Valcler Rangel e Eliana Sousa Silva: Violência na favela atinge toda a sociedade

Tempo de leitura: 3 min
Fotos: Redes da Maré e Mareonline

Violência na favela atinge toda a sociedade

Operações que geram mortes e traumas irrecuperáveis têm de ser reavaliadas com urgência

Por Valcler Rangel e Eliana Sousa Silva*, em O Globo

A sociedade brasileira, especialmente a carioca, assistiu na sexta-feira, 25 de novembro, a mais um triste capítulo de violências que atingem diretamente moradores de favelas.

Foram três intervenções da polícia — Morro do Juramento, Morro do Estado e algumas favelas da Maré — Morro do Juramento, Morro do Estado e algumas favelas da Maré — que resultaram em 15 mortes. Ao olharmos para as operações no conjunto de favelas da Maré, nos deparamos com um contexto espantoso.

A operação conjunta das polícias Civil e Militar teve como motivação, segundo a imprensa, o enfrentamento ao roubo de cargas e ao tráfico de drogas.

Nas favelas da Maré, a operação resultou em oito mortes, um ferido, invasão de domicílios com depredação e furtos, pessoas mantidas em cárcere privado, principalmente jovens, assédio sexual, violência física e psicológica, torturas e ameaças, entre outras violações.

As informações nos chegam por meio de denúncias de moradores, que se apoiam nesses momentos nos profissionais da ONG Redes da Maré, atuante in loco em todo o decorrer das operações policiais e dos confrontos armados na região.

O trabalho mais significativo é dar suporte à população, que chega a 140 mil moradores, o que faz do Complexo da Maré uma área mais populosa do que 96% dos municípios brasileiros.

Números divulgados pelo Observatório de Segurança Pública evidenciam o quanto as operações policiais levam à perda de vidas, sobretudo de jovens negros.

Os dados são chocantes, mostrando que somente no Rio de Janeiro e na Bahia mais de mil pessoas morreram em operações policiais em apenas um ano. Além dos números de mortes decorrentes de ação policial, impressiona a distribuição de cor das vítimas.

Em todos os estados, a proporção de negros entre os mortos é maior do que a presença de negros nas populações.

No Rio, 87,3% das vítimas em ações policiais foram pessoas negras, quando a porcentagem dessa camada da população é de 51,7%, segundo pesquisa recente da Rede de Observatórios de Segurança.

Evidencia-se o racismo estrutural presente na sociedade, mas também a naturalização dessa situação, que precisa voltar a nos sensibilizar.

Deixamos de nos espantar com o fato de que, num único dia, 15 pessoas sejam mortas em operações policiais em nossa cidade.

Em outras abordagens, Fiocruz  e Redes da Maré, junto com as associações de moradores locais e outras entidades da sociedade civil, deram demonstração da capacidade de salvar vidas durante a pandemia.

Estabeleceram parcerias, como a realizada com a Secretaria municipal de Saúde, a fim de reduzir a letalidade com um choque de saúde pública, por meio do Projeto Conexão Saúde, ao fazer uma das maiores campanhas realizadas no país, o Vacina Maré.

Isso tudo num contexto de descrédito, quando muitos diziam que o morador de favela não poderia ser protegido devido às condições de saneamento, habitação e por conta da violência nesses territórios. Ficou demonstrado que é possível enfrentar tais problemas e que, se há parceria e diálogo direto, o resultado é alcançado.

A Fiocruz tem atuado junto a populações em territórios vulnerabilizados em todo o país, onde prevalece a violência da atual política de segurança pública de guerra às drogas, que se mostrou, além de letal, ineficiente.

Operações policiais que geram mortes e traumas irrecuperáveis para as famílias precisam ser reavaliadas com urgência.

No Campus Maré da Fiocruz, teremos o Centro de Pesquisas em Emergências Sanitárias, um biobanco e outros equipamentos de educação e desenvolvimento tecnológico, com a presença de milhares de trabalhadores circulando diariamente sob a lógica de planos de emergência, incluindo regras de convivência com a violência e até planos de evacuação.

