Urariano Mota: Miguel Arraes e Reginaldo Rossi, o rei dos sem rei

Tempo de leitura: 5 min

por Urariano Mota, especial para o Viomundo

Quando eu era menino, gostava de impressionar a professora Termutes, lá no Ginásio Ipiranga em Água Fria. E o modo de impressionar a doce Termutes era um tanto oportunista: para mostrar compreensão de gramática, eu escrevia lá no meu caderno do dever de casa, por exemplo, “Jesus Cristo é o rei dos reis”. Isso me levava a ser olhado com atenção por ela, que parecia se perguntar, de onde esse menino tira tais imitações?

Esse “rei dos reis” me veio agora ao procurar um título para esta lembrança de Reginaldo Rossi, em pleno dia de Natal. A intenção não era bem profana, era de esperteza, porque cheguei a pôr o título de “Reginaldo, o rei dos reis”, mas me corrigi a tempo, porque não devo enganar a boa-fé de ninguém.  Portanto, sejamos sinceros, desde o começo. Aqui não haverá fraude ou burla. Acompanhem o que conto por favor.

Lembro de um comício de Miguel Arraes em 1986, em campanha para governador de Pernambuco. Isso se deu na praça da Vila dos Comerciários, em Casa Amarela, no Recife.  Camisa aberta ao peito, calças justas, cabelo black power, Reginaldo Rossi era uma atração máxima, aquela que chamava o público mais despolitizado. Arraes sempre foi um político de ideias de esquerda, mas isso ele fazia ao lado de um grau imenso de pragmatismo. Quem era o rei que atraía o povão? – Reginaldo Rossi. Então vamos a ele. E assim foi.

É verdade que Reginaldo Rossi sempre esteve ao lado de um ideário que se assemelhava à esquerda. O que é isso? Era não ficar ao lado dos que apoiaram a ditadura. Mas o diabo é que Reginaldo sabia do poder de sedução da sua arte, e não se intimidava diante dos deuses mais sagrados da esquerda em Pernambuco. O que isso queria dizer, amigos? Imaginem e acompanhem. Quando ele tomou a frente do palanque, depois das palavras de apoio ao líder Arraes, em uma fala misturada de  gíria maluca dos palcos e do povão, o rei Reginaldo mandou ver:

“Ai,  amor
Você diz isso com jeitinho
Ai,  amor
Quando eu te faço algum carinho
Ai,  amor
Esse suspiro vem de dentro de você
Ai, amor
É tão gostoso ver teu corpo estremecer, ai, amor

Quando eu te aperto em meus braços, ai amor
E quando eu sinto teu mormaço, ai amor
Também suspiro e fico louco sem querer, ai amor
Essa loucura do amor me faz dizer
Que eu não vivo sem você
Que só você me satisfaz
Que eu morreria nos teus braços
Feliz ouvindo esses teus ‘ais’!
Ai, amor

Ai amor, também suspiro e fico louco sem querer
Ai amor, essa loucura do amor me faz dizer
Que eu não vivo sem você
Que só você me satisfaz
Que eu morreria nos teus braços
Feliz ouvindo esses teus ‘ais’!

Ai amor. Ai, ai.”

A essa altura, o povo aumentou na praça, em grupos os mais caóticos, chamados primeiro pelo som dos alto-falantes que estrondava com a voz de Reginaldo Rossi. Mas não só. E vamos ao mais importante: além da letra da canção, quando ele cantava, havia uma entonação, ia dizer safada, mas não era isso.

Havia um tom de deboche, de saber o que a massa queria ouvir, pois ele sabia o que a população gostava de fazer e não declara de modo público.

Quando Reginaldo suspirava em voz quente o apelo “ai, amor”, uma nuvem de poeira subia. As camisas giravam por cima das cabeças, que deliravam como se estivessem em uma encenação pornográfica, em um verdadeiro e popular império dos sentidos.

Não era cinema, mas sem olhos oblíquos do oriente, com de índio do Recife, era um império dos sentidos. “Ai, amor”, Reginaldo repetia num requebro. Olhem, declaro que me senti muito envergonhado, ao mesmo tempo que não conseguia tirar os olhos do palco. E por isso, cravei os olhos no candidato Arraes, que estava recuado, mal escondido dos volteios de Reginaldo.

No primeiro “Ai, amor”, foi bem clara a desaprovação do candidato. Ele olhou atravessado para o rei e pigarreou alto.

Para quê? Reginaldo abriu um sorriso e os braços para um mais largo ainda “ai, amor, também suspiro e fico louco sem querer”. Então Arraes baixou a cabeça, como quem diz “isso é muito constrangedor, as bandeiras da frente ampla do Recife estão muito amplas para mim”, mas calou, e na continuação do “é tão gostoso ver teu corpo estremecer, ai, amor”, Arraes entrou em um mudo e imóvel silêncio.

