Claudia Wanderley: Yoga no Brasil, um trabalho, memória, verdade, justiça e reparação

Tempo de leitura: 5 min
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Por Claudia Wanderley

Foto da exposição ''Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim. Mortos e Desaparecidos Políticos: percursos pela Verdade e Justiça'', no Memorial da Resistência em São Paulo

Yoga no Brasil: um trabalho e nossas memórias

Por Claudia Wanderley*

Comecei a aprender yoga por volta de 1988 na UnB, ano da promulgação da nossa nova constituição no Brasil. Foi um esforço coletivo na época de pensar a natureza do estado democrático no qual gostaríamos de viver, uma época de muita esperança.

Cito essa data porque vou começar a trabalhar com o tema “memória, verdade, justiça e reparação” ligado a um projeto coletivo integrado na diretoria executiva de Direitos Humanos da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Por isso, resolvi contar para vocês como entendo o trabalho que estamos iniciando da perspectiva de meu aprendizado de yoga.

NOSSAS MEMÓRIAS QUE SEMPRE VOLTAM

O astronauta Edwin (“Buzz”) Aldrin andando na lua, em 20 de julho de 1969. Foto: NASA

A lua, na tradição do yoga, muitas vezes tem a ver com nosso estado emocional, nossa disposição psíquica.

Ela representa também um tipo de memória. Questões que não nos dispomos a enfrentar nos revisitariam periodicamente ou nós as revisitaríamos para finalmente poder lidar com elas?

Muitas das dificuldades que enfrentamos na nossa vida estão ligadas a fatos do passado, que não compreendemos apropriadamente.

Fatos não elaborados, ou não compreendidos, seguem transitando em nossa mente, como a lua crescendo e minguando, reavivando nossos sentimentos de ira, tristeza, frustração, culpa,  arrependimento, orgulho, triunfo…

Nossa vida fica perturbada – falo isso também por experiência própria, na qual yoga me ajudou muito.

Memória no yoga é diferente da memória que a gente entende no senso comum.

De acordo com a tradição, está tudo registrado em uma esfera metafísica, e esse registro está sempre lá à disposição como uma memória fresquinha contínua.

Então, a memória é vívida e não precisamos nos preocupar com ela. O interessante é podermos estar presentes.

Às vezes, em vez de aproveitarmos o momento presente, ficamos presos nas dores que causamos e nas que sofremos, nas possibilidades que não cumprimos e nas coisas que fizemos e entendemos que não deveríamos ter feito.

É uma fonte de adoecimento para quem vive esse contínuo retorno do passado e também para quem convive com isso.

O tempo presente é o que há de mais valioso, e viver conscientemente o aqui e agora é uma das prerrogativas da prática do yoga.

O PRESENTE PARA NÓS

Na nossa vida, a melhor opção é nos mantermos dentro de um espaço de vida saudável, com a disposição de dizer verdade, com a maior consciência possível sobre a nossa própria natureza, nos responsabilizarmos pela nossa parte nas relações que estabelecemos e ajudarmos em qualquer circunstância na preservação da vida.

No yoga, há referência a um tipo de equanimidade em relação à vida, um tipo de conhecimento ou sabedoria chamado pratibha (veja glossário, ao final), quando não puxamos pela intuição nem pela lógica, quando vemos o mundo como é.

Significa também nos vermos honestamente como somos e vemos os acontecimentos dentro de sua autenticidade.

É difícil, mas vale a pena cada esforço de aproximação deste modo de perceber as coisas do mundo.

NO CAMINHO PARA CASA …

A face norte do Monte Kailash, montanha considerada sagrada na região autônoma do Tibete

As montanhas em geral são consideradas como os melhores destinos nesta tradição.

O caminho para elas pensando nos Himalaias, também conhecidos como cordilheira do Himalaia — especialmente o monte Kailash –,  é muitas vezes associado à analogia do caminho pessoal na direção do próprio dharma (veja glossário, ao final).

Nos últimos anos, em espcial na pandemia, tenho percebido um retorno de questões violentas e sombrias que passamos durante a ditadura militar, questões gravíssimas e agudas que sabemos que ocorreram de 1964 a 1985 no país.

E, quando as olhamos com mais atenção, é possível perceber que essas questões não foram tratadas na esfera pública de forma apropriada, muitas vezes não foram nem reconhecidas como uma realidade.

Ou seja, eventos apagados, escondidos, sobre os quais até aqui não nos foi permitido dialogar  — como sociedade brasileira — de maneira sóbria e necessária.

E esses eventos agora voltam para serem reintegrados à nossa história coletiva.

E nós precisamos dialogar a respeito.

O diálogo pode ser um caminho. Falar sobre os acontecimentos da época e das suas consequências para nossas vidas é fundamental.

É o início de um processo de conscientização, que paulatinamente nos permitirá encaminhar as nossas questões, de maneira individual ou coletiva, e seguir em frente.

ESTABILIDADE PARA SEGUIR EM FRENTE

Estação de montanha em Pumditok, no Nepal, de onde é possível ver a cordilheira do Himalaia

Shiva, que é o pai do yoga, nos traz duas grandes referências de resolução deste tipo de questão.

A primeira é o cultivo de uma existência estável e sem agitação — avyagraya (veja glossário, ao final). Esta é uma atitude necessária para quem quer lidar com a realidade.

A segunda referência é ter no coração o caminho do dharma do qual Shiva cuida de forma zelosa, com um arco na mão — pinakine (veja glossário, ao final) e nos mostra que é possível viver desta forma, aqui e agora.

Na vida, as escolhas que fazemos não estão separadas de nosso caminho pessoal. Esse é o meu entendimento.

Não há como garantir que o trabalho vai frutificar, mas é possível compreender o que está nos motivando a fazer uma atividade ou outra.

É sempre bom lembrar que há uma disponibilidade da tradição para praticantes sejam da etnia que forem, com toda e qualquer identidade.

Isso não significa que quem faz yoga concorda entre si sobre os hábitos pessoais e a vida social.

Significa apenas que essas pessoas estão buscando se cuidar, se aperfeiçoar, e isso é muito bom.

Ou seja, quem pratica yoga não vai necessariamente concordar comigo. Mas, com certeza, vai entender por que resolvi juntar vários colegas, para que possamos avançar mais um capítulo na vida pública.

Sugestão de meditação

Hoje a minha sugestão de meditação é esta:

— Tome um banho

— Sente-se com uma roupa limpa, coluna reta, olhando para o leste

— Respire fundo durante toda a prática

— Coloque sua atenção no coração

— Escolha para observar um das coisas que se repete na sua vida mantendo atenção no coração

— Observe com atenção esse acontecimento que se repete

— Agradeça a experiência

— Reflita sobre como é possível para você expandir a amorosidade na sua vida em relação a esta observação que você escolheu fazer.

Glossário

Pratibha: inteligente, sábio, comprometido

Avyagraya: seguro, despreocupado, estável, desocupado

Pinakine: armado com arco e lança, nome de um dos 11 Rudras

Dharma: aquilo que está estabelecido ou firme, decreto estável, estatuto, ordenança, lei; uso, prática, observância costumeira ou conduta prescrita, dever.

*Claudia Wanderley coordena o grupo de estudos Yoga na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde é também pesquisadora do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência. No programa de extensão da Faculdade de Educação Física da universidade, dá aula de saudação ao sol.

Leia também:

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Claudia Wanderley: Os primeiros autocuidados no dia a dia

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Claudia Wanderley

Coordenadora do grupo de estudos Yoga na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde é também pesquisadora do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência. No programa de extensão da Faculdade de Educação Física da universidade, dá aula de saudação ao sol.


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