Na área da segurança pública, os estudos mostram que é possível enfrentar a criminalidade com a redução das taxas brasileiras, indignas e vergonhosas, de letalidade em operações policiais.

Para isso, é preciso ouvir a sociedade, garantir os princípios previstos na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) das Favelas e, fundamentalmente, fazer investimentos nesses territórios nas áreas de saúde, educação, cultura, saneamento básico e habitação, gerando oportunidades de trabalho e renda.

O Governo do Estado do Rio de Janeiro e o governo federal precisam reavaliar seus métodos e garantir que os procedimentos dessas operações sejam apurados com justiça, o rigor e a isenção das leis, pilares de um Estado Democrático de Direito.

Em caso contrário, nos corroeremos ainda mais como sociedade, ao perdermos a sensibilidade a valores civilizacionais tão básicos como o direito à vida.

Solidariedade às famílias das vítimas não pode ser a única resposta num momento como este.

*Valcler Rangel, médico sanitarista, é coordenador de Relações Institucionais da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Eliana Sousa Silva é diretora da Redes da Maré.

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Comentários

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Ludinir Borges

Quem não respeita os outros não merece respeito.
A sociedade não tá nem aí para eles e nem para pobres. Pois se estivesse essas coisas não aconteceriam mais. E isto acontece desde a ditadura militar.
Aliás, muitos dos pobres clamam pelos generais.
A ignorância é ímpar por isso usam a polícia.
A sociedade está na sala São Paulo. Não tá nem aí com a favela.

Zé Maria

Reprisamos pela Enésima vez:

Enquanto a Polícia Militar não for Desmilitarizada, pouco vai mudar.
Aliás, no desgoverno Bolsolão as Ações Policiais Racistas pioraram.
Pois, além da PM, parte da Polícia Civil, PF e PRF também atuaram.

Zé Maria

.

“Tupi Or Not Tupi?”

PINDORAMA 1500

.

    Zé Maria

    “Um dossiê com múltiplas vozes indígenas
    e versão em português na Revista Sens Public:”
    https://t.co/CSA9GB3yCG
    https://twitter.com/MarciaTiburi/status/1599778008205705217

    Zé Maria

    .

    “Dos 645 municípios do estado de São Paulo, 238 têm nomes que, total ou parcialmente, são de origem indígena, isto é, quase 37% do total.

    O atual estado de São Paulo ocupa um território que, pelo
    Tratado de Tordesilhas, de 1494, estendia-se, em sua maior parte,
    por terras que caberiam à Espanha.
    Em território que caberia a Portugal, São Paulo estendia-se pelas
    capitanias de São Vicente, Santo Amaro e São Tomé, conforme
    a divisão delas feita por El-Rey D. João III na década de 30 do século XVI.

    A presença europeia no que é o atual estado de São Paulo remonta aos primeiros anos dos Quinhentos [Século XVI].

    Habitavam o litoral de São Vicente índios que falavam o Tupi Antigo.

    Índios falantes dessa língua adentravam também o interior, pelo Vale
    do Tietê, por centenas de quilômetros.

    Havia, ademais, nas capitanias mencionadas [São Vicente, Santo Amaro
    e São Tomé], outros índios que lhes eram aparentados linguisticamente,
    como os tamoios (tupinambás) e os tupiniquins, além de índios
    não tupis, falantes de línguas do tronco Macro-Jê.

    Os europeus tiveram, desde cedo, de aprender a língua da costa.

    Com efeito, a população de índios era imensamente superior à
    população europeia.

    Assim, muitas vezes, os nomes indígenas dos lugares foram usados
    pelos europeus e muitos deles mantiveram-se até os dias de hoje.
    É o caso de topônimos como Anhangabaú, Itanhaém, Peruíbe,
    Paranapiacaba etc.

    Desde as primeiras décadas do século XVI, desenvolveu-se na
    capitania de São Vicente um próspero [SIC] tráfico de escravos índios.
    Organizavam-se incursões ao interior com tal objetivo.

