Julian Rodrigues: O desaparecimento de Ratzinger não deixará saudades

Tempo de leitura: 3 min
Em 16 de abril de 2022, Bento XVI completou 95 anos. O papa Francisco visitou-o na ocasião. Foto: Vatican News/Arquivo

O desaparecimento de Ratzinger merece um brinde

Por Julian Rodrigues*

Perdoem-me os mais sensíveis, sobretudo os católicos.

Mas nenhuma pessoa de boa vontade pode deixar de comemorar a morte do senhor Joseph Aloisius Ratzinger, o papa emérito Bento XVI.

Não vou entrar aqui em questões de fé. Meu ateísmo marxista é profundamente respeitoso com as crenças das pessoas.

Qualquer papa é um dirigente político internacional. A linha teológica-tática-geopolítica de cada um dos chefes da Igreja Católica tem grande peso (cada vez menor, é verdade) na luta de classes.

Vamos falar de Joseph.

O alemão consolidou e reforçou o aggiornamento iniciado pelo polonês Karol Józef Wojtyła. João Paulo II (que reinou de 1978 a 2005) não só interrompeu a fagulha progressista que João XXIII havia aceso, como guinou tudo à direita.

Junto com Margaret Thatcher [ex-primeira-ministra britânica] e Ronald Reagan [ex-presidente dos EUA]  foi um dos artífices da ordem neoliberal. Anticomunista até a medula, Karol perseguiu e puniu os teólogos progressistas em todo o mundo.

A história é conhecida: nosso Leonardo Boff – ideólogo da teologia da libertação foi punido com a pena de “silêncio obsequioso” em 1984. Sempre achei muito chic esse castigo – coisa de instituição milenar.

Só lembrei de Karol porque Joseph já mandava muito desde o papado dele. Era o chefe da Congregação da Doutrina da Fé. Não sou especialista, mas consta que esse cargo equivaleria a algo como um Suslov – entendedores entenderão.

Há algo excepcional na biografia de Joseph (além de ser islamofóbico, sexista, homofóbico, tradicionalista, autoritário, vaidoso, neoliberal).

O sujeito foi deposto sutilmente. Aposentado na marra. Os sábios chegaram à conclusão que aquele alemão mal humorado, chato, com cara de nazi e sapatos vermelhos Prada estava queimando muito o filme da Igreja Católica. 

Aí, elegeram um anti-Ratzinger: José Mario Bergoglio, o papa Francisco. Progressista, simpático, argentino, terceiro-mundista.

Bento agiu sempre como um homofóbico militante: “o conceito de casamento homossexual está em contradição com todas as culturas da humanidade” , escreveu ele.

Bergoglio, por outro lado, vai avançando quase no limite.: “se um casal homossexual quer levar uma vida em conjunto, os Estados têm a possibilidade de lhes segurança, estabilidade não só para os homossexuais mas para todas as pessoas que se desejem juntar. Mas o casamento é o casamento”.

Quanta diferença!

O papado de Ratzinger é indissociável de sua renúncia. Optou por sair de cena em meio a várias crises principalmente aquelas relacionada aos crimes de abuso sexual que vieram à tona.

Milhares de vítimas, mundo afora relataram terem sido violentadas por padres católicos. Trata-se de algo quase trivial – inerente à organização da igreja e à formação dos sacerdotes.

Ratzinger foi arrastado para o epicentro dessa crise. Não era mais coisa apenas de malucos padres norte-americanos.

Ele próprio foi acusado de ter sido conivente com abusos ocorridos no final dos anos 1970, em Munique, quando era o arcebispo da região.

Nos EUA o negócio é tão grave, que a Igreja topou pagar, num único acordo, 88 milhões de dólares para cerca de 300 vítimas – abusadas entre 1950 e 1980 na Diocese de Camden, em New Jersey. Mas é muito pior: são milhares de padres católicos denunciados, de 10 mil para cima. É uma coisa absurda!

Relembro tudo isso porque Ratzinger nada fez para enfrentar esses escândalos, que, na verdade, apenas expuseram uma prática aparentemente usual.

Homens proibidos oficialmente de fazer sexo e gozar – e que, ademais, tem vários privilégios, só pode dar nisso.

Quando a Igreja Católica vai regovar o celibato? E ordenar mulheres?

O nojo que a Igreja Católica tem do corpo, do gozo, do prazer é uma fábrica de doenças. Os fiéis fingem que seguem as regrais morais, mas pobre dos padres!

Ratzinger operou apenas retrocessos, na linha de uma Igreja mais ritualista, machista, opressora, homofóbica, elitista, e, claro, muito mais hipócrita.

R.I.P, primeiro senhor papa impitimado. Não deixará saudades.

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, é ativista de Direitos Humanos e LGBTI.

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Comentários

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Zé Maria

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Jamais esqueceremos que foi Ratzinger, antes de Papa,

que colocou Leonardo Boff na Cadeira da Inquisição.

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    Zé Maria

    “Nesse momento, João Paulo II já me tinha imposto o silêncio.”

    O Vaticano não o silenciou de qualquer modo.
    Em 1985, condenou-o ao silêncio quando ainda era padre.
    Antes foi julgado pela Congregação para a Doutrina da Fé,
    como se chama agora a velha Inquisição.
    Era Joseph Ratzinger, que em 2005 seria entronizado
    papa como Bento XVI.

    “O prédio está à esquerda da grande praça, para
    quem vai na direção da Basílica de São Pedro.
    Foi uma experiência terrível.
    Entrei por um longo corredor ao qual davam
    galerias com tapetes vermelhos.
    Em um determinado momento vi ao fundo
    uma porta muito pequena.
    Tive que me abaixar, porque percebi que
    erguido não entraria.
    É uma área escura e tenebrosa.
    O cardeal [Ratzinger] estava sentado
    em seu lugar, sobre um tablado a meio
    metro do chão.
    Tudo claro: ele estava acima de mim.
    Ao lado já se havia sentado o notário.
    Fizeram-me sentar na mesma cadeira
    onde esteve sentado Galileu Galilei,
    e não é uma metáfora: era a mesma
    cadeira.
    O interrogatório foi duro.
    O cardeal Ratzinger aceitou que em
    uma das partes eu pudesse falar com ele
    junto com dois cardeais brasileiros, Paulo
    Evaristo Arns e Aloísio Lorscheider.”

    LEONARDO BOFF
    Em Entrevista ao Jornal Página/12

    Íntegra:

    https://operamundi.uol.com.br/samuel/45006/leonardo-boff-assusta-nos-que-os-eua-estejam-negociando-duas-bases-militares-com-macri

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