Para maior liberdade do rei Reginaldo, que tinha a massa de revoltados sem rumo na canção. Isso eu vi naquela eleição, e tratava essa lembrança até então como um fato curioso, cômico, entre a gravidade de Arraes e a interpretação de Reginaldo Rossi. Mas a morte de uma pessoa, vocês sabem, desperta na gente novos ângulos do que nem imaginávamos antes.

Havia em Reginaldo Rossi um tom escrachado, o que é diferente da depravação.

Às vezes – é da natureza do escracho – havia também um tom chulo, que a higiênica e impoluta classe média chama de “baixaria”. Mas ao lado do apelo aos sentidos mais imediatos – ele queria fazer sucesso -, havia também um modo civilizatório em Reginaldo Rossi.

Por exemplo, vem dele, em muitas frases de entrevistas, algumas das primeiras manifestações contra a homofobia, entre artistas populares. Vem dele também, numa terra de machos, duvidosos machos, que assassinam mulheres nos chamados crimes de honra, uma suavização do homem que vira corno.

De Reginaldo Rossi jamais pôde vir qualquer palavra de reforço ao preconceito contra pobres e marginalizados.

Ai, amor. No comício de Arraes em 1986, o povo pulava, agitava-se, gritava, diante da ambiguidade do cantor a girar os quadris em movimentos que imitavam um coito em pé.

Ou melhor, Reginaldo fazia movimentos, meneios do puro oferecer, um convite irresistível ao que virá, ou devia vir. Aqueles quadris eram uma representação do ato amoroso, da dor que não é dor embora lembre a dor.

Dor que não é dor embora lembre a dor. Acho que Reginaldo Rossi iria gostar muito, e por isso não tenho pejo nem vergonha de homenageá-lo da maneira a seguir: Reginaldo iria gostar muito de associar sua música a estes versos de Camões, o rei dos sonetistas em português:

“Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer”

Ai, amor. Mas por que faço este reconhecimento tardio? Porque nunca disse antes que para mim  mereceria uma crônica à parte, que falasse dos amores suburbanos, cheios de cafonice e de sentimento? Mais, por que nunca esclareci, de modo mais preciso, que a composição A Raposa e as Uvas cantava a classe média dos subúrbios, porque os jovens então que eu conhecia nem sequer sonhavam com a lambreta, que era a moto daqueles anos, porque o sonho máximo dos pobres fudidos era ter uma bicicleta? (Fudidos mesmo, não fodidos.)

Por que somente agora escrevo? – É que o povo me deu uma lição nestes últimos dias. O povo maior é pobre e sem vergonha. É pobre e sincero, mas seu sentimento não é miserável nem mesquinho. Foi de comover até as pedras as declarações de pessoas feias, como a estúpida juventudezinha alienada as chama, “gente feia”, foi comovente ver  as domésticas, os motoristas, os garçons, as mulheres e homens enfim de todas as categorias profissionais, que sem vergonha e sem pudor gritavam no Recife, no dia do enterro:

– Rei. Rei, Reginaldo é nosso rei!

Creio que teria mais a dizer sobre Reginaldo Rossi neste dia de Natal. Mas não falo mais porque seria fora de tom nesta data de fraternidade.  Termino aqui, por enquanto. Vaidade das vaidades, Reginaldo Rossi não foi bem o rei dos reis. Foi Reiginaldo, ou mais simplesmente, o rei dos sem rei.

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Comentários

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Mardones

O povo vai sempre encontrar os seus reis. Reginaldo foi um deles. E não há onda ‘cult’ que acabe com isso.

Valdeci Elias

Espero que quando Reginaldo, encontrar o velho Arraes. Diga o que o neto está fazendo aqui em baixo.

Christiano Almeida

Dois craques juntos. Juntos e misturados. Cada um com um repertório. Ambos com linguagem própria, mas público idêntico. Ambos arco e flecha e vice-versa. Enquanto um falava, era o arco. De modo contrário, flecha. Falavam para o público. Alvo comum. O público, devolvia em “urros” as flechas que recebia, de ambos. Saciada. Mancomunada com ambos. Interface sociológica, política, social, humana, gente. Um, Pai “arraia”, o outro ‘rei’. Ambos, discípulos do povo.

Hans Bintje

O Urariano Mota não entendeu o Miguel Arraes.

O político seguiu o roteiro de algum filme da diretora italiana Lina Wertmuller para chamar o Reginaldo Rossi.