    A Língua Brasílica, nome colonial para o Tupi Antigo, avançava rumo
    ao interior no século XVII.
    Formava-se lentamente a Língua Geral Meridional ou Paulista, à
    medida que as bandeiras dos vicentinos tomavam contato
    com os guaranis das atuais terras de Mato Grosso do Sul e
    com índios falantes de línguas do tronco Macro-Jê.

    A Língua Geral Paulista foi, assim, supra-étnica, isto é, falada
    não somente por índios Tupis, mas também por europeus,
    escravos africanos e índios de outras línguas e etnias.

    Ela teve influências também do Guarani, dados os contatos
    que os paulistas mantiveram com seus falantes no Paraguai
    e em outras regiões que atualmente fazem parte do Brasil,
    como o oeste do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande
    do Sul e do Mato Grosso do Sul.”
    […]
    “Os vicentinos, nos três primeiros séculos do Brasil colonial, avançaram
    rumo ao interior em várias direções.
    Foram eles os que descobriram as Minas Gerais, os primeiros civilizados [SIC] que chegaram às terras de Goiás, de Mato Grosso (hoje dividido
    em dois estados), os primeiros a devassarem as terras do Paraná, de
    Santa Catarina, do Rio Grande do Sul.

    Foi-se constituindo o que Alfredo Ellis Jr. (1951), historiador paulista
    da primeira metade do século XX, chamou de PAULISTÂNEA [Grifo],
    isto é, o vasto interior colonizado e influenciado cultural e socialmente
    pelos paulistas.

    O Tupi Antigo desapareceu no final do século XVII e, na vasta Paulistânia, a Língua Geral Paulista passou a tomar-lhe o lugar
    em meados dos Seiscentos [Século XVII], tendo sido usada até
    o final do século XIX, desaparecendo naquela época com
    a grande onda migratória europeia para a província de São Paulo.

    Ela deixou poucos documentos escritos, mas muitos topônimos
    com origem nessa língua são perfeitamente reconhecíveis:
    Butantã, Bussocaba, Botucatu, Votorantim, Botujuru etc”

    Por Eduardo de Almeida Navarro (FFLCH/USP)
    Em “ESTUDOS LINGUÍSTICOS (SÃO PAULO. 1978), v. 50, p. 733-752, 2021.”

    Íntegra:

    https://revistas.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/2865/1965

    .

    Zé Maria

    .

    Todo Paulista tem um pouco de Nativo Brasileiro e/ou de Negro Africano.

    Esse é, quiçá, o Maior Recalque da “Elite do Atraso” na “PAULISTÂNIA”.

    .

    Zé Maria

    .

    E é também talvez por essa Frustração da Identidade de Origem
    que a “Elite do Atraso” da “Paulistânia” criou o “Mito do Bandeirante
    Herói” e, a partir daí, a “Paulistânea”, estendendo-o como um (Falso)
    Paradigma aos Paulistanos.

    .

    Zé Maria

    .

    “… valorizaram o surgimento de um ‘subgrupo
    racial superior’ representado pelo bandeirante”

    ANTONIO CELSO FERREIRA
    “A Epopéia Bandeirante: Letrados, Instituições, Invenção Histórica (1870-1940)”
    (A.C. Ferreira, 2002, pág.18)

    .

    Zé Maria

    .

    E é por isso, ainda, que a “Paulistânia” nunca admitiu
    um Presidente da República que não fosse Paulista
    “de Raça Bandeirante”, ‘Desbravador’, ‘Empreendedor’ …
    Hoje, nada é Mais “Bandeirante” do que o tal ‘Mercado’.

    .

    Zé Maria

    .

    NOTA DE REPÚDIO

    A Federação Nacional das Trabalhadoras e Trabalhadores do Judiciário Federal
    e Ministério Público da União (Fenajufe), através do grupo de “Pretas e Pretos
    da Fenajufe”, repudia publicação do jornal ‘O Estado de São Paulo’ (Estadão)
    que utilizou foto de uma mão preta para noticiar ataque praticado por um
    adolescente branco no Espírito Santo.

