Brasil “universal” do futebol globalizado produz cerimônia sem samba
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Um banquinho e um cavaquinho: por que não?
Abertura da Copa deixa samba carioca de fora
Claudia Leitte causa saia justa para a Fifa ao posar com camisa do Barcelona
11/06/2014 13:34 / ATUALIZADO 11/06/2014 14:36
SÃO PAULO — Pode ser tudo a abertura da Copa do Mundo no Brasil — menos uma festa de bamba. No evento que marcará o início da feira de futebol, nesta quinta-feira, no Itaquerão, não haverá um representante sequer da maior manifestação cultural do país anfitrião. O samba do Rio de Janeiro e seus artistas foram ignorados na seleção de estrelas escaladas para cantar a música-tema do Mundial, “We are one” (“Somos um só”), antes de a bola rolar para Brasil e Croácia. O time terá os americanos Pitbull e Jennifer Lopez, o grupo Olodum e a cantora de axé Claudia Leitte. Nada de Mangueira, nem Beija-Flor muito menos Portela — só a Pérola Negra, 13ª colocada (e rebaixada) no carnaval paulistano em 2014.
A omissão foi uma das saias justas na entrevista de apresentação da cerimônia, no fim da manhã, no Itaquerão ainda por ser concluído para o início da Copa. Ao ouvir a pergunta sobre o samba, a belga Daphné Cornez, diretora-artística do espetáculo, fez uma longa pausa e, com um sorriso amarelo, alegou ser “uma responsabilidade muito grande” arriscar-se no principal ritmo do país.
— Não poderia fazer melhor do que os brasileiros — esquivou-se.
Claudia Leitte veio em seu socorro, para lembrar que nasceu em São Gonçalo (onde ficou cinco dias, por causa do parto prematuro de sua mãe).
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— Sou carioca! — defendeu, esquecendo-se que os nativos das cidades do Estado do Rio, caso dela, são, na verdade, fluminenses.
Está prometida para o terceiro ato do espetáculo, o dos ritmos, uma referência ao samba de roda, a variante característica da Bahia. A apresentação contemplará também a dança gaúcha e o frevo. O presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues, também defendeu os critérios do evento, lembrando que o grupo musical esteve na Copa da África do Sul, quatro anos atrás. A música, ponderou ele, é universal.
— O samba veio da África, chegou à Bahia e ao Rio. O ritmo é do Brasil. A alma brasileira estará em campo.
A organização do evento apressou-se em explicar que a escolha dos artistas era de responsabilidade da Sony Music, o braço fonográfico da corporação parceira da Fifa. Só que a gravadora conta, no seu elenco com bambas como Paulinho da Viola, Arlindo Cruz, Beth Carvalho e Neguinho da Beija-Flor. Nenhum deles entrará em campo amanhã.
Houve outros constrangimentos a serem vencidos pelos artistas. O americano Pitbull perdeu a paciência, diante da pergunta sobre a pouca identificação da música-tema, “We are one”, com os ritmos nacionais.
— A música fala por si. Temos de parar de pensar no que não fizemos. É Brasil o suficiente, sim. Esqueça aquilo que não tem. Fizemos uma música universal, todos nos esforçamos para isso.
João Jorge, de novo, conceituou.
— A música não é coreana, japonesa, americana, brasileira. É a música. Estamos falando de ritmo, algo que existe desde o começo da Humanidade. A Copa não é para resolver os problemas do mundo. É como drible de Garrincha, Pelé, Maradona, Messi, Neymar. Fala da diversidade humana.
Predominou, no discurso dos artistas e da diretora, a ideia de exaltar a diversidade e a alegria do Brasil, numa perspectiva universal. O primeiro ato da festa mostrará a natureza, o segundo as pessoas. No fim, entra a música oficial, cantada pelos dois americanos, o Olodum e a fluminense Claudia.
— Represento minha nação e a palavra que encontro para traduzir minha presença aqui é “gratidão” – desmanchou-se a musa do axé, impecável num vestido justo dourado, que deixava de fora um pedaço da barriga sarada. – Vou entregar toda a minha brasilidade a esta experiência.
A cantora não fugiu do assunto mais espinhoso, as manifestações prometidas para a Copa.
— Há uma mudança a ser feita e o país vive um momento positivo, louvável, de questionamento. É também um momento de celebração. Sou cidadã comum, uma brasileira como outra qualquer, fazendo o que sei: cantar para alegrar as pessoas. Se eu vou estar lá, é porque todo mundo pode.
Ela acabou protagonizando a derradeira saia justa da coletiva, quando foi atender o pedido de um jornalista catalão, que queria fotografá-la com a camisa do Barcelona. Claudia, solícita, foi atendê-lo, mas, ao apanhar o traje, foi interceptada por um aflito funcionário da organização, que tentou impedir a exibição dos patrocinadores do clube de Messi e Neymar: a Nike e a Qatar Airways, concorrentes da Adidas e da Emirates, parceiras da Fifa, esta entidade tão necessitada da inspiração que vem com a ginga dos bambas.
PS do Viomundo: O último parágrafo resume tudo. A FIFA é comércio, comércio e comércio. Nem o Olodum sobreviveu à cerimônia pastosa, higienizada e despida de alma que abriu a Copa. Foi uma ode disforme ao futebol globalizado, que está em todo lugar, mas em nenhum.
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