contrário, também tenho orgulho, mas me aproprio desse exemplo em defesa dos esquecidos serviços de pronto- atendimento.

O Hospital das Clínicas da UFC [Universidade Federal do Ceará] fechou as portas de sua emergência nos anos oitenta para nunca mais a reabrir. Em seu lugar, prédios para tratamentos do cancer, laboratorios, bloco cirurgico renovado, transplantes, novos serviços. Nada que não reflita o que vem acontecendo mundo a fora com a medicina, cada cada vez mais especializada. Isso é outra discussão, eu apenas menciono para tentar entender as raízes do nosso abandono da medicina de urgência, já que isso, meus caros, não aconteceu por aí mundo afora. Aconteceu conosco. E vivemos mais esse contraste de ter serviços e tratamentos sofisticados enquanto ainda se morre de apendicite ou de trauma sem conseguir uma cirurgia!

O que sinto neste momento é que, enquanto os problemas de saúde mais imediatos não puderem ser resolvidos, fica difícil comemorar qualquer conquista que seja no SUS. Resolver o problema das emergências deve ser encarado como uma questão de honra para quem está envolvido com a saúde. Enquanto esta situação persistir a impressão é ficamos todos com as mãos sujas. Basta! Até quando iremos tolerar isso meu Deus? O pior é que nunca vi uma greve de médicos por uma causa que não envolva reajuste salarial. Pede-se melhores condições de trabalho, mas a discussão acaba quando sai o aumento. E assim vamos tolerando trabalhar nesses ambientes insalubres e anestesiados perante o sofrimento alheio. Pior ainda, formando médicos que perambulam por esses lugares se contagiando com essa insensibilidade toda, correndo risco de concluir que isso é normal! Logo o tratamento de emergência minha gente! Logo a emergência! Campeã de seriados americanos, inspiradora de todo jovem que sonha ser médico. A medicina de urgência é bonita de se fazer. É heróica, é emocionante, é gratificante. O ato de oferecer alívio a uma dor, por exemplo, tem que ser visto como um momento mágico para qualquer médico! O contrário tem que ser visto como crueldade!

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Isso tudo é muito triste meus amigos. Por isso conclamo a universidade a adotar a bandeira da luta pela resolução do problemas das Emergências do SUS. A solução passa por pressões políticas, que podem ser incômodas de se fazer, mas pode passar também por uma incansável divulgação dessa realidade. Algo tem de ser feito.

Emergência não pode esperar!”

João Odilo Gonçalves Pinto é cirurgião do aparelho digestivo em Fortaleza (CE)

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