À espera da pílula do bom consumidor

Tempo de leitura: 3 min

por Luiz Carlos Azenha

Caiu nas minhas mãos, recentemente, o livro “Feios, sujos e malvados sob medida”, de Luis Ferla, que tem como subtítulo “A utopia médica do biodeterminismo”.

Diz o autor, a certa altura, sobre um uso particular da Medicina, entre os anos 1920 e 1945, no Brasil:

As ações humanas seriam determinadas pela estrutura bio-antropológica de cada um, portadora de tendências que iriam se desenvolver mais ou menos conforme o meio social. As ações ‘anti-sociais’ corresponderiam a desvios biológicos em relação a um padrão estabelecido como normal. Isso fez dos médicos atores centrais na nova criminologia.

Era o tempo de Cesare Lombroso, que desembocou em Joseph Mengele.

A leitura do livro me fez lembrar de “War Against the Weak”, de Edwin Black, que tem como subtítulo “Eugenia e a campanha dos Estados Unidos para criar uma raça superior”.

Já reproduzi a tradução de um pequeno trecho do livro, aqui.

Ele mostra como a pseudociência se desenvolveu simultaneamente nos Estados Unidos e na Alemanha, com os resultados trágicos que todos conhecemos.

Quem provocou meu interesse em leituras mais aprofundadas sobre o assunto foi a historiadora Conceição Oliveira, pouco antes de uma viagem que fizemos à Namíbia.

Em Windhoek fomos a um museu pesquisar sobre o genocídio dos hereros, que o mundo praticamente desconhece. O genocídio foi praticado pelos colonizadores alemães, quando a Namibia ainda era a Deutsche Südwestafrica.

Parênteses: há muitos crimes coloniais dos europeus na África que não mereceram o interesse de historiadores; os campos de concentração britânicos na África do Sul e no Quênia estão entre eles.

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Fecha parênteses.

Ao contrário do que muitos imaginam, os primeiros campos de concentração alemães não foram implantados durante a Segunda Guerra Mundial, mas na Namíbia, durante a matança dos herero.

Cabeças de vítimas das atrocidades eram ‘exportadas’ para a Alemanha, para estudos dos eugenistas.

Era o tempo do homem branco europeu e seu “fardo” de civilizar, mercantilizar e cristianizar pardos, negros e amarelos ‘impuros’.

Frequentemente escravizando, matando, roubando terras ou recursos minerais, que ninguém é de ferro.

Era a medicina a serviço da causa do colonialismo: a inferioridade dos não-brancos justificava os crimes cometidos contra eles.

Hoje em dia corremos o risco de assistir à reprise disso, em torno da genética e da neurociência.

Esta tarde, no trânsito, ouvia a entrevista de um pesquisador que escreveu um livro sobre o cérebro.

O entrevistado discorreu longamente sobre a relação entre porções específicas do cérebro e comportamentos humanos, como a impulsividade e o amor.

O sonho da indústria farmacêutica, obviamente, é identificar com precisão a relação entre áreas muito específicas do cérebro ou genes e comportamentos sociais, o que abre espaço para inventar a pílula do amor, a pílula do bom comportamento (epa! essa já existe) e a pílula do consumo.

Não ocorreu, nem à entrevistadora, nem ao entrevistado, lembrar que somos essencialmente seres sociais, históricos.

Aliás, inventar seres a-históricos serve para provar nossa incapacidade de mudar o mundo e reduzir nossa capacidade de escolha: só nos resta escolher entre Coca ou Pepsi, Toddy ou Nescau, Samsung ou Sony.

Como apontou Alípio Freire, aqui, as manifestações do fascismo estão por toda parte.

Na política dos que se dizem apolíticos, por exemplo.

Podemos dizer que a crise de representação do Congresso brasileiro não nasce apenas do fato de que Jaqueline Roriz foi absolvida, mas da injustiça intrínseca a um modelo de democracia que, como existe, serve apenas para mascarar a injustiça.

Nem os avanços experimentados durante o governo Lula, por exemplo, foram incorporados numa Consolidação dos Direitos Sociais, como propõe o presidente do IPEA, Márcio Pochmann.

A participação popular nas decisões é pífia, em todas as esferas do poder.

Por isso, boas vindas à direita que canta “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Muito embora a proposta dela seja promover uma política “apolítica” e de apostar na crise de representação como forma de mascarar a falta de votos, que pelo menos sirva para acordar a esquerda que se transformou, no Brasil, numa força essencialmente do status quo, na gestora da ‘modernização conservadora’.

Politizar e, como diria a Maria Frô, “historicizar” é preciso.

Leia também:

Alípio Freire: O fascismo bate à porta

Sara Robinson: A ascensão do fascismo nos Estados Unidos

Conceição Tavares: Vivendo a treva, na mão dos ultra-liberais

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