“Sedução, anarquia e sátira” ou, para quem quiser o original, em italiano:

“Quasi tutte le pellicole della Wertmüller riflettono in maniera inequivocabile il suo impegno politico e sociale, con i personaggi principali aderenti all’anarchismo, al comunismo (se uomini) e al femminismo (se donne). Anche la trama e le azioni principali degli attori riflettono i conflitti socio-economici (come per esempio la lotta di classe) presenti nella storia dell’Italia. Malgrado questo, il cinema wertmülleriano è raramente didattico e/o didascalico ma spesso riflette le sensibilità iconoclaste della regista.” ( fonte: http://it.wikipedia.org/wiki/Lina_Wertm%C3%BCller )

A luta de classe — la lotta di classe — vista do ângulo mais divertido que existe, a partir do “rei dos sem rei”, Reginaldo Rossi.

Paulo Luiz Martins

A melhor crônica que li sobre Reginaldo. Me fez viajar no tempo. No meu tempo que também é o de Reginaldo Rossi. E naquele tempo, para um estudante universitário engajado, não era de “bom tom”(rsrsrsrs) gostar de músicas de Reginaldo, Odair José e outros “bregas”. O “Cult” era Caetano, Gil, Milton..
Mas além desses, eu gostava mesmo era do Reginaldo Rossi com a sua linda “mon amour meu bem ma femme), Toni Damito, Odair…. que maravilha!; fora daquele chato ambiente “cult universitário”,naqueles puteiros da vida (naquele tempo isso ainda existia) rolava essa coisa gostosa de perfume e desodorante barato que exalava daquelas moças; aquilo era a verdadeira liberdade e eu estava lá. Confesso que vivi!

Artur Freitas

Como dizia o rei: O homem sem chifre é um homem indefeso” kkkkk sensacional!

denis dias ferreira

Reginaldo Rossi era um cantor porno-erótico-humorista. Sabia rir e debochar elegantemente dos que não o aceitavam; os preconceituosos. Era a voz dos sem voz. O povo entendeu o que ele era, o que ele cantava e quem ele cantava, e o homenageou amorosa e despudoradamente. Ai, e como foi bom ver o amor daquela pobre gente!

FrancoAtirador

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Urariano Mota consegue,

nas crônicas, transformar

um limão numa limonada,

ou um gim-tônica burguês

numa caipirinha popular.
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Francisco Cavalcante Souto

Linda homenagem! Reginaldo Rossi fez milhões de brasileiros felizes com suas apresentações, piadas, tiradas. Eu fui um deles. Sou seu fã desde “No claro e no escuro”, década de 60. Era gente do povo e para o povo se apresentava, despido de qualquer estrelismo. Mas, nós, seres humanos, temos que ir embora dessa vida terrena para uma vida eterna. Ele vai se apresentar para outros seres, na eternidade. Descanse em paz Reiginaldo.

Mello

Não lembro exatamente se foi nesse comício, ou no do Largo de Santo Amaro, Reginaldo entra para fechar o comício e o “Véio Arraia” já ia se retirando, quando Reginaldo ao microfone falou que estava conversando com ele, e ouviu:
“Rossi, eu não saio daqui enquanto não escutar pelo menos uma música sua”.

Arraes obviamente foi obrigado a permanecer e escutar um pout-pourri de músicas do Rei!!!

Rodrigo Leite

O primeiro comício que vi na vida foi de Arraes em 1986, em Altinho, agreste pernabucano. As participações de Rei Rossi na campanha foram mesmo lendárias. Mas a música que levantava a galera (que eu lembre, e o tempo tem vezes que trai) era quando puxava o Borogodá! Mas como disse, somos cornos do tempo. Despretensioso e belo texto. Grande Abraço!

Murdok

Boa leitura.

ana s.

Legal.

Urbano

Hoje eu posso perfeitamente concordar com o epíteto de rei dos reis para Reginaldo Rossi (é que eu sempre passei a muitos parsecs de suas músicas), até porque ele nunca matou, principalmente a troco de nada, elefantes, nunca mandou matar ninguém, muito menos aparentados seus, nem bajulou os da oposição ao Brasil e muito menos dedurou alguém, principalmente sabendo que esse alguém iria correr sérios riscos de ser assassinado.

    Urbano

    Bem, então eu vou dizer também, que o primeiro e único comício que assisti de Miguel Arraes, e de macaquinho em quem não sei, foi no Pátio de dona Suzana, no bairro do Zumbi, provavelmente na campanha para prefeito, um pouco antes dos anos mil novecentos e sessenta. Lembro-me apenas que, ao final, carregaram o homem durante certo trecho, provavelmente em direção ao bairro da Madalena ou da Torre; não sei bem.

    Urbano

    Utilizei a palavra macaquinho indevidamente, pois foi nos ombros de alguém. Aproveito para avisar aos desavisados que em relação a Deus é Rei dos reis…

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