Acompanho já há muito tempo o Viomundo, sempre com uma ótima impressão, pois tenho para mim que é uma leitura necessária como contraponto à grande mídia golpista e pretensamente imparcial.
Mas não lhe escrevi somente para elogiar o Viomundo, no que poderia me estender enfadonha e inutilmente. Escrevo porque, passando os olhos por lá, não vi nada, ninguém comentando sobre os recentes acontecimentos na Faculdade de Direito da USP. Não sei se você sabe, mas supor que você tenha ouvido falar desse assunto pelo Jornal da Globo de agora há pouco, no início da madrugada de 15 de maio. A reportagem está em texto integral neste link e a reproduzo logo abaixo. Peço sua gentileza de ler todo este e-mail porque, a meu ver, ele envolve muito mais coisas do que um mero problema acadêmico; envolve um provável futuro da Educação no país.
Doação de dinheiro causa polêmica em universidade de São Paulo
A faculdade de direito da Universidade de São Paulo está deixando de arrecadar doações. O motivo: o centro acadêmico é contra homenagens aos doadores.
Walace Lara — São Paulo, SP
A ideia do negócio bem sucedido de André Delben Silva começou a nascer quando ele estava na faculdade. Foi em Harvard que o administrador de empresas aprendeu a importância de recompensar financeiramente os ensinamentos que recebeu. “É parte da cultura americana dar de volta uma parte do que você consegue na sua carreira profissional e muitas vezes a carreira profissional está ligada a uma boa escola”.
Doações de ex-alunos a universidades públicas e privadas dos Estados Unidos são comuns. Uma forma de melhorar a estrutura e a qualidade das escolas. No Brasil, não há tantas iniciativas assim. Por incrível que pareça, às vezes, quando ocorrem dividem a comunidade universitária. Foi o que aconteceu na faculdade de direito da Usp, no Largo São Francisco. A associação de antigos alunos resolveu arrecadar fundos para modernizar a estrutura. Duas salas receberam os nomes de dois ex-universitários que mais contribuíram, com R$1 milhão cada. Mas a homenagem desagradou os membros do centro acadêmico. Uma das placas das salas chegou a ser coberta.
“Houve uma quebra de tradição porque o costume não foi levado adiante, que é dar o nome de sala pra antigos professores aqui da casa”, fala Marcelo Chilvaquer, presidente do centro Acadêmico. A polêmica afugentou novos doadores. “Não está suspensa, mas eu não tenho coragem de bater na porta de ninguém porque esses que nos deram ficaram muito agastados, quer dizer eles estavam fazendo uma coisa benéfica pra nossa faculdade, uma retribuição importante, e se chega depois a questionar, mas esse fez isso, esse fez aquilo, quer dizer, meio que olhando como se fosse um interesse comercial”, explica José Carlos Madia de Souza, presidente da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Usp.
“É imperioso que uma faculdade tradicional como a nossa se modernize e para que haja salas de ponta, salas que no total custaram R$ 1 milhão e que exista toda a parafernália eletrônica moderna, não se pode fazer isso com dinheiro da universidade mesmo que se tenha, mas sim com dinheiro de doações externas”, diz João Grandino Rodas, reitor da Usp. “Então eles estão dando um tiro no próprio pé porque não estão permitindo que a sua faculdade onde eles estão estudando no momento possa ter condições melhores. O que nós estamos fazendo está na contramão da história”, fala Ives Granda Martins, advogado, ex-aluno.
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Azenha, sou aluno dessa faculdade, estou no 6º ano (decidi estender meu tempo lá para tentar fazer minha monografia mais tranquilamente) e posso dizer que acompanhei razoavelmente de perto o desenrolar desses acontecimentos. E o que eu digo sobre a reportagem da Globo é um chavão que aprendi na própria faculdade: “não surpreende mais, mas ainda impressiona”.
Primeiramente, a reportagem ignora completamente mais três assuntos que colocaram a faculdade em polvorosa. O primeiro deles é com relação à mudança problemática das bibliotecas da faculdade, que constituem o maior acervo jurídico do país e talvez da América Latina. O segundo é com relação à greve de funcionários da USP inteira, que reverbera também na FD. O terceiro é com relação à tentativa de golpe institucional por parte do professor e vice-diretor Paulo Borba Casella. A nomeação das salas mediante doação é o menos sério de todos esses problemas, embora tenha tudo a ver com eles, conforme demonstrarei.