    A Fenajufe entidade que representa as mais de 120 mil servidoras e servidores
    do PJU e MPU vêm a público manifestar REPÚDIO à matéria publicada
    pelo jornal Estadão, por entender que tal atitude reforça preceitos racistas
    de vinculação de pessoas pretas e negras com atos violentos.

    As mídias jornalísticas possuem a missão de respeitar os direitos humanos,
    de adotar condutas antidiscriminatórias e de divulgar fatos no sentido de
    informar a população de forma isenta, algo nem sempre de interesse daqueles
    que detém o poder político e econômico.
    Quando se formula uma notícia sobre atos violentos, que no caso foi cometido
    por uma pessoa branca e, se opta por utilizar uma mão preta segurando uma
    arma, a mensagem é evidente: pessoas pretas são violentas e criminosas,
    mesmo que não sejam os autores dos atos.

    O fato ocorrido na cidade de Aracruz na sexta-feira (25) localizada no litoral Norte
    do Espírito Santo resultou nas mortes de 4 pessoas até o momento e outras 12
    com ferimentos graves.
    O atirador é um adolescente branco que vestia roupa com estampa militar
    e braçadeira com símbolo nazista, a arma utilizada era do seu pai, tenente
    da Polícia Militar que já tinha publicado em redes sociais promovendo o
    livro escrito por Adolph Hitler.

    A música “Boa Esperança” do cantor Emicida demonstra como o racismo atinge
    pessoas negras em qualquer situação, sendo o tom de pele o ponto de
    julgamento da sociedade, inclusive pela mídia:

    “Aí, nessa equação chata, polícia mata, plow!

    Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão

    Desacato invenção, maldosa intenção

    Cabulosa inversão, jornal distorção

    Meu sangue na mão dos radical cristão

    Transcendental questão, não choca opinião

    Silêncio e cara no chão, conhece?

    Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece”

    O racismo é uma herança maldita da escravidão que persiste aos dias atuais,
    ele está visível na falta de oportunidades, na ausência de negras e negros nos
    espaços de decisão e poder, nas precárias condições sociais onde são maioria
    e no número dos que passam fome e que morrem asfixiados pelo ódio racial.

    O citado jornal alterou a imagem do noticiário após receber duras críticas,
    mas ressaltamos aqui que essa tentativa de retratação tardia não apaga atitude
    repugnante e inaceitável.
    Ao contrário, só intensifica a banalidade e o descaso com que a questão racial
    ainda é tratada no País.

    A Fenajufe entende que a imagem reproduzida pelo jornal é uma ferramenta
    de promoção do racismo, do encarceramento da juventude negra e do
    extermínio dessa população.
    A presente Nota apenas se soma às demais manifestações da sociedade
    e expressa repúdio a essa e qualquer outra ação que venha menosprezar,
    anular, discriminar e criminalizar pessoas negras movidas pela intolerância
    e ódio ao tom da pele.

    É por essas e outras que o grupo Pretas e Pretos da Fenajufe condena
    a publicação do jornal e consensua ao reafirmar que essa herança maldita
    do período colonial deve ser extirpada da nossa sociedade,

    Eliminar o racismo parte de cada uma e de cada um, principalmente das pessoas
    brancas, pois, como define Angela Davis, “não basta não ser racista,
    é preciso ser antiracista!”

    Brasília. 29 de novembro de 2022

    https://www.fenajufe.org.br/noticias/noticias-da-fenajufe/9416-fenajufe-repudia-publicacao-do-jornal-o-estadao-por-usar-imagem-de-maos-pretas-para-ilustrar-materia-de-crime-cometido-por-adolescente-branco-2

    .

    Zé Maria

    .

    “A MITOLOGIA BANDEIRANTE: CONSTRUÇÃO E SENTIDOS”

    Por RICARDO LUIZ DE SOUZA
    Mestre em Sociologia e
    Doutor em História pela UFMG.
    Professor da UNIFEMM –
    Centro Universitário de Sete Lagoas

    https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/rhs/article/215/207
    https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/rhs/article/view/215

    .

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