Essa história toda, na verdade, começa com um nome: o do atual reitor da USP, João Grandino Rodas. Professor da área de direito internacional, foi eleito diretor da FD em 2006. Sua primeira atitude memorável perante os alunos foi a outorga da nova grade curricular, que estava congelada no tempo há muitos anos, salvo engano meu, desde a década de 70. Até então, a FD tinha uma grade inchada, que quase atingia o limite de créditos estabelecido pelo MEC, créditos esses praticamente todos oriundos de aulas teóricas. Ou seja, sem créditos-trabalho, pesquisa, ou qualquer atividade de campo. Estudantes e alguns (poucos) professores da FD montaram um grupo de debates e pesquisa que se estendeu por vários meses com o objetivo de reformular essa grade para algo não apenas menos carregado, como também mais variado e atualizado, com mais abertura a matérias de caráter crítico e menos ênfase em leituras de código. Mas esse trabalho foi jogado no lixo porque, na última hora, a Congregação (o órgão máximo de deliberação da FD) acatou um projeto apresentado pelo diretor e que nunca havia sido trazido à luz. Com isso, a grade manteve-se praticamente a mesma, apenas com reduções proporcionais na carga horária.
No primeiro semestre de 2007, houve a ocupação da reitoria na Cidade Universitária, que durou muitas semanas, mais de cem dias, salvo engano meu. A reitora à época, Suely Vilela, falhou retumbantemente em negociar com quaisquer partes, o que colaborou com o arrastamento da situação. No semestre seguinte, no dia 21 de agosto de 2007, houve uma mobilização nacional de entidades da sociedade civil (UNE, MST, MMM, MSE, entre muitos outros) pleiteando ensino universitário de qualidade às camadas mais marginalizadas da população. Eles escolheram a FD por julgarem, muito corretamente a meu ver, que ela era a faculdade em São Paulo que melhor representava a segregação. Ocuparam-na às 18h e a proposta era permanecer por lá até as 18h do dia seguinte. Nesse meio-tempo, tentariam promover debates e até ocorreria um show do Tom Zé. Mas por volta das 2h do dia 22 de agosto, João Grandino Rodas convocou a tropa de choque da Polícia Militar para expulsá-los.
Foi um recado direto para a reitoria da USP e para o então governador José Serra. Rodas mostrava a ambos que sabia lidar com alunos. Se Suely Vilela levava meses para resolver uma revolta de estudantes, João Grandino Rodas mostrou que precisava de poucas horas.
Ocorreu então a farsa da eleição de reitor da USP. Aqui vale um parêntese: a universidade é a instituição mais antidemocrática que já conheci. Até mesmo a paróquia lá do bairro onde nasci possuía assembleias e procedimentos com mais lisura e participação. Mas enfim, ao fim da democracia de fachada das eleições para reitor, restou uma lista tríplice, da qual Rodas constava como segundo colocado em votos. O reitor é escolhido pelo governador do Estado, um dentre esses três nomes. Tradicionalmente, em respeito formal ao processo seletivo da universidade, ou sob esse pretexto, o governador escolhe o primeiro dessa lista. Mas José Serra já sabia quem seria seu homem infiltrado na USP. E João Grandino Rodas foi escolhido reitor, arrogando-se do direito de mudar a data de sua posse, salvo engano meu, para o dia 25 de janeiro, aniversário da cidade. Seus primeiros dias de reitor já provocaram atritos com os funcionários da USP num todo, a exemplo do que já ocorria localizadamente na FD. Na atual greve, o reitor já disse ter providenciado na justiça decisão que não pagaria os salários dos funcionários pelos dias da atual greve (decisão que se for mesmo verdadeira, é patentemente inconstitucional) .
Mas um dia antes de deixar a diretoria da FD, ele ainda tomou algumas decisões. Uma foi a mudança imediata de todas as bibliotecas departamentais e também a circulante para um prédio recém anexado ao patrimônio da faculdade, que fica do outro lado do Largo São Francisco, na rua Senador Feijó. Muitas obras ali são raridades de uma história de mais de 180 anos de faculdade, e muitos títulos não se encontram mais em mais nenhum lugar. Devido à antiguidade de certos volumes, eles precisam ser manuseados com cuidado e permissão especiais. Mas o prédio para onde foram levados está caindo aos pedaços, como ocorre com muitos imóveis abandonados no centro de São Paulo. Os livros foram encaixotados por moradores de rua (instruídos a portarem-se como funcionários de empresa terceirizada) e levados sob garoa até o prédio Anexo IV, e lá foram largados. O resultado é que os alunos voltaram das férias e foram surpreendidos com a ausência de suas bibliotecas. Mesmo professores desconheciam o ocorrido até então. Foi uma decisão tomada em ato secreto.
Mas por que mover as bibliotecas de lugar? O objetivo era liberar as salas para transformá-las em salas de aula. Então, várias reformas entraram em curso e provavelmente é essa a origem da campanha feita pela Associação dos Antigos Alunos, constrangida nessa reportagem, para arrecadação de dinheiro que, na minha opinião, era desnecessária. A diretoria anterior à do Rodas, no nome do professor Eduardo Marchi, procedeu a ampla revitalização do prédio histórico, a faculdade já estava recém-reformada. Aliás, é um contraste interessante que existe entre o estado de nossas excelentes salas de aula, auditórios e até salão nobre e o estado decadente das salas engoteiradas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, por exemplo. Mas o que mais me levanta suspeitas nessa história são as doações para reforma ou atualização da faculdade. A reportagem da Globo sugere que os alunos foram ingratos com os doadores, que não puderam ser homenageados com seus nomes nas salas. Mas não diz que o processo de nomeação das salas segue um processo formal debatido pela Congregação e que tem como regra nomear somente docentes da casa já falecidos. Aliás, a Congregação debateu extensamente o assunto e reafirmou o costume; não havia problema nenhum em homenagear os doadores, mas isso não seria feito com nomeação de salas.
Surpreendentemente, contudo, quando o assunto já parecia resolvido, e o ano de 2010 começava com Rodas na reitoria, “vem à tona” um contrato firmado por ele ainda como diretor que nomeava as salas com o nome de um banqueiro e de um advogado em apreço às suas doações. Nem mesmo o atual diretor, professor Antonio Magalhães Filho, sabia disso. Novamente, todos foram pegos de surpresa. Novamente, veio à baila outro ato secreto.
Nesse interregno, a justiça federal já havia decidido liminarmente o retorno dos livros por ameaça iminente ao acervo. O despacho foi providenciado pela administração da faculdade, mas na sexta-feira, dia 8 de maio, o atual diretor, Antonio Magalhães Filho, sentiu-se mal e foi ao hospital examinar-se. O vice-diretor, Paulo Borba Casella, notoriamente ligado ao atual reitor Rodas, subiu à administração e anunciou que era o diretor em exercício, ordenando a suspensão do retorno dos livros. Questionado pelos funcionários, que desconheciam tal fato, ele os ameaçou de demissão (aliás, ameaçou publicamente demitir também outro professor da Casa, prof. Hélcio Madeira, que em ato público no pátio criticava o estado das bibliotecas). Atualmente, está sendo investigado por usurpação de função pública.
Perante todo esse quadro, funcionários, professores e alunos vêm se reunindo e, na última quarta e quinta-feira, decidiu-se pela paralisação total das atividades como forma de protesto. E essa é, em linhas gerais, a atual situação da Faculdade de Direito da USP. Mas a questão agora é:
Por que a Globo quis mostrar os alunos como irresponsáveis e retrógrados? Por que não disse que a esmagadora maioria dos professores os apóiam? Por que ignorou os procedimentos formais existentes na instituição? Por que encobriu grande parte da história? Por que mostrou o reitor João Grandino Rodas como homem sensato?
Arrisco uma resposta. Na faculdade, já muito todos só falam no objetivo de João Grandino Rodas em 2011: Ministro da Educação de José Serra.
E aí, Azenha, ninguém do seu site está interessado nessa história? Se vocês quiserem fazer jornalismo de verdade, tenho certeza de que muita gente vai cooperar lá, desde alunos até professores. Fiquei sentindo falta deste contraponto também, e acho que sua página é o melhor lugar para se fazê-lo na Internet.
Grande abraço,
Thiago de Sousa Leal
obs.: desculpe o texto longo e também eventuais erros, isso tudo foi escrito de uma só vez.




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